Aconteceu o que infelizmente eu temia: a minha mulher está a desenvolver uma profunda aversão à Sandra. Isto vai condicionar fortemente as minhas futuras disponibilidades. Por isso mais vale avisar já!
Um desenvolvimento habitual…
Faz agora sensivelmente 12 anos desde que me vesti pela primeira vez em casa com o consentimento da minha mulher — aliás, uns dias antes dessa primeira sessão, fomos juntas comprar algumas roupas novas, pois o que eu tinha já estava muito gasto e fora de moda. Foi nesse dia também que fiz a primeira e última sessão fotográfica em que foi ela quem tirou as fotografias.
Se olharmos para toneladas de casos semelhantes ao meu, em que não há uma rejeição absoluta por parte do cônjuge relativamente à roupa que nos vestimos, existe um certo desenvolvimento habitual. No início, claro, há o factor curiosidade: como é que será que o meu marido fica em roupas de mulher?
Normalmente basta a primeira sessão para a curiosidade desaparecer 😉 mas evidentemente que isto depende muito das pessoas. O mais frequente é haver uma fase em que o crossdressing é circunscrito ao espaço do lar, em dias que mais ninguém possa estar presente. Nesta primeira fase, no meu caso, o crossdressing ocorria durante a tarde, por vezes até começava antes do almoço, e terminava mais ou menos depois do jantar.
Há depois um período inicial de euforia da nossa parte: finalmente podemos vestirmo-nos em casa! Não é preciso andarmos a esconder tudo da nossa mulher! Ora isso significa um estabelecimento de regras. A actividade de crossdressing leva tempo, e o tempo do casal tem de ser dividido num sem-número de tarefas; o crossdressing, nesta fase, é entendido como «lazer» ou um «hobby», independentemente do que dissermos. Mesmo que a maioria das crossdressers fale em coisas como «necessidade imperativa», elas colocam isso exactamente ao mesmo nível que a «necessidade imperativa» de ver na TV o Sporting a jogar. São «coisas dele». Não incomodam grandemente, portanto são toleradas, desde que hajam limites razoáveis.
No meu caso, na altura, definiu-se que não havia crossdressing mais do que uma vez por semana, e era geralmente aos domingos, se a memória não me falha, porque esse é um dia que normalmente temos para nós, pelo menos depois de almoçar com os meus pais (na altura a minha mãe era viva e o meu pai ainda não tinha a demência em estado tão avançado). Mas também houve sessões aos sábados, quando não havia jantar com a minha sogra (o que era raro, mas acontecia). E haviam sempre os feriados!
Aos poucos, claro, começamos também a adquirir não só autoconfiança na forma como nos apresentamos — tornando o nosso aspecto mais «normal», abandonando o ar de «matrafona» ou «putéfia» e começando a vestirmo-nos mais de acordo com a realidade do nosso corpo, idade, ambiente, espaço social, etc. — mas, com essa autoconfiança, vem igualmente o desejo de sair e de enfrentar o mundo. Nem todas as crossdressers passam por esta fase. Algumas, fetichistas da roupa, jamais precisam de sair de casa; outras, fetichistas pelo acto de se «tornarem mulheres», podem querer sair ou não, o que pode causar complicações com o cônjuge; podem até desejar ter um parceiro masculino para se sentirem «plenamente mulheres», e como é evidente, ter uma relação extraconjugal com um homem está fora de questão, mesmo para a mais tolerante das mulheres (a não ser que ambos sejam pansexuais e numa relação completamente aberta, claro está; mas esses casos são muito, muito raros).
Depois temos as pessoas transgénero. No final da década de 1980, pouco mais ou menos, um grupo de pessoas cada vez mais numeroso começou a sentir-se «incomodado» com as designações que lhes atribuíam: não eram nem crossdressers fetichistas, nem transexuais. Não desejavam, de forma alguma, tornar-se mulheres a tempo inteiro; algumas podiam desejar ligeiras modificações cosméticas no seu corpo (o que poderia ou não passar por tratamentos hormonais), mas, regra geral, queriam continuar a ter o papel de género masculino no seu dia-a-dia. Tinham, no entanto, a tal necessidade imperativa de darem expressão à parte feminina da sua personalidade; mas essa forma de expressão não era propriamente uma fantasia sexual, mas sim uma necessidade diferente, muito difícil de explicar. A palavra transgénero foi usada por esse grupo para explicar a sua diferença: como reconheciam a existência dessa tal parte feminina, mas, regra geral, apresentavam-se socialmente como homens, «transitavam entre géneros» (e daí a palavra transgénero): normalmente eram homens, por vezes eram mulheres, e quando se apresentavam como mulheres, sentiam-se mulheres. A sexualidade era apenas mais uma característica e não o objectivo em si; logo, afastavam-se da noção do crossdressing como forma de fetiche ou de viver uma fantasia sexual; mas também não desejavam «transformar» os seus órgãos genitais (ou mesmo o corpo) para se parecerem mais «com o outro sexo». Não eram, pois, transexuais, no sentido da pessoa que se identifica com um género diferente do que lhe foi atribuído à nascença e que pretende transformar o seu sexo para que corresponda melhor à sua identidade de género.
Infelizmente, a palavra transexual, embora ainda seja um termo corrente em medicina, adquiriu uma grande carga negativa, pelo que a comunidade apropriou-se da palavra transgénero para, no fundo, designar todas as pessoas que, de certa forma, não se conformam com a identidade de género que socialmente lhes foi atribuída à nascença. Desapareceu, pois, a noção de «pessoa transgénero» enquanto alguém que estava para além do fetichismo transvéstico mas que não era transexual. A palavra transgénero é muito mais inclusiva, mas também geradora de muito maiores confusões, pois o seu significado mudou muito drasticamente ao longo dos últimos trinta e tal anos…
Seja como for, chegou uma altura, mais ou menos por volta de 2009, em que eu sentia a tal «necessidade imperativa» de não só ficar enclausurada em casa, mas que pudesse sair e, aos poucos — assim o pensava! — poder interagir com outras pessoas, sejam amigas também elas transgénero, sejam pessoas comuns, encontradas no dia-a-dia. O certo é que tinha interrompido as minhas saídas nocturnas por causa da minha mulher; e foi só em 2007, quando ela passou dois dias no hospital em recuperação de uma cirurgia ginecológica, que pude finalmente sair uma vez mais…
O primeiro obstáculo, pois, foi conseguir a aprovação dela para sair de casa mais frequentemente. E aqui, claro está, surgiu uma dificuldade imediata. A minha mulher é uma pessoa extremamente ansiosa, e morre de pânico por pensar que eu possa ser atacada, violada, ou que seja vítima de qualquer acção transfóbica, pelo que nesses dias em que eu saia ela tomava uns ansiolíticos. Por vezes nem conseguia dormir, por isso passei a sair só quando ela tinha adormecido, o que tornava a vida complicada — ela adormecia mais ou menos pelas 3 ou 4 ou talvez 5 da manhã, o que me permitia sair um bocadinho, por vezes até o sol nascer, e depois tinha de me «desarranjar»… e adormecer lá pelas 7 ou 8 da manhã, para acordar pelo menos por volta da hora de almoço, passando o resto do dia em modo «zombie».
Claro que nessa fase era impossível estar com amigas, que, mais sensatas que eu, iam para a cama muito mais cedo do que isso! Na verdade, nessa altura, as únicas pessoas com que me cruzava na rua eram os tipos da recolha do lixo… e talvez um carro da polícia ou outro.
Foi só com o início da depressão, e a recomendação por parte dos meus psicólogos de não ficar em casa mas sim sair com amig@s, que a minha mulher finalmente me deixou começar a sair a horas «decentes», e, nos últimos três anos, como sabem, tenho praticamente ido a todo o lado, seja de dia ou seja de noite, seja para lugares de «festa» (restaurantes, bares, teatro, cinema…), seja para passear, ir de comboio ou de metro, ficar na fila para pagar o gás, a água, ou as compras do supermercado, à biblioteca pública, ou apenas estar a olhar para as montras num centro comercial ou nas ruas da Baixa ou do Chiado. Até já fui vender uma meia libra de ouro da minha cunhada! (Ela, claro, nem suspeita como é que fui vestida…)
Talvez a única coisa que não fiz foi «revelar-me» a mais gente, a pedido da minha mulher, mas que coincidiu também com uma sugestão de uma das primeiras psicólogas que me esteve a tratar. Para já só me «revelei» a um dos meus melhores amigos do tempo da faculdade (embora não estivesse vestida de mulher na altura) e à minha prima favorita, a qual é uma espécie de «irmã mais velha» para mim (o que é uma história bastante comprida para contar), e que finalmente me viu também como Sandra — a sua primeira reacção foi dizer: «é pá, és mesmo bonita!» 🙂
Seja como for, esta «alteração» da atitude da minha mulher também fez com que eu própria alterasse alguns comportamentos. Enquanto ainda tinha dinheiro para isso, fiz depilação a laser, arranjava regularmente as unhas das mãos e dos pés, fazia ocasionais limpezas de rosto, etc. A minha mulher começou a franzir o nariz a isso tudo (embora viesse a usar tanto a minha manicure/pedicure como também o salão onde fiz a depilação a laser), pelo que passei a fazer essas coisas em dias em que ela não resmungasse tanto. E houve uma reorganização do espaço no minúsculo roupeiro cá de casa, pensado para uma pessoa solteira, e que agora tinha, inevitavelmente, de lidar com roupa para três pessoas, Verão e Inverno (porque não há espaço em casa para guardar mais roupa em lado nenhum!).
O ponto alto desta fase foi quando a minha mulher até chegou a conhecer algumas das minhas melhores amig@s, e na verdade deu-se bem com elas! Curiosamente, apesar da depressão, foram dias felizes.
Os meus psicólogos, entretanto, não tendo a certeza absoluta do meu diagnóstico, encorajaram-me a vestir-me mais e mais. E quanto mais me vestia, mais à vontade me sentia, ao ponto de, a partir de certa altura, ter perdido completamente o «medo» de sair à rua, ou o «medo» de ser reconhecida. Se acontecer, aconteceu. A única preocupação neste momento é apenas não chocar de frente com um vizinho que me reconheça, porque a minha mulher não quer que eu me «revele» aos vizinhos. Muitos, claro, já me viram, e se me reconheceram ou não, não sei, porque nunca o comentaram; mas também é verdade que não fiquei ainda frente-a-frente a nenhum deles!
Bom… com o tempo, começaram-se a manifestar na minha mulher os sintomas de rejeição. Como já tinha lido sobre o assunto, infelizmente não foi muito fácil reconhecê-los. E é por isso que vou listar aqui alguns deles, pois pode ser que vos sejam úteis.
Os sintomas de rejeição
Aparência. Quase sempre, o primeiro de todos os sintomas de rejeição tem a ver com a nossa aparência. Regra geral, a maior parte das mulheres tem uma imagem idealizada da forma como as mulheres se devem vestir e arranjar; é essa imagem que também passam às filhas, e que receberam (ou que rejeitaram!) da mãe. Como vão desenvolver connosco uma relação maternal (já falo nisto mais adiante!), vão querer logo dar opiniões sobre a nossa aparência, incidindo primeiro no tipo de roupa («isso não é apropriado para a tua idade»), no cabelo («as mulheres da tua idade não usam o cabelo tão comprido»), e, claro, na maquilhagem («estás a usar maquilhagem demais»). Também é vulgar dizerem-nos que estamos a usar demasiados anéis, demasiadas pulseiras, demasiados colares, etc.; e, evidentemente, os saltos que usamos são sempre altos demais. E, finalmente, como há uma tendência para sairmos primeiro para uma noitada, depois vem sempre o comentário do tipo «as mulheres não pintam as unhas nem põem pestanas postiças para irem tomar um café com as amigas»…
De notar que muitas vezes acontece que existe um pequeno toquezinho de inveja nestas situações: nós podemos ser mais altas, temos menos celulite, às vezes podemos ter menos rugas para a idade que temos, etc… e é chato para a auto-confiança dos nossos cônjuges pensarem que por vezes podemos parecer melhores do que elas…
Demasiado espaço ocupado. Muitas de nós começam por guardar a roupa e acessórios em sacos ou caixas longe da vista (seja no carro, num armazém, num sótão…). À medida que há mais aceitação, acabamos por espalhar as nossas coisas pela casa toda. No meu caso, para além do comentário de ter o roupeiro demasiado cheio, também ouvi o comentário «tens mais pincéis de maquilhagem que a minha mãe!» A implicação aqui, claro, é que estamos a gastar muito dinheiro com o nosso «hobby»…
Tempo. Aqui existem muitas variantes, desde o tempo que nos levamos a arranjar na casa de banho (que é sempre invariavelmente mais do que o tempo que elas levam) ou o tempo que passamos em casa vestidas de mulher, ou a pintar as unhas, ou a reparar/remodelar algum acessório, ou a coser a roupa e/ou a criar bijuteria ou pulseiras, etc. No meu caso isto até inclui o tempo que levo a tomar banho (pois normalmente faço scrubbing antes de me depilar com a lâmina de barbear), ou, quando a vou buscar à universidade, o tempo que levo a sair do carro. A mensagem subliminar é que «estou a desperdiçar tempo precioso» que podia ser útil para outros fins.
Ansiedade/irritação. De notar que uma das formas mais frequentes da ansiedade se manifestar é através da irritação (e por isso muitas vezes nem sequer reconhecemos que se trata apenas de ansiedade, mais nada). A ansiedade pode ter muitas origens, muitas das quais mostrando, na realidade, uma preocupação válida: desde o receio de que o marido crossdresser seja vítima de violência transfóbica (verbal ou mesmo física), que tenha um acidente enquanto está vestido de mulher (pois conduzir com saltos pode ser «mais perigoso»…), que seja visto por um colega (ou mesmo o patrão!) e que isso dê origem a situações embaraçosas (ou mesmo a perda do emprego), etc. Por vezes é possível conversar sobre o assunto com calma e tentar resolver os problemas de ansiedade — por exemplo, explicando que se vai estar sempre em espaços bem iluminados, públicos, na presença constante de amig@s, etc. Mas muito frequentemente este tipo de «medos» é irracional — tal como as pessoas que têm medo de voar mas que não se importam de conduzir todos os dias, mesmo sabendo-se que o risco de acidentes de automóvel é duas mil vezes superior ao risco de acidentes de aviação — e como tal não é com conversa que se vai lá…
Presença incómoda. Para alguns cônjuges, este «sintoma» surge logo no início, mas em muitos outros casos, pode levar anos a manifestar-se. Temos de ter em conta que a nossa mulher é provavelmente heterosexual e a sua atracção física e romântica é por homens, não por mulheres. A presença «feminina» do marido ou namorado em casa, se for cada vez mais frequente, e mesmo nos casos em que as pessoas não mudam de personalidade quando estão vestidas de forma diferente (pois há quem mude!), pode tornar-se incomodativa, e isto aplica-se a ambos os extremos do espectro: seja no extremo «matrafona» (em que, por mais cuidado que tenhamos com o nosso aspecto, somos sempre «um homem num vestido com uma peruca»), seja no extremo andrógino (podemos passar despercebidas tanto como mulheres como homens, pois temos figura que dê para as duas coisas!), a visão constante de uma pessoa que no fundo é «estranha» pode realmente tornar-se insuportável. Algumas mulheres, por exemplo, não podem sequer suportar a ideia de verem o marido vestido de outra forma que não seja de homem, e preferem que este se «esconda» num quarto ou garagem ou sótão, com as cortinas a tapar a janela, e nem querem saber do que se passa. Outras podem tolerar a presença mas não durante muito tempo. Eu por acaso tenho uma «mania» parecida: não gosto de estar «meia vestida» na presença de ninguém, ou estou toda vestida, ou nem sequer me mostro aos gatos… 🙂
Este ponto também se aplica às nossas amig@s, e é normal haver logo uma rejeição destas, com o argumento de que ela não se sente à vontade em estar no meio de um grupo de homens com peruca, maquilhagem excessiva, e vestidos que lhes caiem mal. Isto é por vezes um comentário indirecto à nossa própria pessoa, claro está. O certo é que nesta fase ela deixar-nos-á de acompanhar nas nossas eventuais saídas, assumindo que o tenha feito no passado, e começará também a criticar as nossas amig@s que tenha conhecido pessoalmente.
Conflito de prioridades. Esta é geralmente uma fase em que as coisas já começam a correr mal: é quando começamos a ser acusadas que «perdemos mais tempo com o crossdressing do que com as coisas importantes da vida» (o que vai desde a limpeza da casa, às compras, a ir passear o cão, ou a desempenhar qualquer outra tarefa «caseira»). Isto evidentemente depende de muitos factores, mas, na minha curta experiência, e em troca de opiniões com algumas minhas conhecidas, é uma situação que ocorre principalmente quando o nosso cônjuge tem uma vida muito complicada, muito ocupada, que lhe deixa muito pouco tempo livre para descansar e divertir-se. Assim, é quase inevitável que veja o tempo que dedicamos ao crossdressing como uma forma de diversão — um «luxo» ou «privilégio», no fundo, que nós temos mas elas não — e isso, com o tempo, torna-se irritante. De notar que não é só com o crossdressing que isto acontece, claro está; regra geral, pode aplicar-se a qualquer actividade que tenhamos que esteja associada a momentos de lazer. O crossdressing é apenas uma actividade mais intensa, mais obsessiva, e talvez também mais incompreensível — está ao mesmo nível, para uma mulher, que uma colecção de escaravelhos ou de armas de fogo, actividades que consomem tempos infindáveis e incompreensíveis. No entanto, o crossdressing tem algo de muito pior, que é o facto de muitas vezes estar associado a saídas, a lazer, a divertimento com amigas. É pior, pois, que o futebol — especialmente quando a mulher não gosta de futebol — porque o futebol pode ser uma daquelas coisas incompreensíveis que os homens fazem, enquanto que sair para ir ao cinema com as amigas é algo que elas gostariam de fazer mas que não fazem porque não têm tempo. Logo, existe uma natural inveja. No entanto, não é justo que tenhamos de passar os nossos tempos livres (porque os temos) a olhar para a TV ou para a parede em tédio absoluto, só porque a nossa mulher não tem tempo para se divertir; o problema aqui está mais na questão do estigma social, ou seja, se nos divertirmos com «coisas para homens», tudo bem (no pior dos casos, elas podem sempre desabafar com as amigas…), mas se nos divertimos vestindo-nos de mulheres, e elas não o puderem fazer, então temos um problema (até porque não podem desabafar com ninguém…).
Nesta fase é igualmente frequente a acusação de que na realidade não somos crossdressers mas sim transexuais e que lhe estamos a ocultar que todas estas saídas, etc. têm a ver essencialmente com o desejo de transitar (e eventualmente abandonar a relação).
A forma de lidar com isto, claro, é colocar o crossdressing na prioridade mais baixa de todas, ou seja, tratar de todos os assuntos primeiro, e só quando não houver mesmo nada, nada para fazer é que nos vestimos de mulher. Mesmo assim irão haver discussões!
Os «preparativos» que incomodam. Sei que as coisas estão quase em ponto de ruptura quando já nem é preciso fazer crossdressing para que a minha mulher fique irritada com o crossdressing: basta estar a fazer preparativos para uma saída futura. Por exemplo, se estiver a pintar unhas postiças, ela presume logo que eu vá sair em breve, e fica logo ansiosa. Se deixar a lâmina de barbear à vista, ela pensa que estive a depilar-me, logo, irei sair em breve, etc. O mesmo se passa com lavar a cabeleira, ou estar a coser um botão num vestido. Isto é parecido com a questão do tempo mas não é a mesma coisa: agora, não é o tempo desperdiçado que é um problema (embora isso também venha sempre à tona da discussão!), mas sim a noção de que estamos a prepararmo-nos para sair. Podemos nem sequer ter qualquer intenção de sair no mesmo dia (por exemplo, gosto de coser roupa, relaxa-me; e embora prefire estar a arranjar a roupa de mulher, é das raras coisas que também não me importo de fazer com a roupa de homem), nem sequer na mesma semana, mas o mero facto de nos estarmos a preparar para sair é já fonte de irritação. Muitas vezes já me aconteceu estar a fazer alguns preparativos simples, como por exemplo engraxar os sapatos, e a minha mulher virar-se para mim e dizer: «Não estás a pensar em sair hoje, pois não? É que precisamos de ir às compras» — mesmo que, na realidade, isso seja uma mera desculpa para eu não sair naquele dia (pois na realidade não precisamos nada de ir às compras).
A solução infelizmente passa por fazer os preparativos reais numa altura em que ela não esteja presente, e deixar para o dia-a-dia aquelas coisas que podemos fazer a qualquer altura sem qualquer ligação com a próxima saída (por exemplo, estar a arranjar os vestidos de Verão no meio do Inverno).
Ruptura total. Chega, finalmente, o ponto em que se dá a ruptura total. É importante, antes de mais, referir que normalmente esta «ruptura total» não precisa sequer de ter uma argumentação lógica ou racional. Quando há pelo menos a tentativa de argumentar, então ela irá falar do «tempo perdido» (é sempre uma questão factual), da «alteração da personalidade» (no sentido em que «já não somos a mesma pessoa quando fazemos crossdressing»), da questão das prioridades e do comportamento obsessivo («só pensamos no crossdressing e em mais nada»), do dinheiro gasto, enfim, no fundo, uma lista com os pontos essenciais até agora discutidos. Mas ela irá mais longe, usando também argumentos emocionais, como por exemplo acusando-nos de sermos egoístas e só pensarmos no nosso bem-estar e satisfação pessoal (quando ela está a auto-escravizar-se para que tenhamos uma vida melhor), da ansiedade que lhe provocamos constantemente com as nossas saídas (pois cada vez estamos a «expôr-nos» mais ao perigo, à violência transfóbica, ao risco de sermos «apanhadas em flagrante» ou de causarmos ou sermos vítimas de um acidente), e de não estarmos sequer a mostrar que gostamos dela, pois estamos mais preocupadas em combinar a cor das unhas com a do próximo vestido do que a enfrentar os problemas do dia-a-dia. Também poderá ser referida a questão da sua heterosexualidade, de que se casou/apaixonou por um homem e de que não suporta a ideia de ter de viver com uma mulher. As acusações incluirão uma longa lista de protestos e de argumentos, muitos dos quais serão uma total surpresa para nós, e que ela se martirizará dizendo que «tem suportado tudo isso em silêncio» para o bem da relação, mas que chega a um ponto em que não pode aturar mais toda esta situação. E aí, então, entramos no domínio do irracional: de que as saídas constantes com outras amig@s nos estão a «convencer» da nossa própria identidade de género, que estamos a viver uma fantasia inspirada pela vida de outras pessoas, de que na realidade não existem pessoas transgénero, mas apenas pessoas que não aprenderam a lidar com os seus problemas, que têm falta de vontade, etc. Este ponto, em particular, é muito complicado de rebater. No caso da minha mulher, que é mais inteligente do que eu, ela é muito mais hábil a «desmontar» a minha disforia de género — dizendo que não passa de uma perturbação mental e que, como qualquer outra perturbação mental, pode ser controlada (e reprimida) — coisa que já fez na sua mente e que está perfeitamente convencida de que os ditos «sintomas» dessa disforia de género não são nada mais, nada menos, do que comportamentos estereotipados inventados por outros homens para justificarem os seus comportamentos, fantasias, desejos sexuais ou de vício em adrenalina, etc. etc. etc.
Quando ficamos, pois, sem quaisquer argumentos para discutir, então fomos efectivamente «derrotadas», e é nessa altura em que surge a proibição de continuarmos a fazer crossdressing (no melhor dos casos, haverá uma forte imposição para «voltar aos níveis anteriores», mas provavelmente com muito mais controlo). Não é frequente, pois, num grupo de amig@s que tenham saído em conjunto ao longo dos anos, que uma ou outra subitamente deixe de aparecer, simplesmente porque valoriza mais a continuidade da sua relação do que a eventual satisfação de uma necessidade de se vestir de mulher. Por outras palavras: manter a relação é mais importante do que a felicidade pessoal.
Consequências da rejeição
Estou, pois, numa fase complicada. Por um lado, estou muito satisfeita que os meus psicólogos estejam agora a explorar potenciais traumas de infância, assim como uma certa repressão da minha sexualidade, a fim de tentar descobrir a forma como isso possa estar a criar sintomas de disforia de género. Claro que a minha mulher também está contente com essa abordagem, pois significa que ela terá tido sempre razão, e de que eu não sou transgénero coisíssima nenhuma, mas apenas «vítima» de certos traumas.
Por outro lado, isto significa evidentemente que as minhas saídas estarão condicionadas. Condicionadas, principalmente, ao humor da minha mulher; mas mesmo nos dias em que esteja de bom humor, sei que ela fará tudo por tudo para que eu não me vista de mulher — e muitas vezes isto será feito de forma «natural», contra a qual eu não terei argumentos. Por exemplo, hoje tenho consulta com o meu psicólogo, e normalmente deixo a minha mulher na estação, depois tenho tempo para me arranjar e ir à consulta. Mas hoje, «naturalmente», a minha mulher «informou-me» que estava cheia de dores (ela sofre de fibromialgia) e pediu-me para a levar ao emprego «já que, de qualquer das formas, ia a Lisboa» (e que podia trabalhar em qualquer lugar que tivesse acesso à Internet, o que é sem dúvidas verdade…). Lá se foi, pois, uma das raras hipóteses de me vestir esta semana (pelo menos terei o ombro do psicólogo onde chorar…). E tenho a certeza que isto passará a ser a «norma» e não a excepção. Por exemplo, amanhã é um dia em que ela vai logo de manhã para o emprego, logo, teria muito tempo para me arranjar. Mas ela pode levantar-se mais tarde. Pode decidir — especialmente se suspeitar que eu me vá vestir! — nem sequer ir trabalhar, ou ir só trabalhar depois do almoço, ou qualquer uma de milhentas desculpas perfeitamente plausíveis e «naturais» contra as quais eu não poderei argumentar.
Ainda ontem estive para mandar uma mensagem à minha prima, para saber se ela queria tomar um café comigo. Mas hesitei. Como poderia, com 24 horas de antecedência, garantir que tinha tempo para sair com ela? Já aconteceu, justamente este mês, ter de cancelar o dito café com ela mesmo em cima da hora, porque a minha mulher «estava-se a sentir adoentada» e tive de a ir buscar de urgência ao emprego, meia dúzia de horas antes da hora prevista — tinha eu acabado de me sentar no café e feito o meu pedido, e a minha prima acabado de sair do edifício dela.
Ou um café que estava combinado há três semanas, calhando num dia em que, habitualmente, tenho tempo livre até à meia noite e meia, hora a que normalmente a minha mulher sai das aulas nesse dia da semana. Mas calhou ela ter-se sentido extremamente cansada no emprego, e desistiu de ir às aulas; tive de a ir buscar ao emprego, deixá-la em casa, e voltar ao local combinado — porque era também chato estar a desmarcar mesmo em cima da hora, algo que estava previsto há muito, muito tempo atrás. Resultado: nós que andamos em fase de poupanças, tive nesse dia de fazer mais de 100km, para cá e para lá, mais portagens e estacionamento…
As «desculpas» das dores, doenças e cansaço não são nem psicossomáticas, nem fingimento, nem tretas do género: são bem reais (e sim, os médicos dela confirmam os diagnósticos). Não surgem todos os dias, mas é evidente que pioram em situações de extremo cansaço e stress. Infelizmente, o mero acto de me vestir agora causa ansiedade à minha mulher, o que significa também que o seu sistema imunitário reage mal ao stress, e que fica, pois, muito mais susceptível a eventuais doenças, dores musculares, mal-estar generalizado, dores de cabeça, cansaço, etc. etc. etc. Uma coisa alimenta a outra, num ciclo vicioso, que não é fácil de quebrar.
«Quebra-se», sim, se eu pudesse «deixar de ser transgénero». Mas isso claro que é impossível. Posso, isso sim, e nas palavras da minha mulher, praticar a abstinência: «antes da depressão também te conseguias controlar». Teoricamente é possível, claro está; afinal de contas, a história da minha vida roda em torno da forma como tenho suprimido e reprimido qualquer manifestação de identidade de género que não seja aquela que me foi atribuída à nascença. Pude, durante anos, evitar pensar muito no assunto dedicando-me ao trabalho, de forma a que o trabalho me ocupasse todos os momentos do dia em que estou acordada. Com a depressão, isto foi impossível, mas não quer dizer que não consiga re-adquirir essa capacidade. A minha mulher está perfeitamente confiante na minha capacidade de conseguir reprimir toda a minha «disforia de género» e voltar a ter uma vida aparente de falsa cisgenderidade.
Ora eu bem sei que isso só é possível até um certo limite. E é evidente que terei de desenvolver novos mecanismos para lidar com a situação. Um deles é bastante simples, que é o de evitar vestir-me (e sair) quando a minha mulher está em casa. Aliás, foi das primeiras coisas que lhe disse logo — se a minha presença enquanto Sandra a incomoda de tal forma, a única coisa que me resta é deixar de lhe forçar essa presença, mas sim reservar a minha apresentação de género feminino para alturas em que a minha mulher não esteja em casa, e felizmente há muitas. Ela, claro, não ficou lá muito satisfeita com a minha resposta, e provavelmente estará a matutar como contornar a situação. Para já, claro, usa e abusa do argumento de que «perco demasiado tempo a vestir-me» em vez de estar, isso sim, a concentrar-me no trabalho e a vencer a depressão.
A consequência disto tudo, claro está, é deixar de conseguir combinar coisas com antecedência seja com quem for. Só saberei no próprio dia, e por vezes só mesmo umas horas antes do evento, se poderei estar presente ou não. Isto na realidade não é muito diferente dos tempos antes de 2013, em que andava sempre à espera do dia em que a minha mulher me deixasse sair de casa e ir ter com as amig@s, mas esse dia nunca mais surgia. Penso que estarei uma vez mais limitada à mesma situação, mas com uma agravante: é que antes de 2013 pelo menos ainda me podia vestir em casa. Agora já nem isso está garantido, pelo menos por uns tempos, e não sei quando «tempo» é que esta «fase» irá durar.
Pode ser que seja assim para sempre. E pode ser que amanhã (ou para o ano que vem) esta fase acabe. É totalmente imprevisível e está fora do meu controlo!
Até lá, resta-me antecipadamente pedir desculpa a toda a gente que contava comigo para uma série de actividades, que sabem do meu empenho, vontade e desejo de participar… mas que, infelizmente, não poderei estar presente. A minha boa vontade em fazer parte de tudo isso mantém-se, aos mesmos níveis que dantes; não «perdi o entusiasmo»; simplesmente, isso sim, estou a perder a oportunidade de fazer essas coisas todas.
Tenho a má fama de nunca chegar a tempo às coisas combinadas, de as estar a cancelar com frequência, de fazer confusão com datas e horas, e de me comprometer com certas coisas que prometi fazer e que muitas vezes acabo por não o conseguir fazer. Se bem que em muitos dos casos a culpa seja realmente minha, a verdade é que a imprevisibilidade faz agora parte da minha vida, e isto significa que muitas vezes não terei mesmo controlo algum sobre o que pretendo fazer ou quando poderei estar presente.
É certo que, ao ter atingido o fundo do poço financeiro, também não estou propriamente na melhor situação para estar a gastar tempo e dinheiro em tudo o que não seja crítico para a nossa sobrevivência imediata; portanto, em certa medida, mesmo que as condições fossem outras, teria à mesma de cancelar muitas coisas. No entanto, um café num sítio em que não se pague estacionamento só custa meio Euro; posso sempre dispensar cinquenta e poucos cêntimos para estar com amig@s!! A questão, pois, não é essa; é mesmo uma consequência das profundas alterações que a minha vida terá de levar, especialmente se esta fase da minha mulher se mantiver durante muito tempo (o que é infelizmente altamente provável!).
Também é por isso que têm visto muitas fotos minhas, sempre sozinha, a passear sabe-se lá por onde algures na zona da Grande Lisboa. Até recentemente (antes das supostas férias da Páscoa), podia sair com frequência, mas sempre de tarde, a uma altura em que toda a gente está a trabalhar (incluindo a minha mulher!); e raras foram as vezes em que soube com suficiente antecedência que ia estar disponível nesses dias — por isso, regra geral, (quase) nunca deu para combinar nada. Às vezes deu para juntar o útil ao agradável: um@ amig@ que, por acaso, nesse mesmo dia, de forma inesperada, teve disponibilidade coincidente com a minha. Mas terei sempre de avisar que se trataram de coincidências felizes. Não posso contar com elas. Poderão acontecer — e será sempre óptimo quando acontecerem! — mas o mais provável é não ser possível.
Lamento imenso esta situação… acreditem que ninguém a lamenta mais do que eu! Mas infelizmente não tenho alternativa senão resignar-me e aceitar as mudanças com calma e serenidade.
As coisas acabarão por se resolver!