Os malefícios do crossdressing

Uma grande parte das crossdressers MtF que conheço, sejam elas fetichistas ou não, tendem a confessar que sempre sonharam ser crossdressers desde pequenas. Não interessa agora analizar as razões — seja pelo prazer de sentir a roupa feminina no seu corpo, seja por uma questão de quererem atraír parceiros masculinos, seja apenas por se auto-identificarem com o género feminino. O que interessa (pelo menos para este artigo) é o tempo que passou desde o momento em que desejaram vestir roupas do género oposto. E as consequências que isto tem…

Há, evidentemente, excepções — pessoas que só muito tarde, na sua idade adulta, é que começaram a vestir-se do género com que se identificam — mas, regra geral, a narrativa mais frequente começa na mais tenra idade. Por vezes é só o desejo de se vestir de mulher, mas o mais frequente é experimentarem as roupas ou os sapatos da mãe ou das irmãs. Episódios normalmente raros e desconexos, pelo menos na maioria dos casos. Noutros pode ter havido um período mais prolongado, na infância, onde havia o hábito de experimentar toda a roupa feminina que houvesse em casa…

Depois existem muitas variantes na narrativa. Na maior parte dos casos, no entanto, é mais frequente que, a partir de uma certa idade, se instale a vergonha: não é suposto os meninos andarem a vestir roupas de meninas. Ou a mãe descobre a «brincadeira» e coloca um ponto final, ou é o próprio, confuso, que acaba por abandonar a roupa feminina, secretamente invejando todas as meninas que conhece, e não percebendo muito bem porque é que não pode usar as roupas e o cabelo que elas têm.

Em muitos casos, infelizmente, também surgem traumas de infância, com relações sexuais forçadas por um parente próximo, ou um amigo da família. Mas isto não sucede em todos os casos. Pode acontecer ou não. Infelizmente, a pedofilia em Portugal tem raízes culturais muito fortes, por mais que queiramos encobrir o assunto…

Seja como for, a verdade é que normalmente se passam muitos anos desde esses episódios de infância e a altura em que a pessoa se assume como crossdresser, vestindo roupas de mulher com consciência porque o faz, de uma forma regular (ou pelo menos tantas vezes quanto as oportunidades lhe permitam).

Para algumas isto pode acontecer nas fases finais da adolescência; não conheço pessoalmente nenhum caso em Portugal (há algumas pessoas assim, que contam entre a lista de «amigas» no Facebook, mas ainda não as conheci pessoalmente), mas por lá fora vêem-se muitos casos assim, especialmente nos últimos tempos. É natural: há vinte anos atrás apareceram as primeiras páginas de crossdressers portuguesas na Internet. Antes disso era difícil, em Portugal, ter-se acesso a explicações sobre o assunto. Claro que haviam crossdressers antes disso (sempre as houve!). Mas tinham acesso bastante limitado e difícil a informação.

A Internet, evidentemente, veio mudar isso tudo. Mas para as crossdressers de meia-idade como eu, passámos a maior parte da nossa vida — ou pelo menos uma parte substancial da nossa vida — sem termos qualquer compreensão do que nos estava a acontecer, e porque é que acontecia.

E, evidentemente, não tínhamos ninguém a quem perguntar. Se nós já estávamos na ignorância do que é que nos «forçava» ao crossdressing, muito menos poderíamos ser esclarecidas por pais, irmãos, familiares, ou amigos. Não só ninguém à nossa volta sabia alguma coisa sobre o assunto, como também havia outro factor adicional que nos limitava: a vergonha. Claramente não éramos «normais», no sentido de que mais ninguém alguma vez falava sobre esse tipo de assuntos.

Talvez, com sorte, encontrássemos um vídeo pornográfico sobre sissyfication, ou eventualmente víssemos uma revista a falar sobre transexualidade. No meu caso, lembro-me de ter lido na comunicação social alguns artigos sobre a Roberta Close. Fiquei logo dias sem dormir só a pensar no assunto, pois nem sabia que havia essa possibilidade, de pessoas que nasceram no sexo masculino poderem passar o tempo todo a apresentar-se em público como sendo mulheres — e até poderem fazer cirurgias e tudo. Na altura era novinha, muito ingénua, e não percebia bem como é que essas «coisas» funcionavam. Para mim era tudo muito misterioso e incompreensível…

Mas o que começou a acontecer nessa idade foi um mecanismo que é frequente em muitas de nós: rejeição. Repressão dos nossos sentimentos mais profundos. E havia, obviamente, boas razões para isso: não só teríamos dificuldades em aceitar-nos a nós próprias, como sabíamos perfeitamente que ninguém nos iria aceitar também.

Aqui, evidentemente, as narrativas divergem muito de pessoa para pessoa. O certo é que algumas manifestaram esse desejo logo muito cedo, junto dos pais — com consequências provavelmente negativas, incluindo, infelizmente, violência física (mas a violência verbal também deixa marcas para a vida). Outras, temendo justamente essa violência física ou verbal, mantiveram em segredo. E fizeram-nos durante muito, muito, muito, muito tempo.

Algumas chegaram a um ponto em que não aguentaram mais, «explodiram», e eventualmente no início da idade adulta (e hoje em dia isso acontece cada vez mais cedo) iniciaram logo o seu processo de transição. Se olharmos para as (poucas) estatísticas que conhecemos sobre o assunto, sabemos que esse número é francamente reduzido. Em Portugal, são apenas algumas centenas de pessoas. Mesmo a Caitlyn Jenner, no seu discurso nos prémios ESPY, fala apenas de «milhares de pessoas»:

Todas as restantes pessoas pura e simplesmente nunca optam pela transição. E é difícil de estimar quantas são, pois a esmagadora maioria não responde a inquéritos (pela mesma razão que reprimem os seus sentimentos — não querem que ninguém desconfie!). Por isso só se pode estimar, e as alegadas melhores estimativas (que valem pelo que valem) acreditam que a percentagem de população masculina que é crossdresser ou transgénero é semelhante à percentagem que é homosexual, ou seja, cerca de 6% — o que para Portugal, daria cerca de 300.000 pessoas. Acho um exagero!

Seja como for, penso que é legítimo afirmar que a percentagem de pessoas que reprimem — muitas vezes toda a sua vida — esta sua faceta de crossdresser/transgénero é substancialmente superior, por várias ordens de grandeza, daquelas que efectivamente se «revelam» publicamente. Afirmo isto apenas por uma razão: enquanto que o número das pessoas transgénero que se revelam é conhecido — pois são «capturadas» pelas estatísticas do Serviço Nacional de Saúde — os que nunca se revelam não aparecem em estatística nenhuma. Nem sequer aparecem nas consultas de psicologia. Não há uma única entidade oficial que possa sequer coligir essa informação de forma anónima e segura — por exemplo, associações sem fins lucrativos de apoio a crossdressers, como existem lá fora. A verdade é que não temos ideia nenhuma de quantos são.

Só mesmo quando alguém neste espectro — que vai do crossdressing raro e ocasional à sensação de que nasceu no corpo errado, passando por todos os estados intermédios — finalmente se decide a tomar uma decisão àcerca da sua situação é que aparece nas estatísticas. E, nesse caso, estamos a falar já em casos muito extremos de ansiedade e depressão.

Os tais 6% (se esse número estiver correcto), evidentemente, incluem o vasto número de crossdressers fetichistas. Estes casos ainda são mais difíceis de capturar nas estatísticas, porque evidentemente que ninguém anda a contar os seus fetiches em público, ou em inquéritos. Regra geral, no entanto, as fetichistas encontram-se no espectro mais «saudável», se me é permitida a expressão: estão perfeitamente satisfeitas com a sua condição e vêem no crossdressing apenas uma forma de obter prazer sexual. Mas normalmente não sentem qualquer ansiedade ou frustração se não fizerem crossdressing de uma forma regular. Há evidentemente excepções (como em tudo), mas esta é a regra geral que tenho vindo a observar.

Recapitulando as classificações…

Há por vezes uma certa ideia errada de que as crossdressers fetichistas pouco mais se interessam por vestir umas cuequinhas, umas meias de liga, e pronto, já está. Uma ou outra talvez até esteja disposta a vestir um vestidinho sexy qualquer, e a comprar uma peruca de €5 nos chineses. Mas isso não é verdade. Algumas crossdressers fetichistas são obsessivas com a sua auto-imagem feminina e podem perder horas a arranjar-se para que sejam indistinguíveis de qualquer mulher genética; comportam-se de forma feminina e têm como objectivo emularem uma mulher genética de todas as formas possíveis. Só assim se sentem confortáveis em obter prazer com um parceiro sexual (normalmente masculino). Conheço uma crossdresser portuguesa assim, cuja «ilusão» é tão perfeita que ela envia a potenciais parceiros vídeos dela, muito bem filmados, em que faz poses eróticas (ou mesmo pornográficas!) seminua, mas sem que se consiga perceber os seus genitais — ou mesmo que esteja activamente a escondê-los, de tão naturais e femininas que são as poses. E evidentemente que não é um caso único.

Também não é inteiramente verdade que nenhuma crossdresser fetichista sofra por não se conseguir vestir de mulher. De entre os vários comportamentos associados a uma líbido mais activa que a média — que habitualmente é o caso para as crossdressers fetichistas — uma circunstância típica é o sofrimento por falta de relações sexuais (com a frequência desejada). Nestes casos, é evidente que as crossdressers fetichistas sofrem precisamente da mesma forma que qualquer outra pessoa que necessite de uma maior frequência de actividade sexual que a sua vida lhe permita, e isto pode naturalmente conduzir a casos de ansiedade e depressão. De notar que são raras as crossdressers fetichistas que pensam sequer consultar um psicólogo nesta situação, porque se envergonham de contar a sua situação a terceiros (o que é comum, na realidade, à esmagadora maioria de crossdressers). Curiosamente, se o fizessem, um dos tratamentos possíveis para a ansiedade causada pela frustração de ausência de relações sexuais é justamente a tomada de bloqueadores de testosterona, o que tem um efeito feminizante no corpo, coisa que provavelmente muitas crossdressers adorariam tomar…

Fora do espaço do fetichismo propriamente dito, existem imensas razões para o crossdressing que nada têm a ver com o desejo de relações sexuais, e são justamente estes os casos mais difíceis de compreender por terceiros. Aliás, nos dias que correm, pelo menos em países mais sofisticados que o nosso, existe alguma aceitação do crossdressing como forma de fetiche — pois existem tantos fetiches, que o crossdressing, sendo um dos mais populares (não está no topo da lista, mas também não anda lá muito longe), é bastante bem tolerado, pelo menos em certos meios. Em Portugal já requer uma certa abertura de espírito. No entanto, por essa Internet fora, encontram-se muitos e bons exemplos, principalmente de homens, que têm grande apetência por terem relações sexuais com crossdressers. Uma explicação dada por um amigo meu (cujo nome vou obviamente omitir, mas sei que ele está a ler isto!) é que é muito mais fácil encontrar parceiros sexuais que sejam do género biológico masculino do que do feminino; para certos homens, pois, ter sexo com uma crossdresser pode ser muito mais fácil do que encontrar uma parceira do género biológico feminino. Para outros pura e simplesmente trata-se do fetiche complementar, ou seja, tal como há homens que se vestem de mulher para atrairem parceiros masculinos, há igualmente homens que procuram homens que se vestem de mulher (na realidade, e pelo que observo, há muito mais procura do que oferta!).

Mas uma crossdresser MtF que não o faça por razões de satisfação sexual com um parceiro é raramente compreendida! Na realidade, a maioria dos homens interessados em relações com crossdressers acharão que não existe nenhuma outra razão para o crossdressing senão o prazer sexual, pelo que acharão que se trata apenas de alguém que «se está a fazer de difícil» (o que até pode proporcionar um aumento do desejo — o fruto proibido [ou de difícil acesso] é aquele que é mais desejado).

No entanto, uma grande parte das crossdressers fazem-no apenas por auto-satisfação erótica — um dos significados da palavra «fetiche», no contexto médico e académico, é a orientação do desejo e da satisfação sexuais para objectos inanimados (ou partes do corpo não necessariamente associadas com a actividade sexual, como sejam os pés). Para este tipo de crossdressers não existe necessidade de um parceiro para haver satisfação sexual; antes bem pelo contrário, o parceiro não faz qualquer sentido, dado que a auto-satisfação neste caso não tem a ver com relações sexuais propriamente ditas. Tem, isso sim, a ver com o desejo de sentir roupas femininas (e maquilhagem, e uma cabeleira, e unhas pintadas…) no próprio corpo.

Nalguns casos o objecto do fetiche é mesmo só a roupa, acessórios, maquilhagem… (fala-se aqui então de crossdressing erótico, ou auto-erótico, segundo uma classificação possível que tendo a seguir) Noutros casos, já a atracção não está nos objectos físicos em si, mas no despertar de uma auto-imagem feminina que é construída com base na roupa, acessórios, etc. mas também no comportamento de acordo com o género feminino. Nestes casos — também conhecidos como crossdressing narcisista — o objecto de desejo e de satisfação sexual está associado à auto-imagem feminina (em que a roupa e os acessórios são os pilares para a construção dessa auto-imagem), e não a uma relação sexual. Estes casos ainda são mais incompreensíveis para o público em geral, que ainda consegue vagamente compreender a existência de um fetiche relacionado com a roupa feminina, mas não percebe em que medida é que «vestir-se de mulher» (sem qualquer desejo sexual de ter um parceiro) e comportar-se como uma mulher possa ser excitante.

Quando se abandona então de todo a questão puramente sexual, entramos no complexo mundo da transexualidade. Agora já não é a atracção sexual — mesmo que meramente na sua função masturbatória — que está no foco das atenções, mas sim a questão da identidade. Evidentemente que aqui existem finíssimas linhas divisórias, e a literatura especializada está cheia de exemplos aparentemente contraditórios que procuram explicar o mesmo fenómeno. Assim, há efectivamente pessoas que apresentam disforia de género e que passam por uma fase de crossdressing, acreditando que esta seja socialmente mais tolerável — até porque é feita em privado, ou pelo menos em separado da vida social activa, e quase sempre em segredo — mas que depois chegam à conclusão que tal actividade nunca é verdadeiramente satisfatória: os sintomas da disforia de género não desaparecem com a actividade de crossdressing. Noutros casos, a rejeição do próprio corpo, que está completamente fora de sincronia com a identidade de género, faz com que determinados transexuais nem sequer experimentem o crossdressing. Começam apenas a vestir-se de acordo com o género com que se identificam apenas após o início do período de transição, em que as alterações significativas provocadas pela terapia hormonal, conjugadas com a necessidade de fazer o teste de vida real, «obrigam» (muitas vezes pela primeira vez) a adoptar também as convenções sociais para o vestuário de acordo com o género com que se identifica.

Mas entre os dois extremos há todo o tipo de possibilidades. Talvez a principal distinção — mas que nem essa é consistente em todas as pessoas! — tenha a ver com a ênfase na actividade sexual (seja auto-erótica, seja com parceiros sexuais). Regra geral, se a líbido é elevada, e o desejo de fazer crossdressing pressupõe uma satisfação sexual (e que mesmo nos casos de auto-erotismo esta satisfação pode existir independentemente de haver ou não prática masturbatória, que é secundária), poderemos classificar a pessoa em questão mais sob a alçada do «crossdressing» propriamente dito, pois nestes casos o indivíduo vai classificar-se de acordo com o género masculino — com que se identifica e, em quase todos os casos, não pretende «abandonar», excepto eventualmente em fantasias e escapismos imaginados — e não apresenta, pois, disforia de género. No caso da transexualidade, independentemente da forma como esta se manifesta (expressão de género!), o indivíduo normalmente identifica-se com um género diferente daquele que lhe foi atribuído à nascença (ou identifica-se com ambos, ou nenhum), mas, estando impedido de se manifestar de acordo com essa sua identificação, tende a ter uma líbido mais baixa (ou mesmo nula). Mesmo a actividade do crossdressing, embora possa ser satisfatória sob o ponto de vista psicológico (e, como vimos, há muitos casos em que nem sequer satisfatória é), muitas vezes pode não dar qualquer satisfação do ponto de vista sexual (seja com ou sem parceiro).

Mecanismos de compensação e adaptação

Como lidam as crossdressers (e algumas pessoas com disforia de género) com a sua situação? O exemplo de Caitlyn Jenner é apenas um entre muitos: normalmente procuram afastar de si toda e qualquer suspeita de serem «diferentes», praticando actividades ou assumindo comportamentos tipicamente associados ao género que lhes foi atribuído à nascença. Embora isto não seja verdade para os chamados transexuais primários (aqueles que desde a mais tenra infância se identificam com o género oposto ao que lhes foi atribuído e que passam toda a sua vida — desde a infância à idade adulta — procurando desesperadamente para uma «solução» para a sua condição), nos restantes casos, este é o mecanismo de compensação habitual. Jenner optou por uma carreira no desporto, achando que assim poderia afastar de si qualquer suspeita. Casou-se quatro vezes e tem dez filhos, o que, para um observador externo, só pode ser sinal de virilidade e masculinidade (uma pessoa que seja homosexual até pode casar-se com uma pessoa do género oposto para «disfarçar» a sua homosexualidade, mas será muito raro que o faça vezes repetidas).

Nem todas as crossdressers (e pessoas transgénero) irão a tais extremos. No entanto, é frequente adoptarem comportamentos machistas, agressivos, por vezes até ridiculamente homofóbicos (e transfóbicos) quando estão em público. Optam por carreiras associadas claramente ao género que lhes foi atribuído à nascença — no caso MtF, que é o que eu estou a analisar mais de perto, podemos vê-los em empregos como agentes de segurança pública ou privada, são militares, construtores civis, condutores profissionais, etc. Têm hobbies ligados à actividade física; frequentemente mostram um interesse em actividades tipicamente masculinas, como futebol, automóveis, sexo, etc. Podem, de certa forma, ser mais estereotipicamente masculinos do que a maioria dos restantes homens!

No entanto, em ambos os casos, a opção é sempre reprimir os verdadeiros sentimentos.

De notar que existe aqui uma diferença entre a supressão ou repressão do desejo de se vestir (e de se comportar) como uma mulher e outras formas de actividades socialmente questionáveis. Já não falo em actividades ilícitas — requer uma mentalidade especial, presente em menos de 5% da população, para activamente procurar a actividade ilícita — e que naturalmente causará uma certa ansiedade (o medo de ser descoberto pelas autoridades). Aqui, pelo contrário, estamos a falar de uma actividade perfeitamente legítima (não só nada proibe que um homem se vista de mulher em público, como há mesmo leis que proibem a discriminação das pessoas pela roupa que vestem ou pelo género com que se identifiquem — trata-se de um caso em que do ponto de vista legal existe protecção à actividade e à inclusão do indivíduo na sociedade). No entanto, por ser socialmente (ainda) pouco aceitável, esta é reprimida.

Muitas vezes a repressão vem de muito cedo. Eu lembro-me com 7 ou 8 anos de tentar impedir que os meus pais me vestissem de sevilhana no Carnaval, porque tinha pânico que a minha satisfação por tal «disfarce» fosse de tal forma evidente no meu rosto, que os meus pais desconfiassem de alguma coisa. E, secretamente, claro está, invejava parentes e amigos próximos, mais ou menos da minha idade, cujos pais os disfarçavam de sevilhanas — alguns dos quais mostravam-se nas fotografias bastante contentes!

Fotografia do futuro presidente dos EUA, Franklin D. Roosevelt, em 1884
Fotografia do futuro presidente dos EUA, Franklin D. Roosevelt, em 1884

Em imensos casos, pois, a repressão começa logo muito cedo, na altura em que é suposto os pais dizerem aos meninos para brincarem como meninos, e às meninas para brincarem como meninas. Num estudo que li, isto acontecia mais ou menos por volta dos 6 anos, ou seja, a entrada para a escola. Esse estudo referia muitos casos em que as crossdressers, até aos seis anos, vestiam-se de meninas em casa, muitas vezes encorajadas por elementos da família do género feminino (mães, tias, avós), e que se deliciavam com a «brincadeira». Nalguns casos usavam o cabelo comprido, e nessas ocasiões as parentes femininas davam-lhe um jeito feminino ao cabelo e tudo. Isto pode-nos parecer um tanto estranho, mas é no fundo uma continuação de um hábito do séc. XIX, uma época em que era frequente as crianças de ambos os géneros vestirem vestidos (normalmente brancos por serem mais baratos de tingir e lavar), provavelmente por uma mera questão de ser muito mais prático mudar as fraldas a uma criança que está a usar um vestido.

Este hábito aparentemente persiste, ou persistiu, em certas famílias, embora não seja muito popular (a moda da roupa para crianças mudou drasticamente na passagem do séc. XIX para o séc. XX, altura em que os rapazes deixaram de usar vestidos). O certo é que nos casos onde esta prática é ainda comum nos dias que correm, por volta da idade escolar, o pai força a criança a cortar o cabelo e passa a vestir-se «de rapaz», coisa que pode ser traumático para a criança, numa altura em que já está formada uma grande parte da sua personalidade, e este comportamento pode parecer-lhe incompreensível.

De uma forma ou de outra, independentemente do contacto que a criança tenha com a roupa feminina e dos desejos que tenha de «ser uma menina», mais cedo ou mais tarde, por pressão educacional dos pais e pressão social do ambiente escolar, esses desejos e vontades serão, forçosamente, reprimidos. Isto talvez seja menos frequente nos dias que correm, em que começa a haver alguma sensibilidade para a questão da transexualidade, mas não será de todo uma circunstância habitual. Regra geral, a uma criança que lhe tenha sido atribuído o género masculino, espera-se que se vista e se comporte de acordo com esse género — à força de violência verbal, física, ou a ameaça de ambas, se a criança não se comportar de acordo com o padrão heteronormativo cisgénero.

Resta, pois, a supressão e repressão desses desejos e sentimentos.

Como referi anteriormente, nalguns casos, que são os mais evidentes casos de transexualidade dita «primária» (porque se manifesta primeiro; não porque seja mais importante que os outros tipos), o indivíduo rejeita a conformidade com o género que lhe atribuiram, e essa rejeição é violenta — no sentido de recusa, mesmo com a ameaça de violência verbal ou física. Isto normalmente conduz a estados depressivos causados pelo trauma constante de ter de viver num ambiente familiar e social que obriga o indivíduo a adoptar um género e um comportamento de género com o qual não se identifica minimamente. Estes casos são populares na comunicação social, e, por muito raros que sejam, tendem a despertar uma certa compaixão por parte da população.

Mas a maioria das crossdressers e transexuais não passam por esta fase tão óbvia. Em vez disso, suprimem e reprimem os seus sentimentos, e adoptam mecanismos de compensação para os esconder de todos — por vezes, escondendo-os de si próprio. Em certa medida, é como se desejassem fortemente não quererem ser diferentes, acreditando que é apenas «uma fase passageira» e que, se for «compensada» com comportamentos socialmente aceitáveis para o género que lhes foi atribuído, pode ser que deixem de sentir tão fortemente essa «necessidade» de se afirmarem de acordo com o género com que se identifiquem. Para muitos, por exemplo, a solução passa por criar uma família estável, ter filhos, e um emprego socialmente aceitável para um digno pai de família — acreditando assim que, rodeando-se de «normalidade», pode ser que desapareçam os «desejos incontroláveis».

Lembro-me também que no meu caso as primeiras vezes em que conscientemente vesti roupas do género feminino na minha fase adulta foi numa fase em que um namoro estava a correr mal (e efectivamente terminou dois anos depois), e na altura justificava este meu comportamento «aberrante» como uma compensação qualquer relacionada com instatisfação romântica. Quando conheci a minha actual mulher, tinha bastante receio de que se tornasse em mais um episódio passageiro que me deixasse devastada emocionalmente, pelo que não só procedi muito mais cautelosamente na elaboração de laços mais e mais íntimos, como até aumentei a prática de crossdressing — nessa altura muito mais difícil por ter menor liberdade de espaços onde o fazer. Mas quando a relação se tornou de facto estável e sólida, perdendo o receio de que fosse apenas uma mera «paixoneta de final de Verão», tentei tomar a decisão de nunca mais fazer crossdressing, «porque não precisava», já que tinha uma companheira. Este «porque não precisava» era uma tentativa de auto-delusão, procurando convencer-me a mim mesma de que a Sandra não era mais do que uma forma subtil de escapismo para lidar com frustrações românticas. Uma vez abandonando essa fase de frustração, com uma relação amorosa estável e duradoura, a Sandra «não seria mais necessária».

É claro que toda a gente neste meio sabe que as coisas não funcionam assim, mas eu nessa altura era muito ignorante àcerca dos mecanismos relacionados com o crossdressing e com as questões de identidade de género. Tentava convencer-me de que eram apenas fenómenos passageiros, construídos como forma de escapismo, mecanismos para lidar com certo tipo de frustrações, ou apenas para alívio de stress (e a ansiedade sexual/romântica é uma forma de stress). Auto-convencia-me de que uma pessoa «normal», ou seja, alguém que estivesse numa relação amorosa estável e duradoura não «precisava» desses mecanismos de escape.

Em vez disso, claro, continuava a reprimir os meus desejos e sentimentos, e a afastá-los o mais que podia dos meus pensamentos diários. Houve efectivamente um período de tempo, mais ou menos entre 2001 e 2004, em que o crossdressing praticamente não existiu — afundava-me em trabalho para me «preocupar com outras coisas». Infelizmente depois seguiram-se uma série de circunstâncias muito complicadas na minha vida que acabaram por fazer-me concluir que não poderia passar o resto da minha vida abandonando o crossdressing de vez — que isso seria impossível de todo — o que me forçou a revelar a minha verdadeira natureza à minha mulher, esperando que ela aceitasse a minha situação, o que efectivamente veio a acontecer.

Uma pequena divagação: o cérebro não é uma máquina…

Imagem fMRI do cérebro de FastFission (Wikimedia). Distribuído com uma licença Creative Commons Attribution-Share Alike 3.0 Unported.
Imagem fMRI do cérebro de FastFission (Wikimedia). Distribuído com uma licença Creative Commons Attribution-Share Alike 3.0 Unported.

Quem estuda budismo (ou filosofias semelhantes) sabe que um dos seus pilares assenta na constatação de que nada é permanente; se não fosse assim, por exemplo, não nos poderíamos curar de uma doença (é só porque a doença é impermanente que ela é curável). O budismo, obviamente, extrapola da impermanência dos fenómenos físicos — em constante mutação e deterioração, coisa que podemos observar claramente — para os fenómenos mentais. A constatação mais simples está no facto de não sermos hoje a mesma pessoa que éramos aos seis anos. Dizemos que sim, apontamos para a nossa fotografia quando éramos crianças, e dizemos, «isto sou eu». Mas é certo que não pensamos, nem raciocinamos, nem temos a experiência do que é ser uma criança de seis anos. Podemos ter a memória, mas não passa disso mesmo. As experiências acumuladas ao longo de toda uma vida, a educação que recebemos (e o que aprendemos por nós próprios), moldaram a nossa personalidade, e nada temos em comum com a tal criança que vemos na foto. Quanto muito, poderemos dizer que há um fio condutor, uma certa continuidade, que se originou algures quando um esperma do nosso pai perfurou um óvulo da nossa mãe, até à pessoa que somos hoje. Mas não somos «a mesma pessoa»: somos uma pessoa completamente diferente, fruto das experiências que tivémos, moldada por essas mesmas experiências, se bem que tenhamos a sensação de sermos a mesma pessoa, assegurada por memórias internas (recordamo-nos de episódios da infância) e externas (fotografias, roupas velhas, etc.).

Agarramo-nos, pois, a uma noção de que existe «algo» que, de certa forma, é sempre igual em nós, o nosso «verdadeiro eu». Os mais religiosos identificarão esse «verdadeiro eu» com uma alma, ou um espírito, ou uma substância qualquer mística que transmita essa sensação de continuidade aparente daquilo que está no nosso mais profundo ser. Os mais cépticos apenas dirão que tudo isso está no cérebro — aquilo que chamamos de «mente» é apenas um epifenómeno da complexidade do cérebro, e como temos o mesmo cérebro de quando nascemos, nada de mais natural que «sentimos» existir esta continuidade de existência.

Quando aprendi biologia humana, a ciência considerava nessa altura que nascíamos já com todos os neurónios necessários no cérebro. O que faltava era, pois, a interconexão destes: através da aprendizagem, da educação, dos jogos, etc. os neurónios tornavam-se mais e mais interconectados. De certa forma, o cérebro era visto como uma espécie de computador, que, à nascença, pouco mais tem do que o firmware — algumas conexões pré-estabelecidas durante o estágio embrional que nos permitiriam a sobrevivência nos primeiros tempos (como o reflexo de berrar quando se está com fome e de mamar o leite materno). O resto das conexões estabelecia-se como software — no sentido em que nos auto-programávamos à medida que teríamos novas experiências e que nos ensinassem mais e mais coisas.

Ao envelhecer, naturalmente, os neurónios iriam morrendo, o que explicava uma tendência para a demência à medida que as pessoas envelhecem. Dizia-se então que o facto de existirem imensas pessoas perfeitamente lúcidas e desfrutando plenamente das suas capacidades cognitivas até ao final das suas vidas tinha a ver com esta capacidade de continuar a estabelecer conexões entre os neurónios. Ou seja: apesar de estar a morrer parte do cérebro, compensávamos isso «exercitando» o cérebro, obrigando-o a fazer mais interconexões entre os neurónios que sobravam, de forma a que essas compensavam a perda definitiva de neurónios com a idade.

Este mecanismo também explicava como era possível recuperar de lesões graves do cérebro — no fundo, os neurónios que não tivessem sido afectados acabavam por aumentar o seu número de interconexões, compensando assim os neurónios desaparecidos devido a acidente, doença, tumor cerebral, AVC, etc.

Apesar deste modelo não estar muito errado, e ter um razoável poder explanatório (no sentido em que explica muitas coisas!), rapidamente se revelou como incompleto, e, em certo número de aspectos, mesmo errado. O problema é que assentava em dois «preconceitos»: o primeiro era a visão computacional do cérebro, ou seja, a noção de que o cérebro era uma espécie de computador biológico que podia ser programado e programável. Este tipo de noções foi frequente ao longo de toda a história da ciência e reflecte o avanço tecnológico da época. No século XVII, mais ou menos, o cérebro era visto como se fosse um sistema hidráulico de válvulas e canalizações, porque esse tipo de sofisticação tecnológica estava muito em voga em elementos arquitectónicos (basta pensar nas fontes deslumbrantes do barroco), e porque o mesmo modelo do sistema hidráulico tinha funcionado para «desvendar» o sistema cardiovascular. Mais tarde, com o aparecimento de relógios cada vez mais sofisticados, ao ponto de poderem ser colocados nos bolsos, o cérebro foi visto como um relógio de infinita complexidade. Mais tarde ainda, já no século XIX, quando surgem as primeiras redes de comunicação com o telégrafo, o cérebro foi equiparado a uma vasta rede de telégrafo — sabendo-se perfeitamente na altura que os sinais nervosos passados entre neurónios são activados electricamente — em que no fundo o cérebro recebia sinais de todos os nervos, contendo informação codificada, de alguma forma, em impulsos eléctricos. Esta imagem de funcionamento do cérebro claramente se aproxima muito mais da realidade — pois hoje em dia já é possível criar implantes nos nervos usando um microchip para transmitir impulsos eléctricos, que permitem restaurar a audição ou até mesmo, em certos casos, o movimento de partes do corpo, quando os respectivos nervos tenham sido danificados ou cortados.

No início do século XX, a máquina eléctrica mais sofisticada era talvez a central telefónica automática, que permitia as telecomunicações globais sem a necessidade de operadores a mexerem cavilhas de um lado para o outro; não é de surpreender, pois, que na altura se equiparasse o cérebro a uma central telefónica automática, em que a analogia com o modelo anterior se mantinha: o sistema nervoso central era uma espécie de rede telefónica, enviando impulsos eléctricos aos nervos motrizes, recebendo impulsos dos sentidos, e processando tudo a nível do cérebro, de forma automática. Esta visão tinha também a particularidade de considerar que a máquina funcionava automaticamente sem necessidade de explicações «místicas», ou seja, é já nesta altura que se postula claramente — com a ajuda de analogias tecnológicas — que aquilo a que chamamos «mente» só pode ser um epifenómeno de uma máquina infinitamente complexa.

A partir dos meados do séc. XX, claro, desenvolvemos algo de ainda mais complexo e maravilhoso: o computador. Este não só partilha das características dos modelos da central telefónica automática, e da rede de telégrafos, como acrescenta mais uma: a capacidade de programação. O inverso também se deu: já nos anos 1960 se conseguiam demonstrar teoremas matemáticos com o recurso a computadores, e cedo surgiram mesmo modelos informáticos que podiam provar qualquer teorema. Ou seja: a ciência da computação mostrou que podemos claramente «simular» comportamentos que achávamos que eram exclusivamente do foro humano. Daí até concluir que o cérebro era no fundo um computador de complexidade incrível foi um pequeno passo. E foi mais ou menos isso que aprendi na escola.

Comum a todos estes modelos está também o tal preconceito, o de que esta máquina a que chamamos cérebro nasce, de alguma forma, «completa», com todas as partes, e que só é «modificada» através da «programação» das interconexões entre neurónios. Afinal de contas, quando nascemos, temos já os nervos motrizes e sensoriais todos no sítio certo — tal como numa rede de telecomunicações. O cérebro terá, pois, forçosamente, de estar igualmente «completo, mas programável», e isso logo de nascença.

O segundo «preconceito» é mais subtil, mas a verdade é que estes modelos do cérebro surgiram em sociedades influenciadas de uma certa forma pelas religiões do livro (judaísmo, cristianismo, islão), em que existe uma visão antropocêntrica do universo, e em que o homo sapiens tem o papel principal, distinto de todas as restantes espécies. Só com Charles Darwin é que esta visão é abandonada graças à exposição da teoria da evolução das espécies — mas ainda hoje em dia muita gente pensa coisas absurdas (e que eram absurdas já para Darwin) que os animais só têm instinto, enquanto os humanos têm inteligência (mas podem ter alguns comportamentos instintivos). Há mais de 150 anos que se sabe que não é assim, mas, no entanto, ainda nos meus tempos de liceu ouvia estas barbaridades da boca dos meus professores — e eu estudava num liceu perfeitamente laico!

Com os avanços das ciências neurológicas, todo este modelo começou a ser colocado em questão quando se estudou melhor o efeito do sistema endócrino (ou hormonal). Já se sabia há muito tempo que as hormonas tinham efeito em imensas partes do corpo, incluindo o cérebro, mas os avanços da ciência permitiram entender que o cérebro, na realidade, não tem apenas um mecanismo de transmissão de informação — o sistema nervoso central — como se pensava. Tem dois: um sistema eléctrico, que é mais rápido, e que é realmente o sistema nervoso central. Mas o segundo é um sistema químico, que é o sistema endócrino. Surpreendentemente, não é tão lento como se possa pensar: as mensagens transmitidas sob a forma do que vulgarmente chamamos de hormonas podem, por vezes, levar apenas um segundo (uma batida de coração!) a transmitir informação.

No entanto, o sistema hormonal tem um efeito brutal no cérebro: é que não transmite apenas informação. Em vez disso, altera a forma de funcionamento do cérebro.

Ora este ponto é difícil de explicar, porque não temos nenhuma analogia no mundo da tecnologia. Talvez a forma mais simples de compreender é que o sistema endócrino funciona como se estivéssemos a andar de automóvel, carregássemos num botão, e, um segundo mais tarde, estávamos a andar de bicicleta. Carregando noutro botão, a bicicleta transforma-se de novo num automóvel. Ambos os veículos permitem a deslocação do condutor. Mas conduzem-se de forma completamente diferente, e a velocidades também diferentes. E, naturalmente, há sítios onde uma bicicleta poder ir que um automóvel não pode (por exemplo, um beco muito estreito), e, de forma inversa, há sítios onde se chega facilmente com um automóvel que são difíceis ou inacessíveis a uma bicicleta.

No entanto, a analogia mais frequente ainda parte do modelo antigo do cérebro como computador. A única diferença é que se trata de um computador que se modifica a si mesmo. Não é apenas a programação que muda; é o próprio hardware! Assim, determinadas mensagens do sistema hormonal equivalem a mudar o CPU, acrescentar um disco rígido ou uma placa gráfica nova, e no fundo ficar com um sistema diferente. Eu pessoalmente gosto mais da outra analogia, porque quando falamos de computadores, fica-se sempre com a ideia que, no fundo, no fundo, qualquer computador é programável, mais ou menos da mesma forma, seja um smartphone no bolso, seja um supercomputador na NASA (o que não é inteiramente verdade, mas é quase). Enquanto que andar de bicicleta ou de automóvel são experiências completamente diferentes. Um bom condutor de automóvel pode não ser um bom ciclista, e vice-versa. Para andarmos bem de bicicleta temos de estar em forma, mas para conduzirmos um automóvel, não é preciso.

Vejamos alguns exemplos de como isto funciona. Uma hormona muito conhecida é a adrenalina. Esta é lançada no sistema sanguíneo quando há uma ameaça de perigo, e afecta os músculos, dando-nos mais energia. Mas também reconfigura o funcionamento do cérebro: passamos a estar mais alertas, conseguimos reagir mais depressa, temos uma visão mais precisa. Também cometemos mais erros de julgamento: o cérebro toma decisões mais depressa com informação parcial. Muitas vezes isso significa errar — pois tomar a decisão correcta pode levar demasiado tempo — e mais tarde podemo-nos perguntar a nós próprios «porque é que eu fiz isto?». Imaginem o caso clássico de estar a conduzir à chuva, vemos subitamente um carro a aproximar-se de lado a alta velocidade, e travamos desesperadamente — entrando em aquaplaning e chocando com o outro carro. Depois, a posteriori, notamos que se calhar a reacção mais óbvia deveria ter sido acelerar para evitar o outro carro, e não travar com o piso molhado. Mas, no momento, essa foi a primeira reacção que tivémos — sob o efeito de uma rápida descarga de adrenalina.

Outro exemplo clássico é o do efeito do álcool no cérebro (ou de qualquer outra droga): enquanto esta actua, sentimo-nos diferentes, e não falo apenas de estarmos tontos e perdermos o equilíbrio. Pode haver mesmo desinibição, a perda de características da nossa personalidade (como a timidez ou o medo). Se conduzirmos, as nossas reacções são mais lentas e temos visão em túnel, mas temos uma falsa confiança de que somos os melhores condutores do mundo — e não temos consciência de como as nossas percepções estão alteradas. Ora toda a gente conhece este tipo de efeitos. O que talvez não nos tenha passado pela cabeça é que o álcool e as outras drogas efectivamente alteram o funcionamento do cérebro. É literalmente como se tivéssemos feito um transplante de cérebro, pois tudo realmente funciona de forma diferente. Felizmente, tal como na adrenalina, o efeito das drogas também desaparece ao fim de algum tempo, e o cérebro retoma o seu funcionamento habitual.

Esta espectacular capacidade do cérebro — também conhecida como plasticidade — tem sido só recentemente investigada e aceite como tal. Foram muitas décadas de preconceitos para aceitar justamente que o cérebro não é nada de «fixo», não é uma máquina programável e previsível, mas sim algo de completamente diferente. Tanto é assim que, ao contrário do que se passa com os computadores, somos capazes de lidar com paradoxos — conceitos que são simultaneamente verdadeiros e falsos (apesar de tal coisa ser lógica e matematicamente impossível). Um caso clássico: «Tudo o que eu digo é mentira». Ora se tudo o que digo é mentira, também esta frase é uma mentira. Assim terão de haver algumas coisas que digo que são verdadeiras. Ou, de entre todas as mentiras que digo, só esta frase é que é verdadeira — e todas as restantes são falsas? Como podem ver, não há forma de analisar esta expressão do ponto de vista lógico — e, como tal, a compreensão desta frase não é computável — mas não temos qualquer problema em dizer este tipo de coisas e a raciocinar sobre elas.

Um caso particularmente curioso ocorre frequentemente com o meu pai, que sofre de demência vascular. Ele é capaz de dizer frases em que afirma uma coisa e o seu preciso oposto, sem reparar que o está a fazer. Para ele, ambas as afirmações são verdadeiras, e nem sequer percebe onde está a contradição. Mesmo que calmamente se lhe explique que ele não pode afirmar uma coisa e o seu oposto em simultâneo, e o ajudemos a raciocinar, passo a passo, para ele ver onde está a contradição lógica, ele já não é capaz de chegar a essa conclusão. Ou seja: o facto de sermos capazes de pensar de forma irracional e ilógica mostra como o nosso cérebro não é, de facto, uma máquina computacional. Na prática — e isto não se sabe ainda muito bem como funciona — o que deve acontecer é que são grupos de neurónios diferentes que estão a processar a mesma informação, mas de forma distinta, chegando a resultados contraditórios. Mas ambos os resultados são «igualmente válidos» — quando nos apercebemos disto, ao nosso nível cognitivo mais elevado, o que temos é indicação dos níveis inferiores que se chegaram a duas conclusões opostas, ambas com a mesma «força». Não temos qualquer problema com isso; lidamos bem com os paradoxos, mesmo que os saibamos reconhecer como tal (ao contrário do meu pai, que já não o consegue fazer).

Ora todo este longo capítulo sobre a forma como funciona o nosso cérebro — uma área que sempre me fascinou! — tem apenas um único propósito: explicar que o cérebro não é uma máquina computacional, mesmo que esse modelo do cérebro continue a ser muito popular, mas é, isso sim, um sistema de processamento de informação (de forma não-computacional) que se altera a si próprio. Não meramente ao nível do «software» (o que poderia ser explicado por novas e diferentes interligações entre neurónios) mas mesmo a nível do «hardware» (o tempo de propagação de informação pelo sistema nervoso central altera-se; certas conexões deixam de ser usadas; áreas do cérebro apropriadas para determinado processamento de informação passam a processar coisas completamente diferentes; etc.).

O que se sabe hoje em dia é que, pelo menos em certos tipos de depressão, o que acontece é que há uma «avaria» no cérebro. Em seres humanos saudáveis, existe uma substância neurotransmissora, a serotonina, que é responsável por uma série de funções a nível gastro-intestinal, mas também está na origem dos mecanismos que regulam o humor. De uma forma simplista — até porque não sei explicar mais do que isto! — quando realizamos acções que sejam positivas para o nosso bem-estar (físico ou mental), o cérebro é «inundado» de serotonina. Por exemplo, comer leva à libertação de serotonina, e isso produz-nos bem-estar. Porquê? Porque temos de nos alimentar para sobreviver. Assim, a serotonina é uma espécie de mecanismo que nos diz o que é que nos faz sentir bem, despoletando depois, ao nível das capacidades cognitivas superiores, uma sensação de agrado, de prazer, de bem-estar.

Há muitas coisas que activam a libertação de serotonina no cérebro. A mais conhecida (e que por isso é sempre tão entusiasticamente defendida pela classe médica!) é o desporto e a actividade física. Mas também comer chocolate liberta serotonina. Assim como fazer coisas agradáveis — ler um livro, ver TV, jogar no computador. Regra geral, a maior parte das actividades que consideramos «agradáveis» estão ligadas à serotonina — até coisas como dormir ou ter sexo. Fumar, ou ingerir nicotina de outra forma, também liberta imensa serotonina — daí o acto de fumar ser tão viciante: é o próprio cérebro que é quimicamente alterado pela nicotina (outra substância neurotransmissora) para ter níveis mais elevados de serotonina. Sei que sou suspeita por dizer estas coisas, mas a esmagadora maioria dos fumadores (atenção que há sempre excepções!) são pessoas mais calmas, mais equilibradas, com um humor mais constante (pouco dados a grande alterações de humor), menos irritáveis, menos ansiosas — desde que possam fumar à vontade, claro está. Isto é porque estão artificialmente a aumentar os seus níveis de serotonina e a manter o cérebro num modo de funcionamento de níveis mais elevados de satisfação. Claro está que logo que os níveis de nicotina diminuem no organismo (a nicotina é completamente eliminada ao final de 8 horas), também diminuem os níveis de serotonina, e isto é o que leva os fumadores a serem completamente viciados e a terem muita dificuldade em parar de fumar: porque isso significa sentirem não só a falta da droga, como se tornarem em pessoas ansiosas, irritadas, frustradas, cheias de medos, ansiedades e problemas… quando não têm nada disso enquanto fumam 🙂

De notar, claro está, que, tal como a adrenalina (e muitas outras substâncias que alteram o funcionamento do cérebro), a serotonina também «não dura para sempre». Ou seja: o que a serotonina faz é associar bem-estar físico a uma actividade específica, mas esse bem-estar não é «permanente». O próprio cérebro elimina a serotonina progressivamente. Isto faz com que nos sentimos muito bem depois de uma refeição, por exemplo, mas ao fim de algum tempo não precisamos de estar sujeitos a essa sensação — já fomos «treinados» para associar o acto de comer com o bem-estar. E antecipamos, quando tivermos feito a digestão, outra «dose» de bem-estar quando for a altura de comer outra vez. No caso dos fumadores, por exemplo, a nicotina chega ao cérebro em apenas 7 ou 8 segundos, e provavelmente activa a serotonina quase de imediato; por isso é que os fumadores, perante uma situação de grande stress e/ou irritação, acendem um cigarro e sentem-se logo mais calmos. É que o efeito é mesmo muito rápido. No entanto, o organismo começa imediatamente a eliminar a nicotina, e, com esta, também a serotonina — daí os fumadores terem de estar a fumar em intervalos regulares, se quiserem manter os níveis de nicotina — e de serotonina — elevados.

Mas voltando à depressão. Pensa-se que uma coisa que causa a depressão melancólica tem a ver com a eliminação excessivamente rápida da serotonina no cérebro. Ou seja: os mecanismos que fazem com que a serotonina chegue ao cérebro continuam a funcionar como dantes. Quando comemos ou fazemos alguma coisa que nos seja teoricamente agradável, o cérebro recebe a «dose» de serotonina habitual. Só que há algo que está «avariado» no mecanismo de eliminação da serotonina no cérebro: este acontece depressa demais. Na verdade, o cérebro parece eliminar a serotonina de forma tão rápida que esta nem sequer tem o efeito de causar qualquer sensação de bem-estar. No início deste capítulo expliquei que o sistema de mensagens químicas do cérebro era mais lento que o sistema nervoso (com mensagens eléctricas), mas não muito mais lento. O que se passa com as pessoas deprimidas é que a serotonina chega ao cérebro mas desaparece antes de ter efeito — talvez justamente em menos de um segundo.

Isto faz com que, para a pessoa deprimida, subitamente nenhuma actividade lhes proporcione prazer. Não é que o mecanismo de libertação de serotonina tenha efeito: este até está a funcionar. O problema é que logo que a serotonina chega ao cérebro, esta é eliminada de imediato. E por isso acaba por não se sentir efeito nenhum.

Há duas estratégias para lidar com esta doença. A primeira, obviamente, é aumentar os níveis de serotonina no organismo — para tentar impedir que o cérebro elimine tanta serotonina. Há formas naturais de o fazer: a mais simples é praticar desporto. Uma situação um pouco estúpida é que um bom psicólogo também dirá à pessoa deprimida para não deixar de fumar enquanto não cura a depressão!

Mas essencialmente a solução principal é a medicação específica. Esta, no entanto, normalmente usa o mecanismo inverso: evitar que o organismo remova a serotonina que conseguiu chegar (de forma natural) ao cérebro. Isto consegue-se fazer graças a um mecanismo bioquímico muito complexo — mas muito preciso — que actua directamente em elementos do sistema nervoso central que controlam o fluxo de certas moléculas que entram e saiem do cérebro.

Comum a todas estas drogas neurológicas, pois, é o facto destas efectivamente modificarem o funcionamento do cérebro. Este é o ponto importante a reter deste longo capítulo: é que a esmagadora maioria das chamadas doenças mentais estão associadas a um funcionamento anormal do cérebro, e é por isso que podem ser efectivamente tratadas com este tipo de medicamentos: se o cérebro está «avariado», pode-se «consertar».

O «cérebro avariado» de uma pessoa transgénero…

Este complexo capítulo serviu essencialmente um propósito: compreender que hoje em dia já não se considera que o cérebro seja uma «máquina estática», de certa forma «programável» através do estabelecimento de interconexões neuronais. Esse modelo serviu-nos bem no passado mas hoje em dia sabemos estar completamente errado. O cérebro não só não é uma «máquina computacional» — não se enquadra em nenhum paradigma da ciência da computação — como ainda por cima pode-se auto-modificar através do sistema hormonal, que é também um sistema mensageiro, de transmissão de informação, usado pelo cérebro em paralelo ao sistema nervoso central, com a diferença que este último não «modifica» a estrutura e o funcionamento do cérebro (mas apenas transmite informação nos dois sentidos), enquanto que o sistema hormonal efectivamente altera a forma de funcionamento do cérebro.

Graças à plasticidade do cérebro — a sua capacidade de se reconfigurar, de se adaptar, de estar continuamente em mudança — na realidade não é nada fácil de o danificar permanentemente, mas claro que todos sabemos que existem lesões cerebrais para as quais não existe de facto «cura»: atingiu-se, nesse caso, o limite da capacidade do cérebro de se curar a si próprio através de auto-modificações. Mesmo assim, os limites estão muito para lá do que se julgava ser possível — como ilustra a história do funcionário público francês que praticamente não tinha cérebro (quase toda a caixa craniana estava cheia de líquido, com apenas uma pequeníssima fracção de «massa cinzenta») mas que mesmo assim tinha um IQ de 75, mais que suficiente para desempenhar as suas tarefas diárias, casar-se, ter filhos, e uma vida absolutamente normal e exemplar. Ocorreu há pouco mais de uma década e colocou difíceis questões aos neurologistas, para os quais, na altura, o fenómeno não era explicável. Depois deste caso surgiram muitos mais.

No caso das pessoas transgénero, ainda não há uma explicação definitiva sobre a causação da transgeneridade, mas é praticamente certo que não é uma condição genética — não se trata, pois, de um «defeito genético». Também não é uma doença infecto-contagiosa, nem mental, nem comportamental. Como não existe nenhum método conhecido que «cure» a transgeneridade — ou, mais precisamente, a disforia de género — não se considera que esta condição seja uma «doença» de espécie alguma.

No entanto, especula-se que exista uma razão — uma causa — para a disforia de género. Embora a investigação científica nesta área continue a estar muito no início (nem que seja porque é uma condição que afecta uma fracção muito pequena da população, a maior parte dos quais não está disponível para participar em estudos), pensa-se que existem certas proteínas que são codificadas pelos cromossomas sexuais (X e Y) que afectam o cérebro durante o desenvolvimento embriológico. Disse «proteínas» e não «hormonas», porque se sabe também que as hormonas sexuais condicionam muito menos o cérebro do que se julgava nos anos 1950 ou 1960 (após o final da 2ª Guerra, em países que proibiam a homosexualidade, era normal usar tratamentos hormonais para tentar mudar a orientação sexual das pessoas — coisa que não funcionava de todo, acabando-se por abandonar este tipo de terapias). Não quer dizer que não possam afectá-lo — através de hormonas pode-se artificialmente aumentar ou diminuir a líbido, por exemplo — mas não parecem modificar o seu funcionamento. Ou, se o fazem, não é de forma conclusiva.

Ademais, as hormonas sexuais só entram em funcionamento num estágio tardio do desenvolvimento de um ser humano, e são produzidas nas gónadas. As ditas proteínas de que falo são codificadas directamente a partir das células do cérebro e que actuam directamente para mudar a forma como o cérebro funciona, aparentemente antes sequer de haver diferenciação física.

Nalguns casos — e isto ainda não se sabe porquê — são activadas as proteínas erradas, ou as correctas funcionam mal, ou não funcionam de forma eficaz. Nestas circunstâncias, o cérebro pode não se desenvolver de acordo com o resto do corpo (que está sob a influência das hormonas sexuais, que só muito mais tarde produzem a diferenciação física). É possível (ou pelo menos plausível) que seja esta discrepância entre o desenvolvimento do corpo e o funcionamento do cérebro que «cause» a disforia de género. No entanto, estando ainda nos estágios iniciais da investigação, estas conclusões devem sempre ser entendidas como muito preliminares: está-se apenas a apontar o futuro rumo da investigação nesta área, não a dar respostas conclusivas.

Uma coisa é certa: os mecanismos que «produzem» a identidade de género (assim como a orientação sexual) são gerados muito cedo, em fase embrional, e tendo uma vez actuado no organismo — em especial no cérebro — o processo não é reversível. Pelo menos não o será dentro de muitas décadas, se é que alguma vez venha a ser (o que, dado o conhecimento actual, parece ser muito pouco provável que aconteça). Não se pode, pois, «curar» nem a disforia de género, nem a orientação sexual: está determinada à partida e nada se pode fazer a esse respeito.

Talvez possa parecer estranho que o cérebro seja tão infinitamente plástico, tão modificável, mas não seja possível alterar a sua identidade de género e orientação sexual. Porquê?

Essa resposta tem uma explicação bastante complicada — porque nada nesta área é simples de compreender! — mas, sem ser uma perita no assunto, talvez possa tentar pelo menos uma explicação muito superficial, que espero, no entanto, que seja compreensível.

Aprendemos que é no DNA que estão codificadas as «instruções» para «construir» um ser humano — uma espécie de guia, tipo os da IKEA, que nos ensinam a montar uma mesa ou cadeira. Também é fácil de imaginar que o DNA seja uma espécie de programa de computador, uma sequência de instruções para as fábricas de proteinas (ribosomas). Esta é uma visão demasiado simplista. Basta pensar que partilhamos cerca de 50% do nosso código genético com… uma mosca da fruta. Mas claramente nós temos muito poucas semelhanças com moscas!

O que acontece na realidade é que não basta o DNA para determinar o «funcionamento» de um ser humano — ou de qualquer outro ser vivo, na verdade — mas é necessário algo de muito mais complexo: o ambiente em que se desenvolve o ser vivo. Nos humanos isso acontece na fase embriológica: é no ventre das mães que se estabelece um ambiente extremamente complexo de interacções bioquímicas que vai influenciar a forma como as pequenas células se dividem e se organizam.

Uma experiência típica para mostrar a importância do ambiente de desenvolvimento é o «transplante» de genes entre espécies. Se se pegar no gene que activa o crescimento de um olho num rato, e este for acrescentado a uma mosca da fruta, o que acontece? Estaríamos à espera, provavelmente, que aparecesse um olho de rato numa mosca! Mas isso não acontece: em vez disso, surge um olho de mosca, perfeitamente indistinguível dos restantes. Como é isso possível, se um olho de uma mosca é completamente diferente de um olho de um rato?

Na verdade, o que determina se aparecem olhos de mosca ou de rato não é o DNA propriamente dito, mas sim o ambiente embriológico em que as células se desenvolvem. O DNA para activar a «construção» de um olho, dentro de um ovo de uma mosca, vai dar sempre olhos de mosca, nunca de rato (e vice-versa). Isto parece um daqueles paradoxos como o ovo e a galinha — o que surgiu primeiro? É o ambiente embriológico que produz moscas, ou são moscas que criam o ambiente embriológico, já que o DNA parece ter pouca importância? Na realidade, tal como no ovo e na galinha, as duas coisas surgem em simultâneo de forma interdependente. Uma mosca, no seu DNA, tem também codificada a forma como produz o ambiente embriológico, para que em ovos de mosca, com DNA de mosca, nasçam novas moscas — que herdam não só o «kit de construção» mas igualmente a forma de produzir o ambiente adequado para que os ovos de mosca produzam, de facto, moscas.

Ora acredita-se que, quando falamos em seres humanos, o mesmo se passe — com muito maior complexidade, bem entendido — para todos os aspectos, incluindo, naturalmente, as questões que têm a ver com a identidade de género e a orientação sexual. Se é verdade que cerca de 90% da população é heteronormativa e cisgénero, isso significa que, regra geral, as condições embriológicas são as adequadas para o desenvolvimento correcto de um cérebro que esteja «ajustado» de acordo com o corpo, e por isso é que a esmagadora maioria das pessoas considera que a sua identidade de género está perfeitamente identificada com o corpo que têm. Digamos que esta é a situação «normal» — no sentido matemático da expressão, ou seja, significa que a distribuição de probabilidades dos seres humanos terem diversas identidades de género e de orientação sexual seguem uma curva normal, em que 90% deles estarão na área que representa a heteronormativiade e a cisgenderidade. No entanto, em 10% dos casos isso não acontece. A percentagem é demasiado elevada para acreditarmos que possa ser mero resultado de uma mutação genética — que, em geral, não tem taxas tão elevadas para um aspecto que é crucial para a nossa sobrevivência enquanto espécie. Consideremos o exemplo da homosexualidade: regra geral, os casais homosexuais não se reproduzem geneticamente (havendo obviamente excepções). Isto significa que não pode haver uma causa puramente genética para a homosexualidade — visto que esta não pode ser transmitida entre gerações! Pode, isso sim, haver uma potencialidade para a homosexualidade, que seja despoletada sob determinadas condições embriológicas — e é mais nesta linha que tem sido feita a investigação científica.

Por outras palavras, o que se acredita neste momento (pois investigação futura poderá vir a mostrar outro resultado) é que as condições para a criação de um cérebro heteronormativo e cisgénero (de acordo com o género do corpo) são extremamente complexas mas também requerem um enorme grau de «precisão» para a sua formação correcta. Em 90% dos casos, a gestação embriológica corre bem. Em 10% dos casos, houve alterações infinitesimais às condições «ideais» de formação do cérebro, e este desenvolve-se de acordo com padrões que não são heteronormativos ou cisgénero. É difícil de estabelecer exactamente o que «correu mal» mas está-se realmente a investigar nesse sentido, e até existem resultados relativamente convincentes para explicarem o que acontece segundo este modelo.

O certo é que, uma vez determinado o «modo de funcionamento» do cérebro, ainda na fase embrional, este não pode «mudar de funcionamento» a posteriori. Da mesma forma que injectar o gene de activação do desenvolvimento de olhos de rato numa mosca não faz com que esta desenvolva olhos de rato — mas sim de mosca! — há certas coisas que não podemos mudar no cérebro uma vez que este esteja desenvolvido. Se ficou «avariado» (no sentido em que se desenvolveu de forma divergente à heteronormatividade e cisgenderidade), ficará assim «avariado» para sempre, não pode ser «consertado».

Mesmo que no futuro possamos desenvolver terapias genéticas muito mais sofisticadas que as actuais, e substituir activamente certos genes em todas as células de um organismo vivo — não é ficção científica, mas está de momento para além do alcance da nossa tecnologia — não iríamos conseguir mudar a orientação sexual ou a identidade de género de um cérebro completo. Todos estes mecanismos complexos que assentam no desenvolvimento embriológico do organismo, uma vez que este organismo nasça, deixam de ter acção sobre este — o organismo está «pronto», terminado, sem possibilidade de alterações. É, pois, muito pouco provável que venham a existir uns comprimidos que nos façam pensar como mulheres ou homens, ou que nos mudem a orientação sexual, apenas actuando sobre certas áreas do cérebro, mudando-lhes o funcionamento bioquímico.

Aliás, temos um pouco essa experiência dos tempos em que (infelizmente) se «combatia» a homosexualidade com a administração de hormonas sintéticas. Quanto muito, o melhor que acontecia era que certas hormonas reduziam a líbido, pelo que a pessoa em questão deixava de ter desejo sexual de qualquer espécie. Noutros casos era feita a castração química, que indirectamente também reduz o desejo sexual. Por outras palavras, o homosexual não deixava de ser homosexual; continuava a sentir-se atraído por pessoas do mesmo sexo; mas o seu desejo sexual era de tal forma diminuído que não se sentia motivado a ter quaisquer relações sexuais. No entanto, na verdade, não lhe tinha sido «alterada» a orientação sexual.

Mas há imensos casos reportados de pessoas que, ao iniciarem a terapia hormonal de substituição, subitamente começam a sentir a sua orientação sexual a ser subtilmente alterada; outros reportam que se sentem «mais masculinos» ou «mais femininos» graças à terapia hormonal. Não invalidará isto o argumento?

A ciência mostra que não. Certos marcadores bioquímicos no cérebro, que estão correlacionados com a identificação de género e com a orientação sexual, não «mudam» com a terapia hormonal. Por isso podemos afirmar com algum grau de confiança que as hormonas de facto não «mudam» o cérebro dessa forma.

O que é mais plausível de explicar é que essas pessoas que «sentem» a sua orientação sexual mudar… nunca foram heteronormativas! Na realidade, sempre tiveram uma orientação sexual divergente da norma. Mas passaram tanto tempo a reprimir esses sentimentos que recusavam admitir que existiam. Com a terapia hormonal, e a consequente transição de género, deixam de sentir necessidade de reprimir a sua verdadeira orientação sexual (seja esta qual for), e daí admitirem que esta se esteja a modificar. Não se trata aqui de «mentir» àcerca da orientação sexual para se ser politicamente correcto. Não: trata-se, isso sim, muito provavelmente, de uma repressão profunda de determinados sentimentos, que durante o processo de transição é «aliviada».

Consequências de um cérebro «avariado»…

O que se segue é especulação minha; se existir documentação científica claramente a contradizer a minha hipótese, peço desculpa, mas não a encontrei.

Aquilo que me ocorre é que nas pessoas transgénero existe um mecanismo de compensação para evitar o trauma. Aliás, na maior parte das pessoas que tiveram de lidar com experiências traumáticas, estes mecanismos de compensação são vulgares. Normalmente passam por repressão de memórias, afastamento de determinadas formas de comportamento, medos (irracionais), e coisas assim.

Episódios traumáticos geralmente ocorrem de forma esporádica (pontual) ou regular (recorrente), mas nem sempre surgem de forma contínua. Vou dar uns exemplos de traumas psicológicos comuns: violência familiar ou bullying na escola. São casos que podem infelizmente acontecer ao longo de muitos anos. No entanto, o que se passa na realidade é que estes casos são pontuais. Mesmo nas famílias mais disfuncionais, a criança não está sujeita a violência 24 horas por dia. Tem períodos em que não está a ser vítima de violência. Obviamente que quanto mais forem os episódios de violência, maior será o trauma. No limite, para «fugir» ao trauma, a pessoa pode refugiar-se num escapismo imaginário, que lhe proporciona algum conforto; ou, em casos extremos, poderá mesmo alienar-se completamente de toda a realidade.

O que acontece é que o cérebro cria mecanismos de compensação, procurando aliviar a dor do trauma, canalizando as sensações agradáveis (provocadas pela libertação da serotonina, por exemplo) para esses mecanismos de compensação. Lá diz o velho ditado popular, Enquanto o pau vai e volta, folgam as costas. O que significa que o cérebro cria mecanismos para tirar partido dos momentos em que a pessoa não está perante uma situação traumática. Dependendo da forma de «escape» que o cérebro encontrou para lidar com o trauma, isto poderá ter maiores ou menor repercussões no futuro.

As consequências do trauma encontram-se muito bem estudadas, e a medicina — através da psicologia e da psiquiatria — sabem muito bem como lidar com o trauma, e como ajudar as pessoas a ultrapassarem esses episódios terríveis da sua vida.

No caso das pessoas transgénero, no entanto, há uma diferença crucial: o «episódio traumático» não é nem pontual, nem recorrente, mas constante e persistente. Ou seja, a pessoa nunca deixa de sentir desconforto por o seu cérebro não estar alinhado com o género do corpo. Há uma rotura entre ambos que é permanente. O sono, nalguns casos, poderá proporcionar alívio — afinal de contas, a maior parte de nós perde a percepção do corpo enquanto está a dormir — mas as pessoas não podem dormir 24h/dia! Infelizmente, para muitos, o mecanismo de compensação para lidar com este trauma permanente é recorrer às drogas, legais ou ilegais, para aliviar a discrepância entre corpo e cérebro.

Claro que o nível de percepção desta disforia varia de indivíduo para indivíduo. Em certos casos, não se desenvolve qualquer mecanismo de compensação, o que irremediavelmente atira o indivíduo para uma situação de depressão clínica profunda, com tendências suicidas. A taxa de suícidio entre pessoas LGBT é consideravelmente superior à da média da população, especialmente entre jovens (em que a idade legal não lhes permite ainda opôr-se aos pais).

Uma parte das pessoas transgénero acaba por lidar com esta disforia usando outros mecanismos. Exemplos como o de Caitlyn Jenner mostram que o empenhamento no desporto de alta competição (que liberta adrenalina e serotonina), numa vida «tipicamente masculina», na família, ou em múltiplas distracções, ajudam, pelo menos durante um tempo, a lidar com a situação. No entanto, mais cedo ou mais tarde, estes mecanismos de escape podem deixar de funcionar. O certo é que muitas pessoas que tecnicamente são transgénero, mas que jamais se revelam como tal, passam a vida toda infelizes, procurando mecanismos de compensação e de escape para a sua situação.

Quanto mais tempo passa, mais o cérebro é afectado. Ora isto é uma coisa que aprendi muito recentemente, e que explica muita coisa (pelo menos para mim). Na maior parte das pessoas trangénero, a primeira reacção é a de negação e de rejeição. Hoje em dia, felizmente, cada vez há mais informação e apoio (ainda não é perfeito, mas para lá caminhamos); mas não há tanto tempo atrás, os temas da transexualidade eram tabu, seja na escola, seja em casa, e muito menos um jovem — especialmente adolescente — teria coragem de falar sobre o assunto com o seu médico. A vergonha era grande demais. E havia, claro, o risco de violência doméstica.

Assim, todos estes sentimentos e emoções normalmente são reprimidos. Por vezes, essa repressão pode ser tão profunda que a pessoa simplesmente se «esquece» de que estes sentimentos sequer existam. Acaba por viver o resto da sua vida, sentindo-se sempre, de alguma forma, «inadequada» ou «inadaptada», mas não compreendendo muito bem porquê.

Aqui entra outro mecanismo compensatório do cérebro: a capacidade de alterar percepções, e de criar «normalidade» onde esta não existe. Porque uma pessoa não pode estar constantemente infeliz, o cérebro tenta criar situações artificiais — no sentido que não correspondem à realidade — que dêem a sensação de que «tudo está bem». Isto, obviamente, não se limita à disforia de género, mas é um mecanismo frequente em muitas condições que depois, mais tarde, provocam todo o tipo de doenças mentais. Uma grande dificuldade de muitas pessoas em tomarem a decisão de pedir ajuda médica é porque acham que estão «normais», mesmo que toda a gente que conheçam pensem precisamente o contrário!

Os mecanismos de repressão contínua criam, pois, uma espécie de realidade alternativa, onde o indivíduo tem a sensação de que tudo está normal, tudo está na mesma, e que aquilo que percepciona é, efectivamente, a realidade. Isto é particularmente evidente nos casos de depressão clínica, em que uma pessoa perde a volição, mas que considera isso absolutamente normal (encontra todo o tipo de explicações e desculpas para isso, como a fadiga, por exemplo). Mas também em casos de ansiedade pode surgir um desconforto com a realidade que resulta em agressividade, especialmente em agressividade perfeitamente irracional para com situações (ou pessoas). Aqui o próprio auto-justifica-se dizendo que «tem mau feitio».

Evidentemente que o inverso não é verdade, ou seja, as pessoas podem realmente ter mau feitio sem haver uma condição clínica psicológica, mas sim apenas uma faceta da personalidade, que nada tem a ver com o «mau funcionamento» do cérebro!

Mas no caso das pessoas transgénero, pois, o que temos é realmente um cérebro «avariado», no sentido em que bioquimicamente tem marcadores químicos que supostamente correspondem a um género diferente do do corpo; independentemente do que a pessoa conscientemente pensa sobre o assunto, o cérebro irá tentar «compensar» esta assimetria entre cérebro e corpo criando mecanismos de compensação. Ao contrário de outras situações traumáticas, que normalmente são episódios isolados no tempo (mesmo que recorrentes e frequentes), esta condição do cérebro é permanente e constante, pelo que o cérebro não tem outra forma de lidar com a situação senão criando novos mecanismos de compensação. Alguns deles visam minimizar a discrepância entre cérebro e corpo; outros alteram significativamente os estados de humor. O certo é que estes mecanismos instalam-se muito cedo e perduram durante muitos anos. Nalguns indivíduos, a disforia é sentida de forma tão intensa que apenas o suicídio — ou a transição — podem proporcionar «alívio». Nos restantes, existem mecanismos de compensação em maior ou menor grau. Todos estes, contudo, contribuem para um funcionamento alterado das percepções do cérebro.

Ou seja, estamos a falar de dois níveis diferentes. Ao nível bioquímico, encontramos alterações — possivelmente criadas pelos tais factores embriológicos a que referi anteriormente — que são físicas e inalteráveis após a maturação do cérebro em ambiente embriológico. Ao nível mental — aquele de que nos apercebemos, consciente ou inconscientemente — surgem mecanismos de compensação, como a negação, a repressão, a alteração de percepções, e, no limite, a ansiedade e a depressão, com ou sem desejos de suicídio. Estes últimos mecanismos, apesar de operarem ao nível da mente, têm evidentemente repercussões sobre a parte física do cérebro. Como expliquei anteriormente, a libertação de certas substâncias químicas — como a serotonina, mas também o álcool — têm a capacidade de alterar o funcionamento do cérebro. São é, em geral, mecanismos temporários (ou seja, após o efeito dos mesmos, o cérebro reverte para o funcionamento habitual). Mas há mecanismos mais ou menos «permanentes» em que um cérebro, desesperado por «se sentir bem», procura caminhos alternativos para receber as doses de serotonina que tanto deseja.

Isto nos casos como o meu — depressão atípica — é muito visível: toda a energia que possuo, toda a vitalidade, toda a volição, está direccionada para o crossdressing, em que posso, pelo menos temporariamente, eliminar a discrepância entre cérebro e corpo, e deixar que a serotonina «alimente» o cérebro, e me deixe a mente em paz. Mas o meu cérebro bloqueou todas as restantes formas de activação de serotonina — todos os «caminhos» estão bloqueados, por assim dizer — o que significa que não consigo fazer mais nada (tal como na depressão clássica). No entanto, acho isto perfeitamente normal (percepções alteradas).

Estas situações mentais, sejam a ansiedade, a depressão, a agitação, etc. são, no entanto, tratáveis, assim como todos os estados mentais resultantes de repressão ou trauma. E isto porque se tratam de alterações ao funcionamento do cérebro adulto (no sentido em que se trata de um cérebro já formado, após o estágio de desenvolvimento embrionário), que podem ser revertidas com uma combinação de medicamentação e terapia. Em essência, significa que os «caminhos» criados pelo cérebro como métodos de compensação para lidar com determinada situação podem ser alterados — porque o cérebro é plástico — e revertidos para um estado de funcionamento normal.

O que infelizmente não se pode fazer é alterar aquilo que foi condicionado a nível embriológico. Isso seria como acreditar que poderíamos treinar um gato a pensar como um cão: uma vez formado o cérebro do gato, o gato pensará sempre como um gato.

Os malefícios do crossdressing, em resumo

Embora existam evidentemente imensas razões para uma pessoa fazer crossdressing, a maioria das quais relacionadas com alguma forma de fetichismo sexual (seja de objecto — a roupa — seja de comportamento), nos restantes casos é plausível acreditar (como pensa uma amiga minha!) que a origem do desejo de crossdressing esteja associada a uma forma de transgenderidade, expressa em determinado grau de disforia de género. Sabe-se hoje que o comportamento dos dois géneros binários não é meramente social, como estava em voga afirmar nos anos 1960, altura em que o paradigma comportamental (behaviourism) era predominante e pensava-se que «explicava tudo».

Hoje sabemos que não é assim. Há mecanismos bioquímicos que alteram um cérebro durante a sua fase embriológica para que este assuma aquilo que chamaríamos identidade de género. Não é bem claro, e talvez não o seja durante muitos anos, exactamente como isto funciona. O certo é que existe um desiquilíbrio, uma tensão, uma disfunção entre a forma como o cérebro deveria funcionar — de acordo com o resto do corpo — e como efectivamente funciona. E isto não pode ser alterado, uma vez terminado o desenvolvimento embriológico do cérebro.

Em compensação, há, evidentemente, partes do cérebro que definitivamente se podem alterar com o tempo. Se não fosse assim, não poderíamos aprender nada! Por sua vez, sabemos igualmente que quando há lesões no cérebro, seja por que razão for, este consegue compensar parcialmente os defeitos da zona lesionada (é por isso que muitas pessoas recuperam razoavelmente bem de AVCs, embora seja um processo que possa levar bastante tempo).

Podemos entender a disforia de género como uma espécie de «lesão cerebral», no sentido que há partes do cérebro que deveriam estar a funcionar (as que proporcionam a identificação entre o género do cérebro e o género do corpo), mas que não estão. Em consequência disso, o cérebro procurará «compensar» estas falhas no funcionamento do cérebro. Em certa medida, aquilo que uma pessoa com disforia de género sente é o seu cérebro a tentar compensar as falhas. É isso que lhe causa mal estar, distúrbios, ansiedade, depressão… e que pode levar ao suicídio. Porque ao nível consciente, aquilo a que nós vulgarmente chamamos de «mente», não temos noção dos «níveis inferiores», ou seja, da rede neuronal estabelecida pelo nosso cérebro. Não nos apercebemos de como é que é suposto um cérebro funcionar; e, pior, na maior parte dos casos, nem sequer nos apercebemos de que o cérebro está a funcionar mal.

É vulgar dizer-se que uma pessoa estúpida é aquela que pensa que é inteligente; enquanto que uma pessoa inteligente questiona sempre a sua própria inteligência (como dizia Sócrates — o filósofo grego, não o político… — só sei que nada sei). Isto tem a ver como os respectivos cérebros funcionam: a capacidade de auto-análise de uma pessoa pouco inteligente é notavelmente inferior, mas, para ela, a percepção que tem de si própria é de que é uma pessoa «mais inteligente que a média». Da mesma forma, a maior parte das pessoas com demência podem não se aperceber da demência que têm — embora nalguns casos isso não seja verdade, obviamente (podem, por exemplo, reparar que se esquecem mais frequentemente das coisas). Regra geral, um cérebro «avariado» criará mecanismos de compensação que darão a percepção de que está tudo bem.

Um problema no diagnóstico da disforia de género é justamente esse. No caso de transexuais que se manifestam logo desde a tenra idade, e que, graças a uma maior disponibilidade de informação hoje em dia (assim como uma maior aceitação social), permitem à pessoa começar a sua transição na adolescência («atrasando» deliberadamente a puberdade com um tratamento hormonal, permitindo então depois a transição para o género com que se identificam), pode haver apenas um período mais ou menos longo em que a pessoa rejeita furiosamente o género que lhe foi atribuído, mas que rapidamente (medido em poucos anos) corrige a situação — cérebro e corpo passam a estar de novo em harmonia, e os sintomas de disforia de género (como a irritabilidade/ansiedade ou a depressão) desaparecem em pouco tempo.

No caso de pessoas que reprimem fortemente a sua disforia de género (pelas mais diversas razões, sendo no entanto a mais comum a falta de informação — a maioria das pessoas que tem disforia de género não sabe o que tem, só sabe que os seus sentimentos e pensamentos «não são normais» comparado com os dos amigos ou irmãos, e tem vergonha de perguntar), cria-se aqui um problema adicional, mais grave. Estamos efectivamente a forçar o cérebro a tentar funcionar «como deve ser» — através da repressão e supressão dos sintomas de disforia de género — e fazemo-lo durante anos ou décadas. A páginas tantas, esta constante repressão e supressão vai deixar «marcas»: essencialmente estamos a pegar num cérebro já «avariado» e a «avariá-lo» ainda mais! Ou seja: à custa de tentar forçar o cérebro a harmonizar-se com o corpo e com o género que nos foi atribuído à nascença — com o qual o cérebro não se identifica, mas que conscientemente rejeitamos essa não-identificação — podemos potenciar outro tipo de problemas, fruto do constante «treino» a forçarmo-nos a ser aquilo que não somos.

Não quero com isto dizer que as pessoas não se podem mudar, ou que não é possível, de certa forma, mudar a nossa atitude mental — se não fosse de facto possível essa mudança, não só a terapia psicológica não funcionaria, como nem sequer os medicamentos para as doenças mentais teriam qualquer efeito. Sim, é possível mudar a forma de funcionamento do cérebro, e até de maneira bem eficaz: basta pensar que todo o nosso processo de educação escolar é uma forma de alterar o funcionamento do cérebro. Toda a aprendizagem, seja do que for — desde matemática a andar de bicicleta, a tocar um instrumento, ou a dançar — é baseada em mecanismos que inculcam no cérebro novas interconexões neuronais e que o fazem funcionar de forma diferente. Isto é normal, e ainda bem que assim é, caso contrário seríamos completamente incapazes de aprender o que quer que fosse!

Da mesma forma, podemos alterar certos aspectos da nossa personalidade através do treino mental. Costumo contar como aos 15 anos era uma pessoa terrivelmente tímida, e, através de um esforço tremendo, consegui libertar-me dessa minha timidez, pelo menos até um certo ponto. Outras pessoas conseguem corrigir defeitos na fala, ou certas tendências habituais que possuem, apenas através da aplicação de técnicas apropriadas para efectivamente alterar a forma como o seu cérebro funciona.

António Damásio. 2008. Wikipedia.
António Damásio (2008). Fonte: Wikipedia.

Mas há um limite à plasticidade do cérebro. É justamente quando começamos a avançar para aspectos que têm a ver com a própria identidade que as coisas se complicam. Identidade é daquelas coisas complicadas de explicar do ponto de vista das ciências da mente e do cérebro. Gosto de uma teoria proposta pelo nosso neurocientista António Damásio, que explica que guardamos todos os momentos na nossa memória com uma auto-referenciação do corpo: ou seja, a nossa memória não são apenas imagens, sons, sabores, etc., mas todos estes «momentos de memória» incluem também uma indicação onde é que o nosso corpo estava no momento em que «capturámos» uma memória. Podemos não nos aperceber disso, porque ao relembrar a memória, normalmente não nos apercebemos da nossa «presença» nessa memória (tal como no dia-a-dia não nos apercebemos da nossa presença constante, pois ela está sempre lá). Mas aparentemente esta auto-referenciação está sempre lá (António Damásio conta de casos em que certas pessoas, devido a danos cerebrais, perderam essa referenciação: têm memórias, mas não se identificam com elas, é como se estivessem a ver um filme — ou como se as memórias pertencessem a outras pessoas). Alegadamente, pois, é esta sucessão de auto-referenciação presente em todas as nossas memórias que nos dá uma «sensação de identidade» — o elemento condutor, ou ligador, que conecta as memórias entre si.

Ora para este mecanismo funcionar — o da auto-referenciação do corpo — há certas áreas do cérebro que têm de funcionar (tal como António Damásio observou, quando a auto-referenciação não está presente nas memórias, a pessoa «perde a identidade» de quem é — existe apenas no momento presente, sem noção de continuidade com o passado). É aqui que entra o problema da disforia de género: a auto-referenciação do corpo está «avariada», pois o cérebro acha que o corpo não tem o género de acordo com o do cérebro, em maior ou menor grau. Obviamente que só posso falar por mim mesma, mas a minha mulher já reparou que é estranho como eu tenho poucas memórias de infância — quase nenhumas, de facto, e as poucas que tenho não sei se são memórias falsas (coisas que me contaram tantas vezes que acabei por criar a minha versão dos acontecimentos e penso que são memórias reais) ou não. Só começo a ter algumas memórias reais, bem claras e distintas, mais ou menos a partir dos 15 anos, com algumas excepções, pois foi a partir dessa altura em que comecei seriamente a preocupar-me com a razão pela qual me imaginava, em sonhos (voluntários ou involuntários), sempre como mulher. Uma memória anterior a essa, por exemplo, é a do primeiro dia em que me masturbei, provavelmente com 11 ou 12 anos, em que a minha «fantasia» (se é que lhe posso chamar isso) era imaginar-me com o corpo de uma mulher — durante anos e anos, só assim é que conseguia masturbar-me com orgasmo, com raríssimas excepções.

Embora não tenha discutido estes pormenores com muita gente, pelo que não posso fazer grandes comparações, especulo que no meu caso a disforia de género tenha «baralhado» ou «avariado» o mecanismo de auto-referenciação nas memórias, e isso, como disse, está directamente ligado à sensação de identidade. Como o meu cérebro não se identifica perfeitamente com o meu corpo, esta auto-referenciação ficou um pouco baralhada, e o meu cérebro, a um nível subconsciente, não sabe muito bem o que fazer das memórias — é quase (mas não bem) como se fossem memórias de outra pessoa.

Também por várias razões (talvez distintas, talvez relacionadas) sempre tive um problema de auto-imagem: quando me olho ao espelho, acho-me monstruosa, seja na minha versão masculina, seja na feminina. A feminina é mais agradável de ver, claro está, e há pequenos momentos em que essa sensação de «monstruosidade» desaparece. Mas habituei-me de tal forma a achar o rosto no espelho odiosamente deformado que não é possível, conscientemente, mudar essa opinião àcerca da minha pessoa. Quando vejo fotografias minhas de quando era pequena, essa sensação é ainda mais forte: ainda me acho mais horrorosa enquanto nova, e há um fenómeno de distanciação — em certa medida, é como se o meu cérebro me dissesse que aquela pessoa não sou eu, ou que não devia ser eu (o que por vezes me faz involuntariamente corar de vergonha quando vejo fotos antigas minhas, embora não haja nenhuma razão lógica ou racional para que isso aconteça). Acredito que tudo isto esteja ligado à auto-percepção «avariada» do corpo, que tem influência sobre a identidade. Há aqui um mecanismo biológico que devia estar a funcionar a 100% — que funciona a 100% na esmagadora maioria das pessoas — mas que no meu caso não funciona.

Como tenho referenciais externos que me influenciam — a sociedade dita-me o comportamento de género que devia ter, através de exemplos dados por terceiros — há aqui uma tensão entre o que é esperado que eu seja (devia comportar-me como um homem biológico no papel social masculino) e aquilo que o meu cérebro me diz que devia ser. Como isto não é uma coisa recente, mas sim algo com que lido há pelo menos 30 anos (e provavelmente mais), a minha mente anda baralhada há muito tempo: por um lado, há uma «dissonância» entre corpo e cérebro, pelo outro lado, há décadas a tentar conscientemente «forçar» o meu cérebro a funcionar correctamente, reprimindo todas as sensações, emoções, e pensamentos que tenham a ver com essa «dissonância». No dia-a-dia, não posso estar constantemente a pensar que estou a viver no corpo errado, senão não consigo fazer mais nada (e, de facto, esse é justamente um problema que surge nas pessoas com disforia de género grave). Logo, «forço-me» para não pensar nisso. E faço-o há décadas…

A consequência, claro, é que esta repressão e supressão constante vai conduzir a estados de mente alterados e que não são saudáveis — é como se estivesse a criar camadas e camadas de «avarias» em cima de um cérebro que, já por si só, está «avariado» de raíz. No meu caso, isto conduziu a uma depressão atípica, ansiedade, e outros problemas do género. Levou muito tempo a chegar a este ponto, claro está, e cada pessoa será diferente e poderá reagir de forma diferente: julgo que a maioria das pessoas que sofram de alguma forma de disforia de género, na realidade, consegue sobreviver durante toda a sua vida sem «avariar» o cérebro de vez, ou seja, sem que tenha quaisquer sintomas de outras perturbações mentais. E estas pessoas todas, evidentemente, escaparão sempre às estatísticas — nunca saberemos quem são ou quantas são.

Como «consertar» o cérebro…

Há muitas causas para o crossdressing, e a disforia de género é apenas uma, e muito provavelmente — a acreditar nas estatísticas — é a menor delas todas. No entanto, o impedimento (social, familiar…) de poder fazer crossdressing com a frequência desejada pode causar perturbações, como a ansiedade ou mesmo a depressão. É por isso que o diagnóstico destas situações tem de ser feito por um especialista (em Portugal, de sexologia clínica) — é que os sintomas podem ser os mesmos (ansiedade, depressão), em maior ou menor grau, mas a causa pode ser diferente.

Nos casos em que a causa não é a disforia de género, o cérebro pode ser «consertado» com relativa facilidade. Podem existir causas traumáticas, muitas vezes vindas de infância — violência doméstica, abusos sexuais, insatisfação dos pais «que sempre quiseram ter uma menina», etc. — mas, como disse, as consequências das experiências traumáticas são muito bem documentadas e conhecidas, e há tratamentos específicos para estas, que são muito eficazes. Se for o trauma que está na origem do crossdressing, é muito razoável de assumir que, uma vez curadas as consequências do trauma, o «desejo» de crossdressing desapareça ou diminua.

Por vezes, o crossdressing é meramente um escape de uma vida stressante. Não é sequer um fetiche ou uma fantasia sexual, mas está ao mesmo nível de quem pratica desportos radicais para aliviar o stress do dia-a-dia — podemos achar estranho porque é que alguém precisa de arriscar a sua vida a escalar montanhas sem cordas e sem ferramentas, para aliviar o stress, mas a verdade é que a adrenalina é uma droga natural que é viciante e pode aliviar stress do ponto de vista bioquímico. Para este tipo de pessoas que praticam crossdressing como escape, pode a mistura de adrenalina e serotonina libertada durante a sessão de crossdressing aliviar os sintomas do stress. Neste caso, evidentemente, a cura passa por eliminar o stress do dia-a-dia, o que pode implicar uma mudança de hábitos (mudar de emprego, de cidade, etc.) ou, eventualmente, uma substituição da actividade de escape.

Há também casos documentados de pessoas com tendência para a depressão crónica que, em desespero, recorrem ao crossdressing para aumentar os níveis de serotonina. Talvez a escolha do crossdressing seja pouco habitual ou invulgar. No entanto, nestes casos, ao curar a depressão, também deixa de haver necessidade de fazer crossdressing. Isto é frequente nos casos em que pessoas admitem publicamente que «deixaram de ser crossdressers» e que «qualquer pessoa se pode curar deste vício» — e que frequentemente aparecem em sites de propaganda religiosa. Muitas vezes não se tratam de fraudes, mas sim de pessoas que não tinham qualquer disforia de género (apenas pensavam que tinham) — tinham apenas depressões que se curaram através de uma prática espiritual, por exemplo. Os raríssimos casos de pessoas que se «arrependem» de uma transição após a cirurgia (são de facto muito poucos) muitas vezes não tinham qualquer disforia de género, mas sim um misto de experiências traumáticas (que por vezes não transmitiam correctamente aos médicos, talvez por vergonha) e de tendências depressivas, causando um diagnóstico errado.

Finalmente, existem os casos genuinos de disforia de género. Aqui a ciência médica e psicológica tem uma barreira inultrapassável: é que, segundo parece, o que «causa» a disforia de género foi determinado embriologicamente e não é possível de alterar o cérebro bioquimicamente — ou através de treino psicológico — para funcionar de outra forma. A única resposta da ciência médica é: se não podemos alterar o cérebro, podemos alterar o corpo. Nestes casos só a transição é uma solução.

No entanto, há vários graus de disforia de género. Em Portugal esta terapia não é legalmente admitida (embora eticamente talvez o seja), mas em certos países é possível fazer alguma forma ligeira de terapia hormonal para diminuir a intensidade dos sintomas da disforia de género. O indivíduo em questão pode não fazer uma transição de facto — ou seja, continuará a assumir o papel de género correspondente ao corpo biológico com que nasceu — mas os efeitos das hormonas podem equilibrar os sintomas da disforia de género. Em muitos casos, depressões clínicas resistentes à medicação e à terapia podem ser revertidas apenas com uma terapia hormonal ligeira. Este tipo de terapia é frequente igualmente em casos de hipersexualidade, ou seja, pessoas que têm dificuldade em lidar com a sua líbido exageradamente alta (segundo um padrão de normalidade que é meramente estatístico), e que entram em depressão por não conseguirem ter sexo com a frequência que necessitam. Nestes casos, diminuir a líbido artificialmente com terapia hormonal pode eliminar o stress, a ansiedade, ou a depressão causada pela hipersexualidade.

Este tipo de tratamento também parece dar bons resultados a lidar com as consequências da disforia de género; no entanto, como a terapia hormonal acarreta riscos para a saúde, e tem consequências físicas, não é acessível em todos os países. Em Portugal, por norma, a terapia hormonal que conduza a alterações fisiológicas só é aceitável nos casos em que se pretende transitar para o género oposto ao que foi atribuído à nascença — não há indicação clínica para usar a terapia hormonal com fins terapêuticos para tratar disforias de género mais ligeiras.

Outra forma de lidar com a disforia de género é, surpreendentemente, aumentar de intensidade as sessões de crossdressing. Isto pode parecer um pouco estranho, mas nesta abordagem, a pessoa é encorajada a fazer mais sessões de crossdressing, e a obter aceitação por parte de pessoas próximas de si para que esta actividade seja tolerada. Há, pois, uma barreira psicológica a ultrapassar — contar ao cônjuge, aos filhos, à família, aos amigos mais próximos — onde os médicos podem ajudar e dar apoio. Uma vez ultrapassada essa barreira, no entanto, a pessoa não «necessita» de fazer uma transição: o crossdressing, por si só, é um factor de alívio dos sintomas. É como fazer exercício físico para curar a depressão — como o exercício físico liberta serotonina, ajuda sempre a combater a depressão, especialmente nos casos mais ligeiros. Aqui aplica-se o mesmo princípio.

Quando a disforia de género é mais grave, então até pode-se dar o caso inverso: o crossdressing não só não é «satisfatório» como, pelo contrário, é motivo de grande frustração — porque a pessoa reconhece que não é por vestir a roupa de uma mulher (assumindo neste caso a transgenderidade MtF, mas o mesmo se aplica ao caso inverso) que se «torna» numa mulher. Por outras palavras: o cérebro não se deixa enganar facilmente. É preciso bem mais do que isso. Estes indivíduos acabam por abandonar o crossdressing muito cedo no seu percurso, pois não os satisfaz minimamente, ou até tem um efeito negativo: ao ver o seu aspecto físico enquanto vestindo roupas do género oposto, ainda sentem mais intensamente a sua disforia, ao perceber que não se parecem, de todo, com pessoas do género com que se identificam. Ou seja: o crossdressing acaba por lhes expôr o pior que sentem relativamente ao seu corpo.

Segundo as normas e protocolos que regem os cuidados de saúde das pessoas transgénero (WPATH), a abordagem clínica à disforia de género deve seguir o princípio do «tentar curar aquilo que se pode curar». Se a pessoa sofre devido a experiências traumáticas; se sofre devido a repressões e supressões de sentimentos; se sofre devido a problemas com a sua auto-imagem física; se sofre de stress, irritação, ansiedade, ou depressão clínica… mesmo que a causa de todos esses problemas seja efectivamente a disforia de género, primeiro de tudo, vai-se tratar de todas essas perturbações mentais, o que está ao alcance da psiquiatria e da psicologia.

Em muitos casos, o tratamento destas condições pode, por si só, aliviar o sofrimento causado pela disforia de género (caso em que efectivamente a pessoa não sofria de disforia de género, mas esta era apenas uma consequência das outras condições mentais todas). É por isso que os médicos primeiro experimentam curar estes sintomas todos, e ver o que resta.

Noutros casos é preciso validar o grau de intensidade da disforia de género. Os casos mais extremos — a pessoa pensar em suicidar-se se não conseguir fazer a transição — evidentemente são tratados justamente com essa transição. Mas nos restantes casos, pode não ser necessário ir tão longe. Uma pessoa pode eventualmente viver a vida toda com disforia de género, mas aprender a lidar com os seus malefícios, de forma a que não perturbe o seu funcionamento no dia-a-dia. Também há, evidentemente, casos de disforia de género mais graves onde o paciente, pelas mais diversas razões (sociais, familiares, financeiras, clínicas…), não pode fazer a transição. Nesse caso, os especialistas em sexologia clínica podem ajudá-lo a lidar com a disforia de género. Isto é mais ou menos a mesma coisa que ensinar alguém que tenha uma doença incurável a lidar com essa doença. É possível!

Mas, claro, do ponto de vista da ciência médica actual, a única cura para a disforia de género é mesmo a transição.

Conclusão

Em geral, ao olhar para uma pessoa que faz crossdressing, não podemos avaliar as razões pelas quais o faz. Naturalmente, do ponto de vista social, está sempre presente a ideia da crossdresser fetichista, que se veste de mulher para encontrar parceiros sexuais — visto este ser, de facto, o maior grupo de entre os crossdressers — o que, infelizmente, obriga as crossdressers que não sejam fetichistas a enfrentar um estigma social, que é o de serem vistas essencialmente como fetichistas sempre que se vestem do género oposto e estão em espaços públicos (para além de tudo o resto).

Das restantes crossdressers, muitas fazem-no por razões que nada têm a ver com as questões de identidade de género — mas que não têm como objectivo principal o fetiche sexual, ou, se se trata de um fetiche, é um fetiche de objecto (vestir roupas de mulher, comportar-se como uma mulher em público, dá prazer sexual auto-erótico). Em geral, estas pessoas estão mentalmente equilibradas no sentido em que não têm qualquer problema em lidar com a sua identidade e expressão de género.

O terceiro caso, menos frequente, está alegadamente ligado a alterações profundas a nível do funcionamento do cérebro, em que existe, de facto, uma falta de sintonia ou harmonia entre a identidade de género que o cérebro assume como sua, e a do resto do corpo. Esta «falta de sintonia» é vulgarmente conhecida por disforia de género, que pode ser ligeira ou muito grave, e apresentar diversos sintomas. Quando é muito ligeira, pode não ser sintomática (ou seja, a pessoa sente apenas um ligeiro «incómodo» que muitas vezes pode ser ultrapassado praticando crossdressing — ou às vezes nem sequer isso é necessário).

Quanto é mais grave ou mais profunda, o crossdressing assume o papel da expressão de género com que a pessoa se identifica. Mesmo que não se auto-classifique como tal, estamos na presença de alguém que é, sem dúvidas, transgénero — no sentido em que escapa ao heteronormatismo cisgénero. Mais uma vez, cada caso é um caso, e a disforia de género pode apresentar uma série de sintomas, desde a infância mais tenra até à idade adulta, e não é por uma pessoa praticar crossdressing, com mais ou menos regularidade, que é possível aferir o grau de disforia de género que tem.

Nos casos mais sérios, pode surgir uma atitude de rejeição, negação, repressão e supressão. São mecanismos de defesa de um cérebro que está tecnicamente «avariado», no sentido em que não funciona da forma que seria esperado que funcionasse. Alega-se que esta «avaria» pode ter sido condicionada embriologicamente (e não geneticamente) e que, como tal, não é reversível do ponto de vista da ciência neurológica e psicológica. Trata-se de uma alteração permanente. Os mecanismos de defesa ou de compensação são um método empregue pelo cérebro para tentar «compensar» a avaria. Infelizmente, estes métodos podem agravar o problema em vez de o solucionarem: anos ou décadas de supressão e repressão causam alterações profundas ao estado de saúde mental da pessoa em questão, e, mais cedo ou mais tarde, podem surgir outras condições mentais, como a agressividade/ansiedade, a depressão, ou mesmo as tendências suicidas.

Como todos os casos são tão diferentes, estas condições mentais podem surgir mais cedo ou apenas muito mais tarde. Nos casos em que surge muito cedo, como por exemplo na infância, o indivíduo pode receber um tratamento hormonal de supressão da puberdade até atingir a idade adulta. Isto evita que surjam sequer os atributos sexuais secundários até que a pessoa queira ou possa decidir se pretende efectuar a transição para o género com que se identifique ou não. A suspensão da puberdade é um método muito eficaz com excelentes resultados; é evidente que terá de ser complementado com cirurgias, mas a verdade é que o não aparecimento de características sexuais secundárias (ex. no caso MtF, não há aumento de massa muscular, nem engrossamento da voz, não surgem pelos faciais ou corporais, etc.) ajuda a que a transição possa ser feita a doses hormonais menores, com menos efeitos secundários, e com um efeito bastante mais pronunciado. Normalmente, estas pessoas podem levar uma vida futura livre de discriminação com muito mais facilidade, visto que entram já na idade adulta com um corpo fisicamente indistinguível (pelo menos do exterior) de alguém do género com que se identificam.

Quando as manifestações das condições associadas à disforia de género surgem muito mais tarde, depois da puberdade — ou mesmo em idade adulta mais avançada — as dificuldades são maiores, pois na maior parte dos casos os mecanismos de compensação estiveram activos durante mais tempo: a negação e a supressão da disforia de género através de um trabalho consciente faz com que a pessoa procure desesperadamente comportar-se de acordo com o género que lhe foi atribuído: cria uma família, pratica actividades estereotipadas de acordo com o género atribuído, e assim por diante. Esta tentativa de «forçar uma normalidade» vai, naturalmente, criar um aumento de «tensão» — a pessoa em questão está deliberadamente a desempenhar um papel de género com o qual não se identifica, na vã esperança de, ao fazê-lo, procurar «afastar» as emoções associadas à disforia de género. Descrevo esta experiência como «avariar ainda mais um cérebro que já está avariado»: pois está-se a forçar o cérebro a pensar e a sentir de acordo com um condicionamento de género para o qual este (o cérebro) não está «adaptado».

As consequências, pois, são o surgimento de outras perturbações mentais, em grau mais ou menos sério, devido a este mecanismo de compensação. Ou seja, há efectivamente uma pequena distinção entre uma depressão sentida por um adolescente com disforia de género e um adulto. No caso do adolescente, a rejeição do género atribuído é explícita e mais imediata: passa-se relativamente pouco tempo até a criança ou adolescente informar os pais que quer ser uma menina (no caso MtF) ou um menino (no caso FtM). Enquanto não é levado a sério, a pessoa efectivamente pode passar por uma fase de ansiedade e depressão, pois está explicitamente a rejeitar aquilo que os pais, familiares, amigos, professores etc. desejam que seja o seu papel de género. Ou seja, nunca há sequer uma «aceitação» propriamente dita. Há, sim, uma noção de que o papel de género lhe está a ser imposto contra a sua vontade, vontade essa livremente expressa, mas que lhe é negada.

No caso da transgenderidade manifesta na idade adulta, o que acontece é que é a própria pessoa a auto-negar-se a sua condição transgénero. Por outras palavras, não há uma «imposição externa» de ninguém. A disforia de género não é comunicada a ninguém, mas sim negada, suprimida e reprimida. Há uma tentativa constante de forçar a adopção do papel de género atribuído, mesmo que este seja mentalmente intolerável (mas há tantas coisas desagradáveis na vida, esta é apenas mais uma delas…). A disforia de género não só nunca é abertamente assumida, como a própria pessoa procura auto-enganar-se dizendo que não existe. Os desejos de se manifestar de acordo com o género com que se identifica são suprimidos e reprimidos ao ponto de nem sequer se tornarem conscientes, mas sim «enterrados» o mais fundo que for possível, procurando-se desesperadamente a adopção de uma cisgenderidade heteronormativa.

Mais cedo ou mais tarde, no entanto, estes sentimentos/desejos associados à identificação com um género que não é o atribuído à nascença, vão causar outras condições psicopatológicas. Agora já não falamos no desespero, na irritação, na ansiedade, na depressão que um adolescente sente ao ver que os seus desejos são rejeitados externamente pelas pessoas com quem lida. Em vez disso, surgem estas mesmas condições, mas a sua causa foi auto-imposta (bem entendido, na tentativa de «agradar» à sociedade, apresentando um papel de género que é socialmente aceitável), e por isso as manifestações destas condições podem tomar formas muito diferentes das da adolescência — em certo caso, mais graves (porque os mecanismos de supressão e repressão estiveram activos durante décadas e não apenas anos), mas que também podem aparentar ser mais ligeiros (porque é sabido que as crianças e adolescentes podem reagir de forma exagerada aos seus sentimentos e emoções, enquanto que os adultos, regra geral, são melhores a «disfarçar» esses seus sentimentos e emoções, especialmente quando sabem que estes não são socialmente aceitáveis).

Também nestes casos, existem diversas formas de lidar com o problema. Nem todas as pessoas que fazem crossdressing (não-fetichista) apresentam realmente disforia de género. Em muitos casos, felizmente, o crossdressing apenas surge como um mecanismo de compensação ou adaptação para lidar com uma condição psicopatológica que pouco ou nada tem a ver com disforia de género (por exemplo, para alívio de stress). Nestes casos, basta tratar a causa psicológica do problema, que a «necessidade» de crossdressing pode pura e simplesmente deixar de existir. Há de facto muitos casos assim, e cabe realmente aos especialistas desta área identificarem correctamente o problema real, e conduzirem o paciente a um processo de cura apropriado para esse problema. Mesmo que o próprio pense que tem disforia de género, isto pode não ser o caso!

E, finalmente, nem para todos os casos de disforia de género a transição é a única cura possível. Tecnicamente, do ponto de vista clínico, não existem nenhum processo definitivo para «curar» a disforia de género senão o processo de transição. Não há medicamentos nem terapias que permitam reverter a anomalia de funcionamento de um cérebro que não identifica o respectivo corpo como pertencendo ao mesmo género que este — e mesmo que algum dia tais medicamentos/terapias existam (o que é muito pouco provável e altamente implausível), questionar-se-ia a ética de tais tratamentos. Basta dizer que temos, infelizmente, décadas de «experiências quase-científicas» relatadas de épocas recentes, cheias de intolerância para com a transexualidade, em que sabemos que não há forma clínica ou terapêutica que permita «acabar» com a disforia de género — trata-se de um facto cientificamente mais que comprovado. O que se pode, isso sim, é fazer a transição: se não podemos mudar o cérebro, podemos mudar o corpo, e mudar a expressão de género do indivíduo, em termos sociais. É isso que significa que «a transição é a única cura possível»: a única forma de eliminar os sintomas da disforia de género é deixar que o indivíduo se expresse de acordo com o género com que se identifica, que aja e se comporte socialmente como uma pessoa desse género, e que o seu corpo seja modificado, dentro do que está ao alcance da cirurgia plástica, para se parecer o mais possível com o género com que se identifica. Isso, sim, é a única terapêutica que conhecemos que dá resultado — em percentagens bem próximas dos 100% (esta percentagem só não é de 100% porque infelizmente existem alguns poucos e raros casos cujo diagnóstico foi errado à partida).

No entanto, nem todos os casos que apresentam disforia de género podem ou querem seguir pela via da transição. O caso mais óbvio, claro, é o da fluidez de género — em que o indivíduo não se identifica com nenhum dos géneros ou com ambos em simultâneo — e que a transição de um género para o outro não é satisfatória de todo. Embora a condição de fluidez de género seja reconhecida e identificada correctamente pelas equipas de psicologia e psiquiatria, em Portugal, por exemplo, não existe qualquer enquadramento legal para estes indivíduos: a lei portuguesa apenas reconhece dois géneros, e permite a passagem de um género para o outro (com o aval das equipas médicas que fazem o diagnóstico e acompanhamento), mas não se pronuncia quanto àqueles que não se identificam com a ideia de um género binário, e que pretendem se exprimir de acordo com a ausência de género binário.

Menos óbvios são os casos em que a disforia de género não é «muito grave». Na literatura a que tive acesso, a definição de «muito grave» é mais ou menos quando o indivíduo ameaça suicidar-se se não transitar de género (e geralmente num prazo curto). Neste caso estamos literalmente perante uma situação de vida ou de morte. Estes indivíduos quase sempre estão em depressão clínica muito grave com tendências suicidas — independentemente da idade que têm — e não têm a menor dúvida que só a transição lhes pode proporcionar alívio. Não lhes preocupa minimamente as consequências dessa transição (perder a família, os amigos, o emprego, ser discriminado em público, etc.), pois tudo é mais suportável do que continuar a suportar a sua disforia de género. Estes casos são clássicos e comparativamente fáceis de diagnosticar.

Mas noutros casos a disforia de género pode ser «grave a ligeira». O indivíduo em questão pode não apresentar quaisquer tendências suicidas. Pode, no entanto, ter depressões clínicas de longa duração, que sejam recorrentes ou crónicas. Pode sofrer de ansiedade/irritação permanente. Pode ter consequências de traumas, ou da supressão e repressão de sentimentos durante décadas. Nalguns países, estes indivíduos podem ser encaminhados para uma transição «parcial» (por exemplo, através de alguma terapia hormonal com efeitos mais ligeiros e assim mais facilmente revertidos), em que exista algum alívio da disforia de género, e consequente diminuição ou eliminação das restantes condições mentais. Em Portugal, aparentemente, esta via não é possível, mas é sempre possível o aconselhamento psicológico para ajudar a lidar com o problema. Podemos, de certa forma, encarar o apoio psicológico neste caso como o de qualquer doença crónica potencialmente terminal (como, por exemplo, o cancro), em que os médicos sabem que a cura não existe (ou pode não ter sucesso imediato), e que se prepara o paciente, psicologicamente, para «aceitar» a sua condição. O mesmo é possível de fazer para a disforia de género (embora esta tenha cura!): se o paciente não puder efectuar a transição por alguma razão (clínica ou pessoal), os especialistas podem ajudá-lo a lidar com a sua condição, tratar separadamente todas as condições mentais que apresente, e proporcionar-lhe algum alívio. Para estes pacientes, por exemplo, o crossdressing pode ser uma actividade terapêutica! Isto por vezes pode significar explicar a cônjuges, familiares, e talvez até amigos mais próximos, que a pessoa em questão tem uma condição mental «incurável», mas que o crossdressing é uma terapêutica que proporciona algum alívio, pelo que as pessoas que estão mais próximas deste indivíduo devem ser levadas a compreender (por mais estranho que lhes possa parecer!) que esta pode ser a única forma de ajudar a pessoa a deixar de estar deprimida, agressiva, irritada, ansiosa, etc.

Claro que, mais uma vez, isto não se aplica a todos os casos (quanto mais grave for a disforia de género, em geral menos «satisfação» é obtida pelo crossdressing, que é visto apenas como um «substituto» muito fraco daquilo que a pessoa efectivamente pretende, que é a transição completa). No entanto, é um ponto importante a ter em conta: que para muitas pessoas com disforia de género (mesmo que ligeira), o crossdressing pode ser apenas uma forma de terapia (invulgar).

No meu caso, fiquei evidentemente surpreendida quando a minha psicóloga me disse para fazer mais crossdressing, porque receava que isso fosse agravar o meu problema. Mas como aparentemente o problema principal que tenho é a falta de serotonina no cérebro — o que causa a depressão clínica mais grave — e o crossdressing é a única coisa que aparentemente mantém os níveis de serotonina «normais», então, para combater a depressão, tenho de fazer mais crossdressing. Parece óbvio quando analizado friamente e com alguma racionalidade, mas não deixa, para mim, de me parecer muito esquisito. E sei também que terei imensa dificuldade em explicar isto a outra pessoas que não seja a minha mulher. Até porque a experiência que tenho mostra-me que nem sequer a maioria das crossdressers — que praticam crossdressing por razões completamente diferentes — não conseguem compreender o problema…

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