Vou começar por abordar um assunto polémico. Sei que algumas pessoas que me vão ler vão ficar ofendidas. Outras, pelo contrário, concordarão. E só esta pequena frase é suficiente para explicar o meu tema de hoje: é que a palavra crossdresser não designa um único tipo de pessoa, mas sim uma vasta miscelânea de indivíduos, todos eles muito diferentes entre si, com objectivos antagónicos na vida, e, como tal, de difícil reconciliação numa «posição comum».
Faz agora pouco mais de um ano em que nasceu em Portugal a Jano — que, nos dizeres da própria página no Facebook, se classifica como «uma Associação sem fins lucrativos que visa a promoção de vida da pessoa transexual através de um apoio bio-psico-social durante todo o seu processo de transformação.» Nasce de uma necessidade: as várias organizações LGBT em Portugal, embora mantenham lá o T, têm na realidade poucos conhecimentos sobre as questões relacionadas com as pessoas transexuais ou transgénero. Sabem, sim, que são discriminadas. Mas podem não saber muito bem como as acompanhar. Defendem os seus direitos, tal como defendem os direitos LGB, mas não percebem muito bem a especificidade da problemática. E não podemos, de todo, censurá-los. Afinal de contas, cerca de 10% da população é LGB. Transexuais, esses, há uns 50 por ano que completam a sua transição. São muito poucos.
Assim, faz sentido existir uma associação que conheça os problemas específicos das pessoas com disforia de género, e saber como as acompanhar. A Jano cumpre esse papel. Claro que há partes comuns: o apoio psiquiátrico e psicológico, a luta pelos direitos, a ajuda na «revelação» perante família e amigos. Mas a comunidade LGB não tem conhecimentos nem experiência para lidar com os problemas específicos: as hormonas, a cirurgia, a terapia de voz, a mudança da documentação legal. É aqui que entra a Jano.
Há, porém, bastante mais do que isso. É que o próprio foco é completamente diferente. A comunidade LGB essencialmente defende o direito de não ser discriminada pelo que faz com os seus parceiros na cama. Foi esse o ponto de partida. Hoje em dia, claro, a problemática vai mais longe, e também tem mais consequências legais: o direito ao casamento civil, o direito à adopção (e porventura co-adopção), e, evidentemente, o direito a usar o serviço nacional de saúde para obter acompanhamento psicológico e psiquiátrico.
Mas a comunidade LGB tem uma pequena vantagem sobre aqueles que têm disforia de género. É que, externamente, uma pessoa LGB não se distingue de um heterosexual. São fisicamente idênticos, podem vestir as mesmas roupas, terem os mesmos hábitos. A única diferença essencial, do ponto de vista externo, é a escolha de parceiros. Mas isso também pode ser feito discretamente. Tal como é cada vez mais raro verem-se adultos de sexos opostos de mãos dadas na rua, também não é preciso verem-se adultos LGB a fazerem o mesmo. Podem reservar a intimidade para o espaço privado. Isso significa que «passam despercebidos» a maior parte do tempo.
As pessoas com disforia de género não. Excepto talvez em casos de menor intensidade (já lá iremos), uma mudança do seu papel social é imediatamente visível. No melhor dos casos — o caso de pessoas perfeitamente andróginas — há, pelo menos, uma mudança. Essa mudança reflecte-se em vestuário e em comportamentos. Mesmo que a «mudança» seja para uma situação de fluidez de género (genderfluid), esta tem alterações comportamentais claramente visíveis. Obviamente que isso significa um muito mais elevado grau de discriminação.
Gosto de dar um exemplo, que no entanto sei que não é perfeito. Qualquer pessoa pode ser BDSM ou swinger (para falar em duas fantasias sexuais populares em Portugal, mas qualquer outra também serve para o argumento). O facto de se ser BDSM ou swinger não tem qualquer influência no comportamento ou no vestuário. Podemos ter um emprego como porteiro de uma igreja e ser BDSM; não há qualquer problema, pois tratam-se de comportamentos reservados a um espaço privado e muito restrito. Não é preciso haver uma associação que proteja os direitos dos sadomasoquistas. O único direito que necessitam, já consagrado constitucionalmente, é o direito a poderem fazer o que quiserem em privado, sem interferência de ninguém (nem do Estado), desde que não violem nenhuma lei e que o façam com adultos que dêm o seu consentimento. Isto são liberdades fundamentais que, uma vez adquiridas, não necessitam de mais «apoio». Mas se não quisermos ir pela via das fantasias sexuais, podemos pensar em clubes de futebol. Qualquer pessoa pode ser do Sporting, do Benfica, ou do Porto. Na privacidade da sua casa — ou no recinto desportivo adequado — podem livremente dar azo às suas preferências. Não precisam de mais «direitos». E ser-se de um clube de futebol é transversal a toda a sociedade, sem discriminação. Ricardo Salgado é fã incondicional do Sporting, mesmo que seja banqueiro, e que partilhe os mesmos gostos do mais humilde limpador de janelas do BES.
Embora esta situação não seja exactamente assim para quem é LGB, quando se entra no campo da disforia de género, as coisas são muito diferentes. Imaginem que o Ricardo Salgado insistisse em entrar no BES, ou melhor, no Novo Banco, vestido com um cachecol e com uma cópia de um equipamento do seu jogador favorito, com a cara maquilhada com faixas horizontais verdes e brancas, a berrar «Sporting! Sporting!», e encher o seu gabinete com posters dos grandes momentos desportivos do Sporting. Seria arrastado para fora do gabinete e levado num colete de forças para umas injecções no hospital psiquiátrico mais próximo. Mas ele não faz nada disso. No entanto, quando o Sporting está a jogar, e quando estiver na privacidade da sua casa (ou do camarote privado que tem no Estádio de Alvalade), pode adoptar esse comportamento sem receios de ser discriminado.
Ora as pessoas LGB podem fazer o mesmo (não quer dizer que o façam sempre), mas as pessoas com disforia de género não. Para estas, adoptar um comportamento que é contrário à sua identidade de género é confrangedora, deprimente, e uma aberração. Mas, infelizmente para elas, é justamente quando querem adoptar o comportamento do género com que se identificam, e evidentemente fazê-lo publicamente, vão ser consideradas como aberrações.
Eu diria que a homofobia é essencialmente uma questão moral, no sentido das pessoas terem a mania de quererem que as outras pessoas se comportem na cama como acham que é melhor, mas a expressão da homosexualidade ou bisexualidade pode ser ocultada. A transfobia ultrapassa a mera questão moral. Ela questiona o papel social dos indivíduos. Assim, é muito mais intensa, pois não pode ser facilmente «escondida». Se sou LGB, posso «esconder» as minhas preferências sexuais publicamente com bastante facilidade e ter uma vida completamente indistinguível de qualquer outra pessoa — tal como um simpatizante do Sporting o consegue fazer também. Mas se tenho disforia de género é impossível «esconder» isso da sociedade em geral.
Se o faço — ou seja, se consigo «esconder» a disforia de género — então deve-se questionar realmente se é uma disforia de género ou não. E é aqui que começamos então com o problema.
Quando comecei a ler na Internet sobre a problemática transgénero, há precisamente duas décadas atrás, a questão era colocada nos seguintes termos: aqueles que escondiam a sua disforia de género (fosse esta moderada ou não) eram crossdressers. Aqueles que não o conseguiam esconder mais eram transexuais. Isto é uma forma simplista de explicar a questão, mas era é a forma mais simples de a apresentar. É também desta altura que data a antiga piada, que gosto de repetir, embora não seja verdadeira:
— Qual é a diferença entre um crossdresser e um transexual?
— Cinco anos.
O que está por trás desta «piada» é a noção de um processo. Assumia-se, há vinte anos atrás, que a disforia de género, quando necessitava de ser manifestada externamente, conduzia ao crossdressing. Crossdressing é um termo neutro que designa uma actividade, não o que a pessoa é. Um actor de cinema que faz um papel do género oposto àquele com que nasceu está a fazer crossdressing. Na realidade, a designação deveria sempre ser «fazer crossdressing» e não «ser crossdresser». Se a distinção parece pequena, tentarei elaborar um bocadinho mais para tentar ser clara.
Crossdressing é o acto de vestir roupas do género oposto ao que lhe foi atribuído à nascença. Por si só, crossdressing não implica mais nada. Não implica comportamentos, nem diz nada sobre a pessoa em si, sobre o que pensa, o que sente, ou o que deseja. Apenas designa a roupa que veste, e, em certa medida, por vezes pode também designar o comportamento adequado à roupa que veste, mas na realidade o termo é suficientemente preciso para o excluir: lá porque vista roupas de mulher, não quer forçosamente dizer que me comporte como uma mulher. Crossdressing é um termo exclusivamente criado para designar o acto de vestir roupas do género oposto, e mais nada.
Ora isto cria alguma confusão (muita, mesmo!) porque existem milhões de razões para uma pessoa praticar crossdressing. Pode ser por puro divertimento, como no Carnaval ou num baile de máscaras. Isto não diz absolutamente nada sobre a pessoa, as suas preferências sexuais, a sua identidade, etc. Nada mesmo. É apenas um divertimento. Pode ser também como uma forma de espectáculo: é o que fazem os artistas de transformismo, profissionais ou amadores. O transformismo é uma forma de arte. Embora normalmente se restrinja ao espaço do espectáculo público, também acredito que possa ser uma expressão artística fora destes espaços, embora, que eu saiba, seja raro.
Ser-se transformista também não implica mais nada do que isso: alguém que ganha a vida fazendo imitações de pessoas do género oposto, entretendo uma audiência. Um actor que represente o papel de um vilão de forma convincente não quer dizer que tenha uma mente criminosa; tal como um actor que represente o papel de Jesus Cristo não quer dizer que seja filho de Deus ou pelo menos santo. São papéis representados, de forma convincente, com o objectivo de entreter uma audiência — e mais nada.
É na cabeça perversa das pessoas que se imagina uma associação entre o que o transformista faz no palco, e o que se passa na cama. Mas essa associação não existe explicitamente. Não estou à espera que o Daniel Craig, que faz de James Bond nos filmes, seja na realidade um agente do MI6, e que esteja rodeado de beldades. Sabemos distinguir a realidade da ficção, mas a ficção não nos impede de obter entretenimento e prazer, porque, pelo menos durante a duração do filme, há um mecanismo que se chama suspensão da descrença (em inglês, suspension of disbelief) em que sabemos que as coisas não são realidade mas fingimos que são para nos entretermos. É precisamente isso que os transformistas fazem: durante o espectáculo, convencem-nos de que são mulheres lindíssimas, e não homens. Mas deveríamos ter em conta que se trata apenas de um espectáculo. Infelizmente, devido a preconceitos, muita gente (provavelmente a maioria das pessoas) pensa que há algo mais do que isso. E às vezes até há. Esse é outro problema.
Um transformista é claramente crossdresser, mas isso não quer dizer que tenha qualquer disforia de identidade de género. Alguns terão, mas não é obrigatório que assim seja. A adopção da roupa e comportamento do género oposto existe apenas por uma questão de entretenimento. Tirar ilações disso é tão idiota como pensar que Daniel Craig é mesmo, na realidade, um agente secreto britânico capaz de seduzir lindíssimas mulheres sempre que lhe apetece.
Quando começamos a observar as restantes motivações que levam as pessoas a fazer crossdressing, entramos em situações mais complicadas. Por exemplo, alguém que seja BDSM, pode adoptar vestuário e comportamentos que seriam socialmente inadequados no espaço público. Não vemos dominatrixes a passearem os seus escravos, com uma trela, em público. E lá porque alguém seja BDSM no espaço privado, não quer dizer que seja uma pessoa cruel e maldosa na vida real — ou submissa e subserviente. Uma coisa não tem rigorosamente nada a ver com a outra. Estamos a falar apenas de fantasias sexuais que recorrem opcionalmente a vestuário, acessórios, e comportamentos (e nem sequer precisam de o fazer em muitos casos). Fora do espaço privado do leito, nenhum desses comportamentos passam para a esfera pública.
Da mesma forma, existem milhões de fantasias sexuais, que nada têm a ver com o que a pessoa é no espaço público. Uma dessas, que é frequente (mas não tanto como as restantes fantasias), envolve crossdressing. Na maior parte destes casos, em que o crossdressing é usado como fantasia sexual, as roupas e os acessórios (e em certa medida o comportamento) são usados como potenciadores da fantasia sexual — precisamente como acontece com muitos casos de pessoas BDSM, que também usam vestuário e acessórios. Encaixa-se este tipo de crossdressing num vasto espectro de fantasias sexuais comumente conhecidas como role-playing, ou seja, a adopção de papéis (tal como faz um actor no teatro ou cinema). Uma grande parte do role-playing usa vestuário e acessórios; pela própria definição, no entanto, o que conta mais é o comportamento.
Para uma pessoa que faça crossdressing como mulher como forma de fantasia, a questão do comportamento pode ser importante. Não interessa, contudo, qual comportamento é adoptado. Tratando-se de uma fantasia, não importa que seja um comportamento realista. Basta pensar nas inúmeras fantasias irrealistas desempenhadas por casais cisgénero heterosexuais, em que a mulher desempenha o papel de enfermeira sexy. Ninguém está à espera que se trate de um comportamento de uma enfermeira real. Não é esse o objectivo.
Da mesma forma, a maioria das pessoas que faz crossdressing por fantasia sexual não está minimamente interessada em realismo. Na realidade, têm duas ou três fontes de inspiração para as suas fantasias: a imagem da prostituição feminina (erradamente associada a uma hipersexualidade que pode não existir; infelizmente, a esmagadora maioria daqueles que se prostituem fazem-no apenas por sobrevivência, não por prazer) e das actrizes de filmes pornográficos (que também, na sua maioria, o fazem por necessidades financeiras). Mais uma vez: mesmo quando uma crossdresser se comporta como uma prostituta ou uma actriz porno, não lhe interessa criar uma imagem real dessas profissões. Interessa apenas uma imagem projectada, de acordo com determinadas características que promovam o estímulo sexual da fantasia, e que pode não ter absolutamente nada com a realidade. No entanto, é certo que essas fantasias são muito apelativas aos potenciais parceiros. É frequente encontrar pessoas que gostam muito mais de ter sexo com crossdressers porque dizem que «são mais mulheres que as mulheres verdadeiras». Aqui o que devemos ter em conta é uma certa mentalidade (vou-me abster de fazer julgamentos de qualquer espécie) de certos homens cuja fantasia é, justamente, terem sexo com prostitutas e actrizes pornográficas (uma fantasia popular e inofensiva!), e, não encontrando mulheres verdadeiras que estejam dispostas a desempenhar esses papéis imaginados, encontram muita satisfação em certas crossdressers que adoptam justamente essa imagem.
Como se vê neste caso concreto, não existe aqui qualquer disforia de género. Na realidade, tanto a crossdresser como o parceiro sexual que a aprecia partilham uma fantasia bem masculina, a de ter sexo com uma prostituta ou actriz porno. A diferença entre ambos é que há dois papéis a desempenhar nesta fantasia: um deles tem de desempenhar o papel de prostituta/actriz porno, o outro de potencial «cliente».
Até aqui tudo bem. Enquanto limitada à esfera privada, tais fantasias são perfeitamente inocentes como todas as outras. E, até recentemente, tudo isto se passava num ambiente muito limitado. Não era fácil, de todo, saber o tipo de fantasia que excitava um potencial parceiro sexual. Estas coisas funcionavam mais no «passar palavra»: amigos que partilhavam da mesma fantasia e que indicavam potenciais parceiras sexuais com as quais tinham tido uma experiência satisfatória. Tal como a maioria das fantasias, também esta era «escondida» e tinha uma visibilidade pública essencialmente nula.
As coisas mudaram justamente nos últimos vinte anos graças à Internet. Sempre houve anúncios privados, mas estes têm o inconveniente de não só não serem acompanhados por imagens, como ser difícil o contacto prévio à actividade sexual. Ou seja: havia sempre um risco da pessoa não corresponder à imagem da fantasia que se pretendia ter. Com a Internet, e sites como o SmutVibes (hoje encerrado), passou a ser possível não só ter acesso às imagens, como à comunicação com as pessoas em questão. Isto vale nos dois sentidos: não só a crossdresser fantasista podia, com facilidade, apresentar-se e mostrar os seus interesses, como podia também comunicar com os potenciais parceiros, escolhendo apenas aqueles que lhe interessavam.
Dos sites de anúncios privados passou-se para o Facebook (talvez com uma breve «paragem» pelo Orkut, Tagged, Hi5, Twoo, e outras redes sociais para o público em geral). Isto significou uma exposição muito maior, e, ao mesmo tempo, uma capacidade muito maior de encontrar potenciais parceiros — e de os seleccionar previamente. Ora isto também significou outra coisa: que o público em geral passou a saber o que são estas crossdressers e a perder o receio de as contactar e de interagir com elas. E elas também passaram a estar mais «disponíveis», mesmo em locais públicos (como bares e festas privadas), talvez porque a aceitação desta forma de fantasia tenha aumentado, e porque na realidade sempre existiu num número consideravelmente elevado. A diferença é que dantes não se sabia. Hoje em dia tudo é público, graças às redes sociais.
Assim, aos poucos, criou-se uma ideia, popularizada pelas redes sociais (mas não só), de que havia uma nova «moda» em termos de fantasias sexuais em Portugal. Chamava-se crossdressing. E havia muita gente disponível!
Na realidade, se olharmos bem para as coisas, podemos ver que há milhares de «praticantes» de crossdressing a anunciar os seus «serviços» na Internet. Tal coisa seria impensável há vinte anos atrás, em que o número de anúncios classificados para esta fantasia sexual era virtualmente nulo. Assim, não é de admirar que, se há vinte anos atrás ninguém sabia o que era uma crossdresser, hoje toda a gente sabe: é um homem que gosta de se sentir como uma prostituta feminina, que se veste como tal, e que está disponível para parceiros sexuais que gostem dessa fantasia.
Não admira, pois, que quando contactei a Jano a pedir-lhes ajuda eles foram muito simpáticos mas disseram-me que não sabiam se me podiam ajudar, pois «não tinham experiência com crossdressers». Na altura achei muito estranho tal resposta! Agora percebo o que queriam dizer: fantasias sexuais são coisas absolutamente normais. Toda a gente, mesmo que o negue, tem fantasias sexuais; é saudável tê-las. Assim, presumo eu, para os técnicos da Jano, não era muito compreensível porque é que eu tinha algum problema com isso, e porque é que estava à procura de «tratamento».
Há, certamente, dentro das fantasias sexuais, algumas que são parafilias. A diferença entre uma função sexual perfeitamente normal, associada a uma fantasia, e uma parafilia, é muito ténue, e não há consenso médico entre a diferença. Provisoriamente, define-se a parafilia apenas como uma forma de actividade sexual que cause intenso sofrimento ou à pessoa que tem a fantasia, ou aos seus parceiros sexuais. Por exemplo, alguém que se excite sexualmente com a mutilação dos parceiros durante o acto sexual terá com certeza uma parafilia. Mas é mais que óbvio que o mero crossdressing, por si só, não é uma parafilia. Poderá causar sofrimento à crossdresser, no sentido em que se sinta muito envergonhada ou embaraçada por ser essa a única forma de prazer sexual que consegue sentir, e nesse caso poderia ser uma forma de parafilia, mas esta situação é extremamente rara. Pessoalmente nunca conheci nenhum caso assim, nem nunca ouvi falar de alguém que conhecesse uma pessoa assim. Regra geral, todas as fantasias sexuais envolvendo crossdressing são naturais e positivas para os seus praticantes.
Uma forma alternativa do crossdressing enquanto fantasia sexual é quando o crossdresing é apenas usado como forma de auxílio à masturbação. Estamos, neste caso, no domínio do fetiche puro — aquele que se liga ao objecto e que o usa como substituto do acto sexual propriamente dito. Por outras palavras, este é o caso de alguém que, para se excitar, tem de sentir roupas femininas no seu próprio corpo, e não necessita de mais nada (nem sequer de um parceiro). Estes casos, embora muito referidos na literatura, seja esta científica ou não, são na realidade bastante mais raros. É que existe uma suave transição entre o fetiche do objecto e o fetiche do comportamento: a crossdresser fetichista pode começar realmente por explorar a masturbação enquanto vestida de mulher, mas depois aperfeiçoa essa imagem começando também a adoptar o comportamento feminino; esse «aperfeiçoamento» vai evoluindo, aumentando-lhe o prazer sexual, ao ponto de achar que a masturbação não lhe chega, precisa de um parceiro (regra geral masculino) que a «ajude» a completar a imagem feminina. Neste ponto, torna-se indistinguível o comportamento fetichista que originou na roupa e a fantasia sexual do outro grupo. Se estivermos a falar de actividades estritamente masturbatórias, estamos a falar de um fetiche de objecto. Se envolver um parceiro (até pode ser o parceiro habitual), está-se a ultrapassar o fetiche de objecto para passar para o fetiche de comportamento (com um parceiro), que é, para todos os efeitos, uma fantasia sexual. Não há, nesta fase, nenhuma diferença.
Para a comunidade de crossdressers, isto é normalmente visto como uma série de estágios a percorrer. No primeiro estágio, há o reconhecimento de que a lingerie feminina é, por si só, excitante. Pode acontecer que alguém tenha uma líbido reduzida, mas que descubra que, ao vestir roupa interior feminina, se sente muito excitado. Então, numa primeira fase, talvez com alguma vergonha ainda, começa a usar essa roupa interior. Se tiver uma parceira habitual, poderá pedir-lhe para que o deixe usar lingerie feminina, que o excita o suficiente para ter um desempenho sexual normal. À medida que o tempo vai passando, a lingerie pode não chegar. Pode ser preciso mais roupa, uma peruca, acessórios. Se a parceira estiver disponível para dar largas a essa fantasia — porque, nesta fase, claramente será uma fantasia — tanto melhor. Se não estiver, então procurar-se-á parceiros que estejam disponíveis a isso. Podemos dizer que estes parceiros são, em certa medida, «auxiliares masturbatórios» para ajudar a completar a imagem de uma mulher. Mas também podemos ver esta «evolução» como uma aceitação de uma fantasia sexual. É por isso que existem tantas crossdressers que encorajam as «novatas» a procurarem uma experiência sexual com um homem, dizendo-lhes que é a melhor forma de se excitarem sexualmente. Existe um certo rito de passagem quando se encara a actividade sexual com um parceiro masculino como o culminar de uma «evolução» de uma fantasia que começa com um fetiche masturbatório para uma relação sexual saudável «como uma mulher».
Enquanto que na «fase masturbatória», a crossdresser provavelmente não dirá nada a ninguém, já quando entra na «fase da fantasia com um parceiro», normalmente irá «anunciar» a sua disponibilidade e começar à procura de quem esteja disponível para a satisfazer. É por isso que existirão muitos poucos casos que estejam meramente na «fase masturbatória», e o que vemos é já a fase final do processo: mesmo que ainda não tenham encontrado nenhum parceiro, já andam à procura dele, ou, pelo menos, já aceitaram (internamente) que é por aí que irá passar a sua evolução futura.
Até aqui não há problema algum. Nota-se que existe uma certa consistência dentro de uma comunidade alargada. Recapitulemos: no caso de artistas de espectáculo, em que tudo o que lhes interessa é fazerem dinheiro com a sua arte, pode não existir nenhuma associação sexual explícita. Este caso está, pois, fora da «comunidade crossdresser» no sentido em que não anda explicitamente à procura de mais nada. O caso das pessoas que usam roupa feminina como forma de fetiche para proporcionar mais prazer durante a masturbação também, regra geral, não é «público». Não falamos do que fazemos quando nos masturbamos com os amigos. Pelo menos, não o fazemos enquanto homens.
Ora justamente onde começam a haver problemas, isso sim, é na disforia de género.
Penso que cada vez é mais difícil traçar uma linha divisória nestes grupos todos, porque infelizmente usam uma linguagem tão parecida uns com os outros, que é nos pormenores que está a diferença. E esses pormenores podem ser completamente insignificantes, ou, se não forem, não são visíveis externamente.
Assim, parece-me que o caso mais extremo é o mais fácil de identificar. Alguém que está prestes a cometer suicídio porque identifica-se com o género oposto ao biológico tem claramente perturbação de identidade de género, e o caminho é bem claro: a transição medicamente acompanhada. Em Portugal, nestes casos, a lei é bem clara; estas pessoas são, enquanto estiverem em transição, designadas de transexuais. Quando terminam a designação, são designadas pelo sexo com que se identificam.
Os transexuais (MtF) não têm praticamente nada em comum com as crossdressers. Para eles, não se trata de uma «fantasia». Ao contrário do que a piada diz — a que citei ao início — a verdade é que a maioria dos transexuais que conheço nunca fez crossdressing até ter um diagnóstico de perturbação de identidade de género. Na literatura apanham-se muitos relatos de transexuais que até experimentaram roupa feminina, a ver se lhes proporcionava algum alívio, mas rapidamente chegaram à conclusão que o seu corpo era de tal forma diferente da imagem mental que tinham, que a roupa lhes ficava horrivelmente. Rapidamente abandonam essa ideia, e, eventualmente, procuram, isso sim, apoio para a transição. Aí, uma vez entrando no teste da vida real, começam realmente a usar roupa do género com que se identificam, muitas vezes pela primeira vez na vida, ou, se não o for, pelo menos será pela primeira vez na vida que se vão familiarizar com as roupas e os acessórios. Mas estes, por si só, não têm normalmente qualquer conotação sexual, seja enquanto fetiche de objecto, seja como meio de obter um parceiro sexual. São apenas consequências sociais da transição para o género oposto.
Aliás, é pelos vistos uma marca distintiva da transexualidade a baixa líbido, que está associada também à depressão causada pela disforia de género. Isto quer dizer que, ao contrário do que os filmes pornográficos nos possam dizer, as transexuais normalmente a última coisa que estão a pensar é em sexo — porque consideram que nem sequer têm o corpo apropriado para o tipo de sexo que têm em mente, e isso naturalmente lhes diminui drasticamente o interesse na actividade sexual. Há, evidentemente, excepções, e não se pode generalizar.
Como infelizmente em muitos países (o que inclui o nosso) a transfobia é de tal forma forte que um número substancial de transexuais não consegue encontrar emprego, muitas (especialmente as MtF) são obrigadas a recorrer à prostituição (e, nalguns países, aos filmes pornográficos) como forma de subsistência. Tal como as mulheres genéticas que se prostituem, não o fazem porque gostem de sexo, mas principalmente porque precisam do dinheiro para sobreviver. Mas isto, claro, cria imediatamente a imagem errada no público em geral: de que as transexuais MtF o que sempre quiseram é ser prostitutas, e que conseguiram «convencer» o Estado a pagar-lhes a operação. Isto, por sua vez, é uma fonte enorme de transfobia, pois o que o público em geral vê é que existe uma classe de pessoas com uma fantasia sexual para a qual o Estado paga para que possam explorar livremente essa fantasia sexual!
Two wrongs don’t make one right, como dizem os anglo-saxónicos. Ou seja, neste caso, a imagem que passa à sociedade em geral contém dois erros graves. O primeiro é assumir que todas as pessoas que fazem crossdressing o fazem por questões sexuais. O segundo é assumir que todas as prostitutas o sejam porque gostem. Juntam-se as duas coisas, e é fácil de explicar a transfobia!
Mas esta imagem é muito, muito difícil de combater, especialmente dado ao elevado número de transexuais que não têm outra forma de subsistência senão a prostituição. Cabe aqui ao Estado o papel de encontrar alternativas para as tirar da rua, já que a sociedade, sendo transfoba, não o quer fazer.
Bom, este é o caso mais fácil de identificar. Mas infelizmente na realidade as coisas ainda são mais complicadas.
Existe uma outra condição psíquica que é semelhante à transexualidade, pelo menos externamente, e que é disforia do corpo. Nesta condição, a pessoa tem horror ou nojo de certas partes do seu corpo, e quer ver-se livre delas ou modificá-las. Tipicamente existe auto-mutilação, mas, nos dias que correm, e dependendo da capacidade da pessoa em si de obter a informação que procura, podem existir outras formas de alcançar o mesmo resultado. Por exemplo, a anorexia pode ser vista como uma forma de disforia do corpo, em que a pessoa em questão, por mais que se pese, que se veja ao espelho, e que tire medidas, vai continuar a convencer-se de que está gorda demais.
Há inúmeros casos de disforia de corpo, alguns que se aplicam apenas a uma parte (um pé, uma mão, um nariz…), à cor da pele (como era o caso do Michael Jackson… «nunca era suficientemente branco»), ou, evidentemente, também relativamente aos genitais. De notar que neste caso, o horror aos genitais não indica uma disforia de género, mas meramente de corpo.
Obviamente que todas as pessoas transexuais sofrem de disforia do corpo relativamente a todas as partes do seu corpo (e serão praticamente todas!) que não associem ao género com que se identifiquem. Mas aqui existem justamente dois diagnósticos completamente diferentes. No caso da disforia de corpo, o tratamento psicológico é para ajudar a pessoa a lidar com o seu próprio corpo, tal como está. No caso da disforia de género, mesmo que acompanhada de uma (natural e óbvia) disforia de corpo, modifica-se o corpo para estar de acordo com o género com que se identifica. Em praticamente todos os casos, uma vez completada a transição, a disforia de corpo naturalmente desaparece, uma vez que este esteja alinhado com o género com que se identifica.
Há formas menores de disforia de corpo que podem ser inofensivas e que não requerem tratamento psiquiátrico ou psicológico. Por exemplo, o horror aos pelos no corpo, que se resolve com laser. Uma pequena correcção cirúrgica aqui ou ali para disfarçar um nariz feio (ou que é considerado feio). Não seria legítimo considerar tais situações como uma «disforia», especialmente se estas não levarem à depressão.
No entanto, o estado da arte do estudo sobre a transexualidade ainda tende a interpretar a perturbação de disforia de género como uma situação de «tudo ou nada»: ou seja, ou se é transexual, ou não se é. Não existem «meios transexuais», pelo menos no entendimento clínico da palavra. Na realidade, no entanto, mesmo a legislação portuguesa contempla algumas excepções.
Assim, os transexuais podem não ser «obrigados» a apresentar uma disforia de corpo total, pois o que conta para o diagnóstico é a sua identidade de género, não o corpo. É em Portugal possível fazer a transição, do ponto de vista clínico e legal, sem obrigar o paciente a efectuar transformações no corpo, seja pela via das hormonas ou da cirurgia. Isto é um passo muito importante, que não era reconhecido nos anos 1990, em que se julgava — erradamente — que a disforia de género era automaticamente acompanhada de uma disforia de corpo total, mas isso (sabe-se hoje) não é verdade. Apesar de ser normal e natural essa disforia de corpo existir, num grau maior ou menor, não é forçoso que todos os casos sejam idênticos. Mas o único tratamento eficaz para a disforia de género é realmente a transição; para a disforia de corpo, quando presente, existem muitos outros.
Para complicar ainda mais as coisas, temos casos em que a disforia de corpo está associada a fantasias sexuais, ou, talvez mais correctamente (em muitos casos pelo menos), a uma parafilia. O indivíduo em questão pode achar que, para poder dar azo à expressão da sua fantasia, tenha de fazer modificações físicas no seu corpo. Ou seja, considera que o seu corpo não seja apropriado para as fantasias que pretende. Nalguns casos isto é perfeitamente aceitável socialmente: é o caso de mulheres genéticas que pretendem o aumento dos seios porque acham que assim podem proporcionar mais prazer aos companheiros, ou encontrar mais parceiros sexuais.
Já no caso de se tratar de um homem genético que deseja ter atributos femininos (seios, ancas…) com o objectivo de obter mais prazer sexual, a coisa complica-se. No meio da pornografia, chamam-se a estas pessoas, com (infelizmente) muito preconceito, shemales. Normalmente não fazem a cirurgia de reatribuição de género, mantendo, pois, o pénis. De resto, feminizam o corpo de acordo com as suas possibilidades (físicas e financeiras). É difícil «encaixá-las» muito bem na panóplia de pessoas transgénero. Se têm disforia de género diagnosticada, então não são shemales, são meramente transexuais em transição, para as quais terem eliminado todos os elementos masculinos do corpo é irrelevante para a sua identidade de género (justamente, em Portugal, a lei não o obriga). Dado que todos os restantes atributos físicos são femininos, estas pessoas normalmente não têm outra alternativa senão viverem o tempo inteiro como mulheres — alternativa que, obviamente, lhes dá prazer! — mas, lá está, podem não ter um diagnóstico de perturbação de identidade de género. Podem nem estar interessadas em ter essa «classificação» de todo.
No Brasil, curiosamente, existe uma designação para as pessoas que vivem 24h/dia o género feminino, sem terem feito a cirurgia de reatribuição de género: chamam-lhes travestis (o que só vem confundir ainda mais a população portuguesa, para a qual a palavra travesti designa, em exclusivo, o artista transformista), o que corresponde essencialmente à designação que os anglo-saxónicos dão de pre-op transexuals, ou seja, transexuais em transição que ainda não realizaram a operação de reatribuição de género. Estas designações são antigas e estão um pouco fora de moda, pois referem-se a um período no tempo em que só podia ser formalmente «transexual» quem estivesse disposto a realizar todas as operações. Isto conduziu a uma forte discriminação entre os post-op transexuals — que podiam mudar legalmente o género nos seus documentos — e aqueles que, pelas mais diversas razões, não podiam realizar as cirurgias todas, ficando-lhes negada a possibilidade de viverem de acordo com o género com que se identificavam. Esta situação, por exemplo, não existe em Portugal, pelo que as designações pre-op e post-op não fazem qualquer sentido. No entanto, no caso brasileiro, cuja legislação ainda não é tão liberal, há, de facto, muitas pessoas às quais é negada a transição, mas que optam mesmo assim por viverem 24h/dia como mulheres. Como não podem fazer a cirurgia de reatribuição de género, e as cirurgias estéticas (como os implantes mamários e a cirurgia de feminização facial) podem ser caras demais (pois se não estiverem em transição oficial, estas não são subsidiadas), e a terapia hormonal terá de ser feita em regime de auto-medicação, são uma espécie de párias da comunidade transgénero. Não se identificam com as crossdressers, que no Brasil estão sempre associadas a pessoas que são apenas mulheres em part-time; mas, pelas mais diversas razões, não podem ser legalmente transexuais. Então adoptam a designação travesti.
Infelizmente, seja no caso da travesti brasileira, ou nas shemales do espaço anglo-saxónico, o problema para o público em geral é a proliferação de pornografia em torno das shemales. É muito difícil criar uma imagem «positiva» de shemales quando tudo o que se encontra na Internet sobre elas está estritamente relacionada com pornografia. Há razões para isto que não têm nada a ver com preconceitos contra a pornografia. Em muitos dos casos — talvez na maioria deles, o que é difícil de afirmar porque não existem estatísticas credíveis — a razão principal para que tenha sido negada às travestis ou shemales a cirurgia de reatribuição de género e uma transição medicamente assistida, é porque, ao final de um processo de avaliação psicológica, se constatou que o comportamento como uma pessoa do género oposto ao que foi atribuído à nascença, nestes casos, tem um único objectivo: procurar parceiros sexuais. Assim, no entender dos médicos, estas pessoas são principalmente (mesmo que não exclusivamente) motivadas por fantasias sexuais associadas a um dismorfismo corporal. Para estes casos, caso exista sofrimento, pode haver outro tipo de tratamentos, mas estes não passam pela transição medicamente assistida. Discriminação? Talvez. O facto é que há mesmo uma enorme conotação com o sexo e a pornografia, e esta imagem é, infelizmente, encorajada por muitas travestis/shemales, o que não ajuda.
Isto também significa que as transexuais em transição, se optarem por não fazer a cirurgia de reatribuição de género, podem estar sujeitas a este preconceito adicional (como se já não sofressem o suficiente!). É essa a razão pela qual existe tanto conflito — especialmente no Brasil, mas não só — entre crossdressers, travestis, e transexuais. As transexuais sentem-se «ameaçadas» pelas imagens excessivamente conotadas com sexo e pornografia popularizadas pelas travestis/shemales; mas tendem a incluir as crossdressers no mesmo «pacote», já que muitas crossdressers — segundo um livro que li, baseado em alguns estudos, cerca de 90% — apenas o são para encontrar parceiros sexuais. Por sua vez, as 10% de crossdressers que meramente manifestam fisicamente a sua auto-imagem feminina através de roupa e comportamento, sentem-se igualmente ameaçadas pelas travestis/shemales (e pelas restantes crossdressers fetichistas!), pois estas «puxam» a imagem de que a única razão para um homem vestir roupa de mulher é para ter sexo com outros homens. Claramente é difícil haver entendimento entre estes grupos!
Do ponto de vista médico e legal, existe igualmente um problema com as shemales. As modificações cirúrgicas do próprio corpo não são, regra geral, proibidas, antes pelo contrário, a cirurgia estética está liberalizada. No entanto, uma das condições para recusar a transição é quando a única razão dada para isso é «melhorar a vida sexual». Na verdade, mesmo que a pessoa se disponha a pagar pelas cirurgias, a maior parte dos cirurgiões no ocidente vai recusar-se a fazê-las, se não existir um diagnóstico prévio, nem estabelecido, de perturbação de identidade de género. Não é por acaso que tanta gente vai fazer cirurgia na Tailândia (ou, em menor número, no Brasil): não é só pelo preço (embora esse factor seja também importante) ou pela experiência profissional (os cirurgiões tailandeses fazem tantas cirurgias que têm uma vasta experiência para lidar com os problemas que possam ocorrer; compare-se o caso de quem faz este tipo de cirurgias várias vezes por dia, com os cirurgiões portugueses que, no máximo, fazem umas 20-30 cirurgias por ano).
Em resumo: apesar de poderem haver dois termos que parecem descrever todos estes tipos — crossdresser, transexual — ou mesmo apenas um — transgénero — a verdade é que existe uma variedade incrível de pessoas, com motivações completamente diferentes, que se identificam com estes termos. Isto é muito diferente da imagem que era passada nos anos 1990 nos sites informativos sobre o assunto. Aí as coisas eram apresentadas de forma extremamente simplista: se um homem gostava de vestir roupa de mulher ocasionalmente, e fazia-o por uma questão de «alívio» do stress diário, ou para estar em contacto com a sua auto-imagem feminina, ou qualquer uma razão inocente, então era crossdresser. Se tinha um horror ao corpo, com o qual não se identificava, sabendo que o seu género mental estava completamente em contradição com o género físico/biológico do corpo com que tinha nascido, era transexual, e tinha de optar pela transição, o mais depressa possível. Havia aqui um binário muito simples para classificar as pessoas transgénero. E, em certa medida, também era mais simples encontrar uma «ponte» entre os dois subtipos, vistos como «principais». Em ambos os casos, falava-se da questão da auto-imagem, da identidade de género. Nuns casos, esta necessidade de expressão da auto-imagem apenas requeria uma manifestação física temporária e de duração limitada: a pessoa em questão era «meramente uma crossdresser». Noutros casos, o conflito entre a auto-imagem e o corpo era demasiadamente forte para que a pessoa pudesse levar uma vida normal: era transexual, e tinha de resolver o conflito pela via da cirurgia. Assim, poder-se-ia dizer que havia uma gradação da intensidade da auto-imagem. A palavra transgénero era bastante apropriada neste sentido, e, da mesma forma, podiam-se incluir mais subtipos dentro desta gradação.
Por exemplo, ao nível mais essencial, podemos ter apenas uma auto-imagem que não corresponde ao nosso género, mas não termos absolutamente nenhuma necessidade de manifestação física dessa auto-imagem. A estas pessoas aplicou-se um termo, inventado há relativamente pouco tempo por Jack Molay, e ainda clinicamente pouco reconhecido: crossdreaming. Neste estado, falamos apenas de imaginação. Isto não significa que não existam nestes casos qualquer disforia de género; antes pelo contrário. No entanto, o indivíduo pode achar que não é através da manifestação física pelas roupas e pelo comportamento enquanto vestido do género oposto que os conflitos internos se resolvem. Muitos crossdreamers, por exemplo, exprimem-se ou manifestam-se apenas através da sua arte: escrevem, pintam, desenham. Ou então lêem literatura transgénero para satisfazerem a sua auto-imagem, imaginando como seria a vida como o género oposto.
No estágio seguinte desta linha de pensamento, pode então surgir a necessidade de alguma manifestação física. Pode ser apenas vestir alguma roupa do género oposto: o suficiente para suscitar algum alívio. Pode ser necessário mais do que isso: pode ser preciso, com alguma frequência e regularidade, vestir-se inteiramente do género oposto, e comportar-se de forma apropriada. Esta experiência pode ser inteiramente solitária e praticada em segredo, ou pode necessitar de interacção com terceiros. Aqui estamos no domínio do crossdressing no seu sentido mais clássico. Há, obviamente, uma continuidade. Embora muitos crossdreamers nunca se tornem crossdressers (provavelmente a maioria nunca o fará), há muitos que passam de uma fase para a outra. Dentro dos crossdressers, é difícil, a priori, prever qual seja a sua «evolução». Também existe aqui uma diferença substancial entre crossdreamers masculinos e femininos. Uma crossdreamer feminina que se identifique com o género masculino não tem qualquer problema social em assumir vestuário e comportamento masculinos, e fazê-lo toda a sua vida, em permanência, sem qualquer problema — para as mulheres, não passa apenas de uma escolha de um estilo pessoal. Para os crossdreamers masculinos, tal escolha não é socialmente aceitável, pelo que é normal haver justamente uma enorme gradação dos vários subtipos de crossdressers MtF, desde aquelas que só usam uma cuequinha de vez em quando, às que passam quase todo o tempo privado vestidas dos pés à cabeça de mulheres, e saiem frequentemente em público vestidas de mulher, mas passam os dias no emprego comportando-se como homens. Um caso particular são as pessoas com fluidez de género, que não se identificam com nenhum género em particular, e o seu comportamento ou é um misto dos dois géneros, ou é diferente de ambos; ou ainda, opcionalmente, têm dias em que se vestem completamente de homens e outros em que se vestem completamente de mulheres, consoante o seu estado de espírito, sem dar particular ênfase a um dos géneros em partocular.
E no terceiro estágio, meramente usar roupa do género com que se identificam e adoptar comportamentos não é suficiente: é necessária a modificação física do próprio corpo, que é rejeitado com sendo inapropriado à auto-imagem e ao género com que se identificam; nesse caso serão transexuais. A rejeição do corpo pode, no entanto, ser incompleta; a identificação com o género pode não estar sequer associada ao corpo; a legislação portuguesa contempla justamente estas situações e permite a transição legal para o género com que a pessoa se identifique, sem obrigar que esta efectue modificações corporais, de vestuário, ou de comportamento.
É muito interessante observar que não há forçosamente uma «transição» suave entre estes vários subgrupos. Na realidade, pelo que tenho observado, é muito mais frequente que as pessoas com diagnóstico de perturbação de identidade de género nunca, ou quase nunca, tenham passado por uma fase de crossdressing. Se o fizeram, foram episódios esporádicos no passado, em que, identificando-se claramente com o género oposto ao do seu corpo físico, naturalmente usaram roupas apropriadas ao género com que se identificavam, mas depois repararam que algo estava de profundamente errado: o seu corpo claramente não correspondia ao género com que se identificavam, e não eram as roupas que iam mudar isso. Assim, acabam por abandonar o crossdressing, por considerá-lo essencialmente inútil para o que pretendem. Retomam-no apenas durante a fase de transição.
Ora esta linha de explicação, muito popular nos anos 1990, como se pode ver, deixa completamente de fora o aspecto das fantasias sexuais. É como se não existisse. E é, por isso mesmo, demasiado simplista. Pior que isso: não corresponde, em nada, à imagem do público em geral. Mas se for mesmo sincera, terei de dizer que o público em geral, neste caso, tem toda a razão. É que a esmagadora maioria das pessoas ditas «transgénero» na realidade são fetichistas. Estas explicações que ignoram o fetichismo, como se não fosse «importante», são muito redutoras e não abraçam toda a fenomenologia. Mas o problema — e aqui reside a raíz do conflito! — é que estas duas comunidades pensam de forma completamente diferente, têm objectivos radicalmente opostos, não se identificam minimamente uns com os outros. Mas são «atirados todos para o mesmo saco».
Não a nível médico, claro está, em que é importante justamente separar as questões fetichistas das questões de identidade de género. Uma razão pela qual há tantos conflitos entre travestis brasileiras/shemales no resto do mundo, e a comunidade transexual, é que é negada às primeiras o direito à transição medicamente assistida (e legalmente sancionada), enquanto que as segundas não querem, de todo, serem identificadas com as primeiras. Há uma certa dose de «dor de cotovelo»: as shemales também querem operações subsidiadas pelo Estado, a custo baixo — e a risco médico baixo, comparado com a auto-medicação e as cirurgias efectuadas por profissionais menos escrupulosos — e não entendem porque é que os médicos estão dispostos a ajudar as transexuais, mas não as shemales. Parece-lhes, da sua perspectiva, que existe uma discriminação. Isto faz com que também mintam descaradamente aos médicos — por exemplo, deliberadamente ocultando pormenores da sua vida sexual — na esperança de assim poderem obter as tão desejadas cirurgias e a terapia hormonal que pretendem. Quando estes não se deixam enganar, perdem todo o respeito pela comunidade médica e científica, e optam pelas soluções que lhes restam — a auto-medicação, a auto-mutilação, ou, se conseguirem, as operações cirúrgicas efectuadas noutro país com menos escrúpulos.
Mas para a restante comunidade esta atitude é perigosa. Se existe transfobia é, infelizmente, por causa desta associação do transgenderismo às fantasias sexuais. A sociedade em geral tem horror a fantasias sexuais que questionem a identidade de género. E isto não é meramente uma questão moral ou ética, é um pouco mais profundo que isso.
Há um mito, perpetuado evidentemente por doutrinas religiosas, que todas as pessoas são naturalmente 100% masculinas ou 100% femininas. Este mito não assenta em realidade nenhuma; não passa de um mito. No entanto, tem sido propagado ao longo de tantas gerações que se recorre à falácia da antiguidade: essencialmente, como as coisas «foram sempre assim desde tempos imemoriais», têm de ser verdade.
Hoje em dia, claro, sabemos que o mito não passa disso mesmo. Ninguém é 100% masculino nem 100% feminino; todos nós somos uma mistura de componentes que tradicionalmente associamos mais a um género do que o outro. Nada poderia ser mais elucidativo para «quebrar» o mito que olhar para a percentagem de mulheres licenciadas em Portugal: certas disciplinas da ciência, como a química ou a medicina, mas também o direito, são, hoje em dia, dominadas pelas mulheres. Não é só dizer que há mais médicas que médicos, ou mais engenheiras químicas que engenheiros químicos: é que são mesmo muito mais. Há já neste momento muito mais juízas que juízes! Ora todas estas profissões que eram vistas como «eminentemente masculinas» — justificando, de forma machista, que «as mulheres não têm cabeça para essas coisas» — deixaram de o ser. Também existe o inverso, claro: por exemplo, até cerca de 1985, a profissão de programador de computadores era uma profissão estritamente feminina (até «parecia mal» um homem gostar de programar!). Nos últimos 30 anos, a tendência inverteu-se completamente, e só muito recentemente é que voltaram a aparecer mulheres programadoras — saltando-se praticamente toda uma geração. Poderia dar muitos exemplos semelhantes, e o caso português é particularmente notório ao mostrar que já não há profissões 100% masculinas ou 100% femininas, mas principalmente que aquilo que se «pensava» serem propensões «tipicamente masculinas/femininas» há uma geração atrás, estão hoje completamente refutadas pela realidade.
Assim, só mesmo para os fundamentalistas religiosos, cujos argumentos não se baseiam nem na lógica, nem na observação, é que podem existir pessoas 100% masculinas ou femininas. Na realidade, todos somos uma mistura, em maior ou menor proporção.
A transexualidade vem justamente expôr esse «receio» de que cada um de nós não seja, de facto, 100% masculino ou feminino. Ou seja: uma pessoa que nasce com o corpo errado e que transita para o género com que se identifica, modificando o seu corpo nesse processo, mostra claramente que o género não pode ser uma questão binária, codificada no DNA. O sexo biológico, sim; mas o género não. Há, isso sim, propensões genéticas (e principalmente embriológicas) que condicionam determinados aspectos do comportamento, que podem ser mais masculinos ou femininos; essas propensões genéticas depois são condicionadas comportalmente de acordo com os padrões da sociedade. Por isso é legítimo dizer que alguém que tenha cromossomas XX vai ter algumas propensões para exibir determinadas formas de pensar, às quais estão ligadas depois algumas formas comportamentais, que indiciam uma identificação com o género feminino (um exemplo típico: a propensão para a maternidade). Quando existe depois um condicionamento social para que estes comportamentos sejam adquiridos, reforçados, e manifestados, é natural, pois, que os indivíduos com cromossomas XX se vejam a si mesmas como mulheres e se comportem como tal. Mas estamos aqui a falar apenas de potencial. Não são os cromossomas XX ou XY que determinam como o cérebro pensa. No entanto, também é verdade que a forma como o cérebro funciona é determinado não apenas pelo sistema nervoso central, mas também — e isto anda esquecido há muito tempo! — pelo chamado sistema mensageiro químico, um método um pouco menos rápido que o sistema nervoso central a enviar mensagens ao cérebro, mas que tem uma vantagem sobre este: é que permite modificar a forma como o cérebro funciona, e não apenas tirar proveito das ligações neuronais existentes. Este sistema mensageiro químico, porventura desconhecido da maioria das pessoas sem uma base de formação médica/biológica, é assente naquilo que popularmente chamamos de hormonas.
Toda a gente conhece o efeito primário de uma hormona típica como a adrenalina: por momentos, sentimos mais energia, corremos mais depressa, agimos instantaneamente. Mas o que normalmente nem reparamos é que também não sentimos dor por uns bons minutos (ou esta é muito atenuada). E o que não notamos de certeza é que a adrenalina modifica o cérebro: somos capazes de pensar muito mais depressa (para lidar com emergências). Isto não é meramente um acaso, ou apenas os neurónios a disparar mais depressa; não, há mesmo modificações estruturais a nível do cérebro. É como se substituíssimos o nosso cérebro por um outro que funciona de forma diferente.
Felizmente todos sabemos que estas modificações são temporárias; os efeitos da adrenalina duram alguns minutos — cerca de quinze, de acordo com alguns artigos que li …— e depois desaparecem. Ou seja: o cérebro modifica-se de novo. E o organismo, que foi sobrecarregado, tem de recuperar a energia dispendida — por isso, depois de um episódio intenso em que a adrenalina foi libertada, ficamos cansados, temos de descansar ou mesmo dormir.
No caso das hormonas sexuais — e aqui, sim, os cromossomas XY e XX têm um papel! — há realmente modificações estruturais que ocorrem a nível do cérebro, de forma mais ou menos permanente. O «mau feitio» que as mulheres exibem durante a menstruação não é «meramente psicológico», mas sim resultado real de modificações físicas que ocorrem no cérebro. Podemos, claro está, aprender a lidar com estas modificações. Mas, por exemplo, é justamente na adolescência, quando estamos sob efeito de uma maior intensidade de libertação de hormonas sexuais, que temos justamente alguma dificuldade em lidar com as mudanças que se operam a nível do cérebro. Com a idade, no entanto, aprendemos a lidar com esta situação: o nosso cérebro de adolescente já não é o mesmo que o de criança, funciona de forma diferente. Mas também é a mesma razão pela qual as mulheres na menopausa — e, em certa medida, os homens na andropausa — quando as hormonas diminuem de intensidade e o cérebro se modifica uma vez mais, causando de novo mudanças de comportamento. No caso das mulheres, deixam de estar tão sujeitas às hormonas femininas, pelo que podem exibir justamente um comportamento tipicamente masculino: agressividade. Por sua vez, os homens que entram em andropausa, deixando de «fabricar» tanta hormona masculina, podem tornar-se mais calmos, mais passivos e letárgicos (ou mesmo entrar em depressão), e perder progressivamente o interesse na actividade sexual, o que por sua vez os pode irritar (mas não pelas mesmas razões!) e frustrar.
Também é curioso de observar que as mulheres, quando entram em menopausa, como lhes diminui drasticamente a líbido, perdem o interesse em arranjar-se. Há quem atribua isto apenas ao facto de muitas engordarem, e nada lhes servir, pelo que desistem. Mas penso que as coisas são um pouco mais complexas do que isso. À medida que a menopausa vai avançando, e as hormonas femininas diminuem, com o consequente aumento de hormonas masculinas (sim, porque todos nós temos ambos os tipos), a sua auto-imagem feminina é subtilmente «abalada», questionando a identificação de género. Tal como as mulheres se «sentem mulheres» desde o momento em que têm o primeiro período, também «deixam de se sentir mulheres» quando têm o último. Pode parecer idiota afirmar estas coisas, mas curiosamente tem muito a ver com a questão da identidade de género associada ao equilíbrio hormonal. E, uma vez ultrapassada a complicada fase da menopausa, é irónico observar que, em muitos casos, as mulheres voltam a ganhar auto-estima, a «tornarem-se mais mulheres» de novo, apesar de terem uma redução de hormonas femininas. É que depois da menopausa, também a produção de hormonas masculinas diminui…
Seja como for, esta minha pequena divagação serve apenas para ilustrar que não só nunca somos 100% masculinos ou femininos, mas, pior que isso, ao longo da nossa vida, esta «masculinidade» ou «feminidlidade» se vai alterando com o tempo. Nem sequer é uma coisa que esteja «fixa»!
Ora a esmagadora maioria das pessoas recusa-se a aceitar isto. Penso que isto é particularmente verdade no caso dos homens (as mulheres, visto estarem mais sujeitas a um fluxo hormonal cuja intensidade aumenta e diminui ao longo do ciclo menstrual, talvez estejam mais aptas a aceitar que a mudança pode existir), o que pode ser também socialmente condicionado, de forma mais intensa que para as mulheres. A minha experiência é que a maioria das mulheres é, regra geral, mais tolerante do que a maioria dos homens; e isto tem muito a ver com a educação que receberam. É que nos tempos modernos, os homens são educados para terem determinados objectivos na vida: tirar determinadas profissões, obter sucesso na vida, estabelecer família, tornar-se um modelo de virtude e de liderança. As mulheres, hoje em dia, são educadas com a noção de que podem ser o que quiserem. Pelo contrário, são normalmente desencorajadas de adoptarem um papel tradicionalmente feminino, que é rejeitado — foram décadas de activismo femininista que as condicionou para aceitarem que têm a liberdade de escolher o que querem para a sua vida, sem que lhes seja imposto. Isto não quer dizer que não continue a haver discriminação entre os géneros. Quer apenas dizer que existe um leque muito mais vasto e abrangente de opções para as mulheres. Isto também significa que, em geral, estão mais abertas e mais tolerantes às escolhas.
Seja como for, em pessoas com menor abertura de espírito, o mito de que as pessoas «não mudam» e que tudo «está determinado à nascença» é claramente violado pela existência de pessoas transgénero. Assim, é compreensível — mas não aceitável! — que essas pessoas que acreditam profundamente nesse mito sejam obrigadas a confrontar-se com a falsidade do mesmo, ao observarem pessoas transgénero, e é esta a fonte principal da transfobia.
Mas não é a única. O outro elemento, que considero quase tão importante, é a forte associação da transgenderidade com as fantasias sexuais. Por outras palavras: a imagem do público em geral que seja transfobo é que as pessoas transgénero, sejam elas «meramente crossdressers» ou realmente transexuais, apenas o são porque querem ter novas experiências sexuais. Como as fantasias sexuais que envolvem o role-playing de género não são muito frequentes, pelo menos comparadas com as restantes, existe um certo «horror» a que as pessoas detentoras destas fantasias as possam exibir em público, já que a maioria das pessoas não o faz. Para pegar num exemplo típico: alguém que reconheça existirem fantasias sexuais como o BDSM ou o swinging não está à espera que os sadomasoquistas ou os swingers se exibam em público. Respeitam-nos por o fazerem em privado. No entanto, alguém que, para eles, tem a fantasia sexual de se vestir de mulher para ter sexo com outros homens, e sai à rua vestido de mulher, está a forçar as outras pessoas a aceitar publicamente as suas «fantasias». Ou seja: aquilo que vêem como sendo uma coisa estritamente da esfera privada (o que fazem na cama, é com eles), passa a ser uma coisa do foro público, com as quais são obrigadas a confrontar-se — mas não o querem fazer. E invocam, de certa forma até justificada, que ninguém deve ser «obrigado» a estar exposto publicamente a fantasias privadas.
Ora nestes casos de nada serve invocar o facto de que as pessoas com disforia de género, ou perturbação de identidade de género, não têm nada a ver com «fantasias sexuais», mas sim com algo de completamente diferente. Infelizmente, o número real de pessoas com alguma forma de disforia de género é na realidade ínfimo comparado com o número de pessoas que têm fantasias sexuais envolvendo crossdressing. E é este que predomina. Assim, a aversão da esmagadora maioria das pessoas contra a exibição pública de fantasias sexuais — coisa, que por si só, até seria justificável — extende-se para o grupo das pessoas transgénero que não estão a desempenhar nenhuma fantasia sexual, pois, visto de fora, estes dois grupos são fisicamente indistinguíveis uns dos outros. E é aqui que reside o problema real da transfobia, e um que é particularmente difícil de eliminar.
Quando vejo campanhas de sensibilização quanto à transfobia, promovidas por activistas dos direitos LGBT, pessoas bem intencionadas, o que vejo é que estão a tentar esconder a realidade da situação. É que não é fácil sensibilizar uma população para com os problemas das pessoas que realmente têm alguma forma de disforia de género, quando, na realidade, a maioria das pessoas transvestidas que vão ser encontradas nas ruas são de facto meras fetichistas sexuais. Tenho sempre esta imagem mental de uma sessão de sensibilização contra a transfobia, e ver as pessoas a sairem da sala, muito emocionais, compreendendo profundamente o trauma do sofrimento de quem sofre de perturbação da identidade de género, e, ao encontrarem a primeira crossdresser na rua, a abraçam, cheias de pena dela, dizendo: «Agora que aprendi imenso sobre o que sofres com a tua disforia de género, como compreendo bem o teu sofrimento!» ao que recebem a resposta, indignada: «Qual disforia, qual carapuça! Eu gosto é de me sentir como uma puta e ando mas é à procura de quem me queira comer!»
Como isto pode acontecer em 9 de cada 10 casos, qual é a imagem, pois, que essas pessoas terão depois de uma acção de sensibilização que só se focou num caso, mas resolveu esquecer os restantes nove? Como podemos obter sensibilidade e empatia da população em geral para com os problemas da transexualidade, e da necessidade de mais direitos e de maior protecção, quando na esmagadora maioria dos casos, o que as pessoas vão encontrar publicamente, não corresponde a nada do que foi dito nas acções de sensibilização?
Em Portugal há 30, 50, talvez 70 casos de transexuais acompanhadas pelo serviço nacional de saúde. Talvez haja mais uma centena de casos que ainda não passaram pelo SNS, e que se calhar nunca passarão. Em compensação, há milhares de perfis no Facebook de crossdressers à procura de parceiros para as suas fantasias sexuais. Como é que o público em geral nos julgará, se é esta que é a realidade?
Vou dar outro exemplo ainda mais estúpido. Como sabem, médicos e enfermeiros têm o direito de assinalar a marcha de urgência em viaturas, para poderem transportar doentes mais depressa para os hospitais. Em Portugal somos particularmente respeitadores desta situação; já ouvi dizer de estrangeiros que ficam pasmados da forma cívica como os portugueses, em plena hora de ponta, nos mais densos engarrafamentos de trânsito, fazem o esforço possível e impossível por deixar passar uma ambulância. Há algo que nos faz pensar, «podia ser eu que fosse lá dentro» e que, ao contrário da nossa mentalidade nacional profundamente egoista e pouco cívica, neste caso comportamo-nos de forma exemplar, respeitando profundamente os direitos dos médicos e dos enfermeiros.
Mas agora imaginem que a fantasia sexual de «brincar aos médicos e enfermeiros» — uma fantasia muito popular — passava a ter uma vertente pública, ou seja, que estes fetichistas desatavam a andar pelas ruas das cidades a assinalar marcha de urgência — o que decerto lhes traria imensa adrenalina e que iria potenciar ainda mais a actividade sexual! Imaginem mesmo que passassem a usar ambulâncias que fossem indistinguíveis das verdadeiras. Mais ainda: que a proporção de fetichistas para médicos e enfermeiros reais fosse de 10:1. Será que as pessoas ainda estariam dispostas a respeitar os «direitos» dos médicos e enfermeiros, auxiliando-os a passar? É que se fosse impossível distinguir uns dos outros, o que o público pensaria era que, na esmagadora maioria dos casos, o que estava a passar por eles era apenas um fetichista, que não «merece» que lhe respeitem a marcha de urgência. Mas isto indignaria profundamente os verdadeiros médicos e enfermeiros, que seria prejudicados na sua actividade!
Claro está que neste caso, como é evidente, a legislação proíbe que as pessoas se façam passar por médicos ou enfermeiros em público, e que se arroguem dos mesmos direitos que estes, em nome da liberdade sexual. Este cenário, pois, é completamente absurdo. Mas ilustra bem a problemática. As pessoas que sofrem realmente de alguma forma de disforia de género são uma minúscula minoria comparadas com as fetichistas sexuais. O problema é que ambas andam nas ruas, ou no Facebook, de forma pública, e são indistinguíveis umas das outras. As primeiras — as que sofrem mesmo de perturbação de disforia de género clinicamente comprovada — gozam, no entanto, de especial protecção dos seus direitos por parte do Estado. As fetichistas gozam meramente do direito de liberdade sexual. O público em geral, pois, tem muita dificuldade em compreender porque é que algumas pessoas, que são indistinguíveis das restantes, devem ter mais direitos que as outras, especialmente quando as outras são uma esmagadora maioria. Por outras palavras, é mesmo muito, muito difícil fazer compreender a população em geral que a disforia de género não é um fetiche sexual, pois a única experiência que essa mesma população terá é a do fetichismo sexual. Mais ainda: para a maioria das pessoas, o «desejo de se ser mulher» só é compreensível e explicável se estiver ligado ao desejo de ter sexo como uma mulher. Caso contrário, é completamente incompreensível. A fantasia sexual, por mais que possa parecer aberrante, é, no entanto, «compreensível» (excepto para quem siga doutrinas religiosas que efectivamente abolem praticamente todas as formas de expressão sexual… e que mesmo no casamento são limitadas ao acto reprodutivo). Digamos que, como todas as pessoas têm fantasias sexuais, é fácil compreender que outros também as tenham, mesmo que as achemos estranhas. No entanto, como a esmagadora maioria das pessoas dá azo às suas fantasias sexuais em privado, não é para estas compreensível, de todo, que algumas pessoas tenham o direito a não só exibirem o que pensam ser as suas fantasias sexuais em público, mas que tenham apoio legal, médico, e financeiro do Estado para o fazerem.
No meu exemplo maluco das ambulâncias, seria como se o Estado financiasse, para alguns fetichistas, a aquisição de ambulâncias a custo zero, apenas para se poderem divertir.
Bem sei que estou a ser deliberadamente provocadora com este meu artigo. Mas o ponto que queria aqui deixar à reflexão — seja a pessoas que são activistas dos direitos LGBT, seja às crossdressers e transexuais, seja ao público em geral — é que há aqui um trabalho muito mais complicado do que se pudesse imaginar à partida. Dizem os activistas que os direitos dos transexuais são equivalentes aos direitos das minorias étnicas, e aos das mulheres antes disso, e que é o combate mais importante em termos de direitos humanos nestas primeiras décadas do século XXI. Não posso discordar desta afirmação, mas devo dizer que a tarefa é muito mais complicada do que isso. É fácil, do ponto clínico e legal, determinar muito bem quem é que é transexual e quem está a ser discriminado por o ser. Mas para o público em geral essa distinção não é nada clara. Tudo o que o público vê e conhece são as fetichistas; são essas que são publicamente «acessíveis». As pessoas com alguma forma de disforia de género são uma minoria quase invisível.
Para pegar num contra-exemplo ilustrativo, que é muito contemporâneo: a esmagadora maioria dos mil milhões de muçulmanos por esse mundo fora são pessoas profundamente pacíficas, com exactamente as mesmas perspectivas na vida que quaisquer outras. Infelizmente, existem algumas dezenas de milhar que se identificam com o islamismo publicamente e que têm como único objectivo exterminar todos os restantes. O público em geral desenvolve islamofobia contra todos os muçulmanos, porque há muitos (mas que são uma escassa minoria!) que são pessoas profundamente violentas. No entanto, como a esmagadora maioria dos muçulmanos é profundamente pacífica, é possível alguma consciencialização da população para com a situação dos muçulmanos, que sofrem profundamente pelo facto de alguns, poucos, serem uns loucos violentos que nada têm a ver com os seus princípios religiosos. A ideia que passa até é que deverá ser o próprio ocidente não-muçulmano a ajudar a proteger os próprios muçulmanos dos elementos destabilizadores da sua sociedade, quando estes não os conseguem fazer. A guerra contra o Estado Islâmico é uma tentativa de devolver as áreas muçulmanas da Síria, do Iraque, da Líbia aos muçulmanos pacíficos que sempre habitaram essas áreas — não uma tentativa de «exterminar o Islão», mas sim de o «limpar» dos elementos destabilizadores.
Mesmo assim, como é sabido, a islamofobia cresce, porque a percepção é que esses elementos, mesmo constituindo uma minoria, é uma minoria potencialmente perigosíssima para todos — muçulmanos ou não.
No caso da transfobia, o problema é inverso. Está-se a tentar proteger uma minúscula minoria que sofre realmente de disforia de género e que necessita de protecção, de direitos, de apoio, de combate à discriminação, quando a esmagadora maioria, que é quem o público conhece e a que tem acesso, não sofre de qualquer tipo de problema e não requer qualquer tipo de «protecção» ou de mais direitos para além dos que já tem (como o direito à liberdade sexual), mas que é externamente indistinguível do primeiro grupo. É muito mais difícil, pois, combater a transfobia do que a islamofobia.
Quando vou lavar a minha roupa à lavandaria, normalmente estão lá uns jovens estudantes libaneses também a fazer o mesmo que eu. Não são sequer muçulmanos lá muito praticantes (tal como a maioria dos cristãos não o é), pois geralmente trazem umas cervejas para irem bebendo enquanto esperam. Qualquer pessoa racional saberá que a probabilidade destes jovens serem «perigosos terroristas» é infinitamente baixa; a avassaladora maioria dos muçulmanos, muito mais de 99%, não é «radical» mas pacífica. No entanto, talvez se estivesse nesta lavandaria uma crossdresser a lavar a roupa, talvez a reacção fosse diferente. Pois o mais provável — em 90% dos casos pelo menos — essa crossdresser seria uma fetichista, e seria igualmente provável, mesmo que não o fizesse activamente, que estivesse à procura de potenciais parceiros sexuais. Mas podia-se dar o caso de pertencer aos 10% de pessoas que têm alguma forma, mesmo que ligeira e não diagnosticada, de disforia de género. Mesmo assumindo que toda a gente na lavandaria estivesse profundamente esclarecida quanto ao assunto (e se não vejo este tópico a ser discutido nos sites das activistas da comunidade transexual, pessoas que considero profundamente esclarecidas quanto ao assunto, porque é que devo assumir que o público em geral compreenda a diferença?), como impedir que não pensassem, por uma mera questão estatística, que estavam na presença de uma fetichista e não de uma pessoa com disforia de género? Afinal de contas, em 90% dos casos estariam correctas na sua assumpção…
Como se «defendem», pois, as pessoas transgénero que não são fetichistas sexuais? Infelizmente, só existe uma via, que é a do isolacionismo. Seguindo o exemplo de muitas comunidades de crossdressers no estrangeiro — talvez uma das mais famosas seja a Beaumont Society no Reino Unido — a única forma é a de pré-selecção dos membros, segundo critérios mais ou menos rigorosos, de forma a assegurar que se esteja na presença do «tipo» correcto. Em Portugal, nos últimos 17 anos, já passei por pelo menos três comunidades online em que era preciso preencher uma ficha de avaliação. O objectivo era de garantir que os participantes tinham realmente interesse em participar activamente de forma positiva na comunidade online, e não apenas usá-la com o pretexto de marcar encontros sexuais. Uma delas, cujo nome não vou referir, entristeceu-me pelo seu desfecho. Tinha começado bem. Entre várias regras que tinha, à semelhança do que acontece em muitas destas comunidades, limitava as fotografias dos membros, não permitindo conteúdo explicitamente pornográfico. Mas a dada altura começou a sentir a pressão das fetichistas em busca de encontros, e que fizeram ver à organização que a pornografia era não só perfeitamente legal (o que é inteiramente verdade, desde que não haja o risco de exposição a menores, o que era o caso dessa comunidade fechada ao público) como fazia parte de praticamente todas as comunidades online para crossdressers; se fossem proibidas de colocar essas fotografias lá, teriam de ir para outra comunidade, mais tolerante, deixando essa vazia. A organização foi sensível a esse argumento. Justificou a sua decisão dizendo que ninguém era «obrigada» a ver as fotografias pornográficas se não quisesse, e, de qualquer das formas, a maior parte dos tópicos de discussão não eram sobre pornografia (as fetichistas raramente têm interesse em discussões intelectuais ou filosóficas…). Já nessa altura, pois, a organização reconheceu que a esmagadora maioria das crossdressers eram fetichistas; limitar a sua participação significava reduzir drasticamente o número de participantes a uma mera insignificância.
Na realidade, o que aconteceu depois é que as poucas pessoas que não eram fetichistas — mas que eram as maiores participantes na comunidade — acabaram por perder a motivação de fazer parte de mais um site de encontros e engates. A comunidade encerrou poucos meses depois, já que não havia qualquer participação activa — apenas pornografia, e nem sequer de qualidade. Evidentemente que quem andava à procura de pornografia passou para outras comunidades, onde a qualidade — e quantidade — era muito superior. Quem queria mesmo ter um espaço para publicar anúncios pessoais de encontros sexuais, passou a frequentar o Facebook, onde é muito mais fácil ter sucesso.
Da mesma forma, é difícil ter «um» grupo de crossdressers portuguesas. É que basta haver um grupo público, que imediatamente vão aparecer tanto aquelas que pretendem anunciar a sua disponibilidade para encontros sexuais, como, pelo contrário, vão surgir pessoas cujo único objectivo de se juntar ao grupo é conseguirem convencer uma crossdresser a ter sexo com elas. Já me ocorreu várias vezes lançar um desafio, que era o de ter uma área central onde pudessem ser anunciados todos os encontros, festas, jantares, passeios que as crossdressers portuguesas organizam, hoje em dia com muita frequência. Mas cada «grupo» anuncia essas actividades exclusivamente aos seus membros. Isto por um lado é triste, pois nem sempre é fácil ser-se membro de todos os grupos, e pode-nos «escapar» alguma coisa. Mas o problema é que basta uma coisa destas ser pública, e informar toda a gente, para imediatamente o propósito ser corrompido. Pior que isso: também significa expôr a comunidade publicamente a potenciais stalkers que passam a saber onde nos encontramos e a que horas. E esses stalkers assumem automaticamente que todas as crossdressers são fetichistas e que, como tal, sempre que anunciam uma actividade, é um pretexto para encontrarem novos parceiros sexuais.
Por isso estes grupos não podem ser públicos. Por isso é preciso que cada membro seja avaliado independentemente, hoje em dia muitas vezes com presença física e com testemunhas, para evitar que possa abusar do sistema. Por isso também, em certo sentido, os vários grupos de crossdressers mantém-se pouco estudados e são desconhecidos não só do público em geral, como da comunicação social e da comunidade científica.
Mas também estes grupos não são todos uniformes entre si. Tal como explico sempre, não há assim uma divisão tão clara entre «fetichistas» e «pessoas com disforia de género». Há, como sempre, um contínuo entre os dois extremos. Mesmo a fetichista mais extrema já se colocou por várias vezes a questão da sua identidade de género. Mesmo a pessoa com disforia de género mais puritana já se imaginou o que seria ter sexo como um membro do género oposto ao que lhe foi atribuído à nascença. As linhas divisórias não são assim tão claras como isso. E os objectivos de cada um destes grupos também não. Alguns grupos apenas pretendem passar despercebidas e serem tratadas pelo público como mulheres perfeitamente vulgares, talvez mesmo banais. Outros grupos gostam de apresentar, sem pruridos nem preconceitos, uma imagem erotizada das mulheres, justificando que, nos dias que correm, as mulheres não têm (e não devem ter!) receio de ser sexy, pelo que as crossdressers também não. Alguns grupos podem ter actividades perfeitamente inócuas mas não se importam de ser um espaço de convívio que, caso queiram, podem potenciar alguns encontros discretos entre membros e «admiradores». Alguns grupos encorajam os «admiradores» a aparecer, desde que sejam bem comportados, o que requer uma selecção prévia e criteriosa. Outros grupos, pelo contrário, proibem explicitamente quaisquer «admiradores» e são estritamente exclusivos a pessoas que façam crossdressing integral. Algumas pessoas transitam de uns grupos para os outros, ou são membros de vários grupos, desde que, em cada grupo, respeitem as normas do mesmo, sem tentar impôr normas de «outros» grupos a que pertençam. Alguns grupos encontram-se em locais privados, tolerantes à comunidade LGBT, com maior ou menor conotação erótica (como os bares com shows de transformismo, os bares de swingers, ou da comunidade BDSM), ou mesmo em casas e apartamentos de alguns dos membros. Outros grupos apenas se encontram em locais públicos, frequentados por pessoas cisgénero, como restaurantes e centros comerciais. Alguns organizam actividades em locais públicos como parques, jardins, ou praias, em pleno dia. Outros até podem ir para locais públicos, mas apenas durante a noite.
São exemplos bem ilustrativos da variedade que existe na «nossa comunidade».
Porque, na realidade, não há uma comunidade. Há… muitas comunidades, para pessoas muito diferentes, com gostos diametralmente opostos, a maioria das quais praticamente não tem nada em comum entre si, excepto, porventura, usarem externamente roupas do género oposto ao que lhes foi atribuído à nascença.
Mas as semelhanças param aí.