Da liberdade de escolha de vestuário

Neste final de ano fica aqui um texto para reflectir sobre as nossas liberdades e direitos!

Recentemente discutiu-se no Facebook a questão das crossdressers, em Portugal, «poderem vestir o que quiserem e poderem ir a qualquer lado vestidas de mulher». Resolvi investigar um pouco esta matéria, e, regra geral, pode-se responder que SIM, podemos efectivamente vestirmo-nos como quisermos, e andar vestidas de mulher em público sem qualquer problema. Isto assenta num princípio constitucional fundamental, a liberdade de expressão, consagrada no Artº 37 da Constituição da República Portuguesa, à semelhança do que acontece em todos os países que adoptaram uma constituição conforme com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, cujo artigo 19 consagra este direito como sendo inalienável.

É comum a interpretação de que o direito a vestirmo-nos da forma como quisermos é uma manifestação da nossa liberdade de expressão. No entanto, é importante perceber que este direito não é um direito absoluto, e é disto que irei falar um pouco.

O caso da nudez

Todos sabemos que podemos ir à praia apenas com uns calções, mas que não podemos entrar num casino apenas de calções (em Portugal, tanto homens como mulheres podem andar de tronco nu nas praias e piscinas). E também sabemos que podemos frequentar praias/piscinas de nudistas completamente nus (assim como alguns estabelecimentos, como saunas ou banhos turcos), mas não podemos ir nus para as praias que não sejam para nudistas. Ora isto parece que é uma limitação à nossa liberdade de expressão! Como é possível que isto possa então ser «restringido» sem violar a Constituição e os nossos direitos fundamentais?

A explicação não é muito simples!

Quando os eruditos juristas desenharam a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), acrescentaram o famoso artigo 30, que diz:

Nenhuma disposição da presente Declaração pode ser interpretada como o reconhecimento a qualquer Estado, grupo ou pessoa, do direito de exercer qualquer actividade ou praticar qualquer acto destinado à destruição de quaisquer dos direitos e liberdades aqui estabelecidos.

Por exemplo: não posso usar a minha liberdade de expressão para matar alguém (como forma de expressão artística), pois o direito à vida é definido pelo artigo 3. Mas o inverso também é verdade, claro: não posso invocar o direito à vida para impedir que outra pessoa manifeste a sua liberdade de expressão. E, de forma mais complexa, não posso invocar a minha liberdade de expressão para limitar a liberdade de expressão de outra pessoa. Estas coisas podem parecer ser exercícios abstractos de semântica, mas têm uma importância num caso bastante óbvio: no caso da calúnia, injúria ou difamação, que é coberta pelo artigo 12:

Ninguém será sujeito a interferências em sua vida privada, em sua família, em seu lar ou em sua correspondência, nem a ataques à sua honra e reputação. Todo ser humano tem direito à protecção da lei contra tais interferências ou ataques.

Ou seja: não posso, por exemplo, insultar alguém alegando o meu direito à liberdade de expressão. Isto é uma violação da honra e reputação da outra pessoa.

Nos países como Portugal que seguem estes princípios, se insultar alguém ou se espalhar mentiras sobre uma pessoa estou a praticar o crime de calúnia, injúria ou difamação, que é punido no Código Penal (Artigos 180-189). Este tipo de leis são comuns em todos os países, mesmo naqueles em que há uma protecção da liberdade de expressão de forma mais «liberal». Traça-se a linha quando a nossa liberdade de expressão começa a violar direitos de outras pessoas.

Isto parece não ter nada a ver com a nudez, ou com a escolha de vestuário, mas na realidade tem! A par com as questões da protecção da privacidade, da honra, da reputação, etc. há igualmente a protecção de um princípio «de não ser incomodado». Por outras palavras: regra geral, não podemos invocar quaisquer direitos que possamos ter para incomodar outras pessoas. É sobre isto que assenta, por exemplo, o princípio de que os fumadores não podem incomodar não-fumadores, e entende o legislador que os não-fumadores são incomodados se os fumadores fumarem em espaços fechados não ventilados. Logo, os fumadores não podem invocar a liberdade de expressão para incomodar não-fumadores; mas o inverso também é verdade, ou seja, não-fumadores não podem alegar que são incomodados em espaços abertos — se o fizerem, então estão realmente a interferir com a liberdade de expressão dos fumadores!

Estas leis não estão «escritas na pedra» e vão mudando consoante os tempos e os costumes, sem se precisar de mudar a constituição ou a essência do código penal. Por exemplo, durante a maior parte do tempo em que Portugal foi uma democracia, os não-fumadores não se sentiam incomodados com o tabaco, mesmo em espaços fechados; mas a partir dos anos 80, o «movimento dos incomodados» foi crescendo mais e mais, até que a legislação mudou, e nos últimos doze anos passou a ser considerado «incómodo» fumar em espaços fechados não ventilados adequadamente. Ou seja: os princípios de base — a liberdade de expressão, o direito a não ser incomodado — não mudaram. O que mudou foi a definição de uma coisa que passou a ser considerada incómoda. Este tipo de definições pode mudar, consoante as «modas» da sociedade, sem que se precise de alterar os princípios subjacentes que já existem na lei e na constituição.

Voltemos à praia! Penso que só nos anos 90 é que passou a ser permitido também às mulheres estarem de tronco nu na praia. De novo passou-se a uma situação em que o topless era «incómodo» para muitas pessoas — e, como tal, o direito à liberdade de expressão em topless para as mulheres não se podia sobrepor ao direito das pessoas que não gostavam de topless e que se sentiam incomodadas com isso — até precisamente o contrário. Foi decretado em lei que o topless não incomoda ninguém (do ponto de vista legal, bem entendido!), e, como tal, deixou de ser proíbido impedir que as mulheres façam topless. Quem mesmo assim se sinta «incomodado» terá de mudar de sítio (ou de praia!) — não pode mais invocar o seu «direito a não ser incomodado» neste caso específico. No entanto, as pessoas ainda se sentem incomodadas pela nudez total, pelo que esta não é permitida — excepto em locais onde é explicitamente permitida.

Aqui já vemos a subtileza da lei a funcionar! A nudez, por si só, não é intrinsecamente incomodativa — mas também o «direito à nudez» não é um direito inalienável. Cria-se então uma situação de compromisso. Nas praias, por omissão, a nudez é proibida. No entanto, nada impede que alguém (e o «alguém» inclui, bem entendido, as câmaras municipais, as freguesias, os proprietários de piscinas privadas, etc.) permita explicitamente a nudez em espaços onde se encontre afixada de forma bem legível esta permissão. Por outras palavras: ninguém em Portugal pode proibir, ou impedir, que hajam praias de nudistas. Muito menos impedir que nessas praias se pratique o naturismo. Se o fizerem, estão, sim, a violar a liberdade de expressão daqueles que praticam naturismo — pois estão a fazê-lo em locais onde é explicitamente permitida a nudez.

Mas então porque não podemos andar de calções e de tronco nu no meio da Baixa (especialmente se formos mulheres a fazer topless)? Bem, tecnicamente, não o devemos fazer, mas não é também estritamente proibido. Aqui entra em vigor uma outra lei, bastante diferente, que regula os crimes de exibicionismo.

Em Portugal, considera-se que o exibicionismo com objectivos sexuais é conhecido pelo nome de  crime de importunação sexual (Código Penal, Artº 170 (anterior 171)), que dá direito a um ano de prisão. Também é apenas considerado exibicionismo a apresentação dos órgãos genitais em público, normalmente com a intenção deliberada de excitar sexualmente ou aliciar terceiros a práticas sexuais, ou então meramente com a intenção de chocar terceiros («incomodá-los»). A jurisprudência determina:

A conduta típica do crime de importunação sexual é um acto de natureza sexual (que não tenha a gravidade de acto sexual de relevo) praticado contra a vontade da vítima e na presença da mesma ou sobre esta (que seja constrangida a presenciar ou suportar) e, em tal medida, seja importunada.

Mas a lei é muito vaga. Parece ser claro no caso de alguém que se despe no meio da rua com o objectivo de chocar terceiros; também é claro no caso de aliciamento sexual contra a vontade de terceiros (mesmo que não haja violação); mas há muitas «áreas cinzentas» em que só mesmo um juíz saberá se pode ou não invocar esta lei, pois é preciso definir o que é um acto de natureza sexual. Por exemplo, os naturistas têm consignado na jurisprudência que a nudez em praias, piscinas, ou semelhantes área públicas ou privadas, desde que claramente afixadas como tal, não constituem em caso algum exibicionismo. Mas podemos ir mais longe. Espectáculos de sexo ao vivo, em que obviamente vão haver cenas de nudez total, não são considerados, de forma alguma, exibicionismo — mais uma vez, estando no estabelecimento bem afixado à entrada o tipo de espectáculo de que se trata e de que este involve nudez e sexo (simulado ou real), e desde que o acesso a menores seja proibido. Como pode ser lido neste parecer, o entendimento vai sempre andar à volta do mesmo. Quem vai assistir a um espectáculo destes, sabe o que vai ver, pois essa informação tem de estar publicada e afixada claramente. Logo, depois, uma vez no interior do estabelecimento, não se pode declarar «incomodado». O mesmo se aplica à pornografia, cujo visionamento (seja em cinema — num espaço público — seja em casa) e respectiva distribuição não podem ser considerados crimes, mesmo que hajam pessoas que se sintam «incomodadas» com isso.

Aqui o princípio é sempre de que não se pode invocar «incómodo» para privar terceiros dos seus direitos à liberdade de expressão. Quem manifesta esse «incómodo» normalmente fá-lo por questões de moral, ética, religião, ideologia, etc. Pode, obviamente, manifestar-se publicamente (escrever um blog a dizer que é contra os espectáculos de sexo ao vivo e as praias de nudistas, por exemplo). Mas não tem o direito a impedir terceiros de se manifestarem livremente da forma como muito bem quiserem, mesmo em espaços públicos, desde que estes estejam devidamente identificados como tal.

Isto também significa que estas manifestações de nudez não podem ser espontâneas. Ou seja: não posso levar um grupo de amigos para um restaurante, e, mesmo que haja consentimento do dono e dos empregados, de repente despir-me completamente e praticar sexo com os meus amigos, mesmo que ninguém se sinta incomodado com isso (pelo contrário!). Na realidade, como neste caso faltou a afixação obrigatória da informação sobre a natureza dos actos que se iam praticar, esta «manifestação de nudez espontânea» é considerada crime de exibicionismo — mesmo que, nesse dia, toda a gente declare que estava de acordo e que ninguém se sentiu incomodado com a situação!

No entanto, seria possível esse mesmo grupo de amigos contactar o dono do restaurante, e este previamente fechar o mesmo — abrindo-o só a esse grupo de amigos — e colocando um aviso bem claro (a lei até diz mais ou menos onde afixar, com que dimensões, «em letras sobre fundo contrastante», etc.) de que naquele dia, naquele restaurante, vai haver sexo ao vivo e nudez integral. Se o fizerem desta forma, não estão a violar nenhuma lei, e, mais significativamente, ninguém os pode impedir de o fazer. Tudo o que alguém que se «sinta incomodado» com a situação pode fazer é protestar (escrevendo cartas para os jornais, fazer uma petição pública, etc.). Mas nem sequer podem ir fazer barulho à porta do estabelecimento! Isso seria «incomodar» aqueles que, lá dentro, estão legítima e legalmente a exercerem o seu direito à liberdade de expressão, e ninguém pode fazer uma manifestação, espontânea ou organizada, para impedir a liberdade de expressão de terceiros (desde que esta esteja dentro dos parâmetros da lei).

Devo dizer que isto é tudo teoria, mas na prática as coisas são mais complicadas. Por exemplo, tecnicamente, é proibido fazer em Portugal uma manifestação contra a homosexualidade, pois isso é claramente um apelo à discriminação (em inglês: hate speech) e condenado criminalmente, pois a homofobia é estritamente proibida. Mas pode-se «dar a volta» à situação se a manifestação apenas disser que «somos contra que os homosexuais e os heterosexuais se beijem em público, porque nos sentimos incomodados com isso». Aqui pode haver uma interpretação por um juíz (creio que nunca aconteceu) que ache que beijar uma pessoa em público, seja qual for o género, é um caso menor de exibicionismo, pelo que protestar contra isto é uma legítima manifestação do direito à liberdade de opinião. Há alguma possibilidade de classificar um simples beijo como «acto sexual» (isto vem das questões relativas à pedofilia, em que foi preciso definir se existe crime de pedofilia quando um adulto beija uma criança com 13 anos, por exemplo), mas, que eu saiba, essa definição nunca aconteceu para beijos entre adultos. O meu ponto aqui é que esta interpretação já depende do juíz, e não necessariamente do que o legislador fixou na lei.

Onde queria chegar com este capítulo é fazer entender que, por um lado, já não existe a Lei da Moral e Costumes, abolida em 1974 com a queda do regime e a entrada na democracia; por outro lado, certos direitos não são «absolutos», como o direito à liberdade de expressão. São sempre condicionados pela forma como são usados perante terceiros. O princípio de que as pessoas não podem ser incomodadas com a nossa liberdade de expressão prevalece. No entanto, o contrário também é válido: se o que fizermos não incomoda ninguém, não há ninguém que nos possa impedir de fazermos o que quisermos!

O acesso a espaços públicos, semi-públicos, e privados

Estamos conversados em relação à nudez, e aos actos de natureza sexual, mas o que é que isto tem a ver com o crossdressing?

Há um princípio que é inabalável: o crossdressing, em privado, é sempre permitido, e é proibido qualquer tentativa de o limitar, seja de que forma for. Ou seja, os nossos vizinhos, se se sentirem «incomodados» com o nosso crossdressing, não podem protestar se o fizermos em privado.

Talvez haja alguma limitação se o crossdressing for feito em privado na presença de menores abaixo da idade de consentimento (14 ou 16 anos, consoante a legislação), mas isto não afecta os pais. Digamos que existe uma «área cinzenta» no caso dos pais convidarem uma amiga crossdresser e que hajam menores de 14 anos que se sintam «muito incomodados» com o assunto. Mas desde que não haja pedofilia envolvida, não vejo como se possa impedir legalmente os pais de uma criança a convidarem uma amiga crossdresser para a privacidade da sua casa, pois os pais, nesta situação, tomam a responsabilidade da educação que estão a dar à criança. De qualquer das formas esta seria a única excepção.

Também é evidente que não há problema que um grupo de amigas crossdressers se junte em associação (pois há liberdade de associação em Portugal), aluguem um espaço, e pratiquem o crossdressing em conjunto, em privado. Este espaço pode ser comprado ou arrendado, ou mesmo alugado por apenas uma noite. Aqui está-se a presumir que apenas crossdressers e pessoas que não se choquem com o crossdressing tenham acesso a este espaço. De notar que nestas situações até poderiam haver shows de sexo ao vivo em privado entre crossdressers, que nenhuma lei seria violada; pelo contrário, a lei protege o direito a estas actividades.

Parece que também é evidente que não é possível proibir uma crossdresser de andar vestida de mulher num «espaço público». Andei à procura na Internet sobre a definição legal, aplicável a Portugal, no que consiste um espaço público. Regra geral, esta definição vem da arquitectura, do urbanismo, e da sociologia. Definem assim que todos os espaços urbanos são públicos — desde as vias públicas (ruas, passeios), aos parques, às praças, etc. — mas também os equipamentos sociais em geral que pertençam ao Estado, como os hospitais, escolas, museus e salas de espectáculo, repartições públicas, etc. Já se vê aqui que há muitas «gradações de cinzento» nestas definições: se um hospital for resultado de uma parceria público-privada e for propriedade de terceiros que não o Estado, o seu espaço é público ou privado? Em teoria, seria público, já que o seu acesso é claramente público. Mas e se for uma sala de espectáculos cuja propriedade é de um instituto (cujos capitais sejam maioritariamente do Estado)? O instituto não é «o Estado» mas tem uma forte relação com este. Diria, uma vez mais, que, nestes casos, o que importa aqui é se o acesso pode ou não ser «limitado». Nestes casos, normalmente não o é, pelo que considero que estes espaços sejam efectivamente públicos (mas já veremos algumas limitações).

Ora em todos estes casos, desde que uma crossdresser não esteja a exibir os órgãos genitais, não pode ser acusada de estar a praticar exibicionismo; pelo que não lhe pode ser vedado o direito a vestir-se como muito bem lhe apetecer num espaço público. Isto quer também dizer que temos todo o direito a ir a um hospital público, a uma escola ou universidade pública, à maioria dos museus (excepto os que pertençam a fundações privadas), e a algumas salas de espectáculo (como os cinemas que pertençam à Câmara Municipal, por exemplo), sem que nos possam vedar o acesso.

Tudo o resto são residências particulares; estabelecimentos comerciais; e espaços privados. Aqui a lei protege o direito do proprietário a decidir quem deixa entrar e quem fica de fora. Vamos a um exemplo extremo para mostrar a diferença. Ninguém é «obrigado» a abrir a porta de casa a quem quer que lhe apareça (nem mesmo a polícia, a não ser que traga mandato!). Se, por exemplo, aparecer um indivíduo de etnia africana a querer entrar em nossa casa, não somos acusadas de racismo (um crime punido por lei) por não o deixarmos entrar! As regras de discriminação aplicam-se apenas a espaços públicos, não aos privados; em minha casa, só entra quem eu quero, e esse direito — o direito à privacidade — sobrepõe-se a outros princípios e leis (como, por exemplo, o princípio de não podermos discriminar ninguém).

É por isso, por exemplo, que um escritório de uma empresa pode perfeitamente negar o acesso de um cliente a salas onde estão guardados documentos considerados segredo comercial. Só porque um escritório possa ter «a porta aberta», isso não quer dizer que tenhamos qualquer direito a entrar em todas as áreas desse escritório. O proprietário não só define quem pode entrar, como também a que áreas é que as pessoas podem ter acesso. E este direito sobrepõe-se a quase todos os outros (como contra-exemplos, não se podem cometer crimes no espaço privado, alegando que temos o direito de fazer o que quisermos em nossa casa; logo, não podem ser cometidos homicídios, crimes de pedofilia ou de extorsão etc. ao abrigo do direito de privacidade…).

O inverso obviamente que se aplica. Dentro do espaço privado, não é possível alegar que nos sentimos «incomodados» com as regras do proprietário e tentar assim suprimir-lhe o direito de querer fazer o que quiser com o seu espaço. Claro que isto funciona só dentro de limites. Por exemplo, um dono de escritório pode autorizar que os empregados possam andar nus dentro do mesmo (é assim que é legal, por exemplo, operar uma piscina privada para nudistas). À partida, ninguém que trabalhe nesse escritório pode protestar por se sentir «incomodado» com esta prática (tem a liberdade de se despedir e de ir trabalhar para outro sítio). Mas evidentemente que o dono do escritório não pode cometer o crime de importunação sexual dentro do seu escritório.

Outro exemplo. Imaginemos que uma mulher, fundamentalista muçulmana, vai trabalhar para um escritório onde o patrão deixa que as mulheres andem de biquini no interior. Apesar de se sentir fortemente incomodada com a situação, não pode protestar, nem sequer alegando que a sua religião proibe esse tipo de roupa. Inversamente, o patrão pode até não se limitar a autorizar o uso do biquini, mas obrigar a que o biquini seja a única roupa autorizada para as mulheres nesse escritório. A nossa amiga muçulmana, se se recusar a largar a burqa, pode ser privada do acesso a esse escritório. Se for despedida, pode eventualmente alegar discriminação religiosa (embora tivesse de o provar), mas o mais provável é que apenas se possa tentar queixar de que foi forçada a despedir-se porque a sua religião não lhe permitia usar o único vestuário autorizado pelo patrão, e alegaria que estava a ser discriminada por ser a única mulher no escritório que não podia, por razões religiosas, adoptar o vestuário autorizado. Ora eu penso que este seria um caso muito extremo, e, como tal, incrivelmente difícil de decidir em tribunal. Só mostra como estas coisas não são nada óbvias! Acho, no entanto, que — desde que não existissem quaisquer práticas ilícitas — seria dada razão ao patrão, especialmente se as pessoas, ao serem contratadas, fossem claramente informadas do vestuário obrigatório.

Chegamos justamente ao caso que talvez nos interesse mais, que é o acesso a restaurantes, bares, discotecas, e outros locais de entretenimento público — mas cuja propriedade é privada.

Aqui já existe mais legislação, e vou aproveitar para me citar a mim própria num comentário colocado no Facebook.

Um restaurante não é um local público, mas sim privado de acesso público. Os donos dos estabelecimentos têm todo o direito a restringir o acesso, desde que, ao fazê-lo, não violem nenhuma lei anti-discriminatória (por exemplo, é proibido vedar o acesso a pessoas relativamente à sua idade, cor de pele, religião, ideologia, etc.). Em particular, podem restringir o acesso a quem não estiver disposto a usar vestuário apropriado para o estabelecimento (é isto que permite casinos e restaurantes proibirem que se entre de calção de banho e sandálias, por exemplo; ou as várias instituições religiosas de proibirem as pessoas de se vestirem de certa forma quando frequentam os seus locais de culto, etc.). E o mesmo se aplica, por exemplo, aos autocarros e combóios, que podem impedir o acesso a quem se apresente embriagado, drogado, ou com anomalia psíquica. E, finalmente, é possível limitar o acesso a certos estabelecimentos ou áreas de estabelecimentos (como as casas de banho, duches, etc.) apenas a pessoas de certo género (de acordo com o cadastro legal) sem que isso seja considerado discriminação.

No caso de bares e restaurantes, a lei que regulamenta isto é a Portaria nº 215/2011 de 31 de Maio de 2011, DR 105 – SÉRIE I, Artº 12, Alínea 2:

Pode ser recusado o acesso ou permanência nos estabelecimentos a quem perturbe o seu funcionamento normal, designadamente por se recusar a cumprir as normas de funcionamento impostas por disposições legais ou privativas do estabelecimento, desde que essas restrições sejam devidamente publicitadas.

De notar a importância das normas privadas do estabelecimento terem de ser afixadas em local visível (ver tb. na mesma lei o Artº 14, Alínea 1 b) ), caso contrário, presume-se o livre acesso a qualquer pessoa.

Isto quer dizer que se o estabelecimento em questão não afixar as suas regras de vestuário e conduta apropriados, bem claramente, não pode proibir o acesso ao estabelecimento invocando uma qualquer norma ou regra que seja «desconhecida» do público em geral (neste contexto, desconhecido significa que não foi publicamente afixado de forma visível). Mais ainda, é proibido impedir o acesso através da consulta de uma lista de pessoas que tenham feito distúrbios no passado (ver parecer), o que quer dizer que, se um estabelecimento não proibir explicitamente o crossdressing, e uma crossdresser criar distúrbios, não lhe pode ser vedada o acesso da próxima vez que for lá. Os bares e restaurantes estão proibidos de discriminarem pessoas só porque pensam que elas possam vir causar distúrbios!

Ou seja, em princípio, nenhum estabelecimento público ou privado pode impedir o acesso a pessoas vestidas de forma oposta ao seu género cadastrado em registo, desde que não afixem indicações em contrário, claramente visíveis. À excepção de alguns restaurantes, casinos, e locais de culto, nunca vi tais normas de vestuário afixadas em lugar nenhum. O que quer dizer que em princípio não podem impedir ninguém de lá ir apenas baseado na roupa que vestem.

Isto é importante porque, por omissão, aplicam-se as normas de conduta habituais para o espaço em si. Ou seja: desde que não haja nudez ou exibição dos genitais, o acesso tem de ser autorizado nestes espaços. Se o dono do estabelecimento se se «esquecer» de afixar de forma bem visível que não quer crossdressers no seu espaço, não pode depois impedir de as deixar entrar. Mesmo que alguém se queixe à gerência, afirmando-se «sentir-se incomodado» com as crossdressers da mesa do lado, o gerente não pode fazer nada (pode, educadamente, sugerir uma outra mesa… mas do ponto de vista legal, não tem o direito de as convidar a sair). A única situação em que pode pedir que saiam do estabelecimento, claro está, é no caso de ocorrem distúrbios provocados pelas crossdressers.

Mas, regra geral, e a título de resumo, isto significa que a lei protege o direito a qualquer pessoa de ir a um bar e restaurante, vestido como quiser, desde que não exista exibicionismo, e desde que o estabelecimento não imponha normas, regras, condutas, ou vestiário apropriado — o que o que acontece na esmagadora maioria dos estabelecimentos, em que não há nenhuma regra afixada. E se as regras não estão claramente afixadas à entrada do estabelecimento, do ponto de vista legal, não existem.

A fina linha divisória entre exibicionismo e liberdade de expressão

Estritamente falando, as leis de qualquer país são sempre ambíguas, pois esta é a natureza da linguagem humana; não fosse assim, e não seriam precisos juristas e juízes para interpretar a lei, de forma a saber como a aplicar.

Assim, há crime de importunação sexual se efectivamente forem exibidos os genitais a terceiros, contra a vontade destes. Mas entendem também os juristas uma alternativa, igualmente passível de constituir crime de importunação sexual: quando, por exemplo, através de gestos e toques no corpo da vítima em zonas de carácter sexual é manifestada a intenção de actos sexuais com esta, ou que pelo menos exista forte receio de que esses actos sexuais possam seguir-se ao acto de exibicionismo.

Constitui jurisprudência neste caso o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, publicado in www.dasi.pt/itrp.nsf. de 06/05/2009, no processo n° 598/06.JAPRT.P1:

Para que se preencha o tipo criminal do art. 170° do Código Penal é necessário que o acto exibicionista represente para a pessoa perante a qual é executado o perigo de que se lhe siga a prática de um acto sexual que ofenda a sua liberdade de autodeterminação sexual.

Este é o entendimento de juristas como Maria do Carmo Saraiva de Menezes da Silva Dias, Juíza de Direito, Docente do CEJ, que pretendem ver a despenalização dos actos exibicionistas. Ou seja, no entender destes juristas, o acto exibicionista é uma espécie de «acto preparatório» para um acto que vai violar a liberdade de autodeterminação sexual.

Nesta linha de pensamento, por exemplo, vestir meramente roupa provocante e ter uma conversa de conotação sexual não poderia ser considerado um «acto exibicionista» se for óbvio que não existe qualquer intenção de provocar um acto sexual contra a vontade de terceiros. Pelo contrário, se o uso de vestuário, gestos, palavras, com conteúdo provocatório (em termos sexuais) apenas tiver a intenção de aliciar terceiros, de sua livre vontade, em praticarem actos sexuais com o agente provocador, então não existe aqui qualquer problema, nem qualquer crime. Mesmo que possam ocorrer actos sexuais, desde que estes ocorram de livre vontade de ambas as partes, a «provocação» não é crime! E, finalmente, se terceiros se «sentirem chocados» com esta forma de exibicionismo (mais uma vez, desde que não sejam exibidos genitais), não poderiam invocar qualquer violação ao código penal, já que em Portugal foram abolidas as Leis de Moral e Bons Costumes. O «sentir-se chocado», neste contexto, não seria causa suficiente para invocar o artº 170.

Nem todos os juristas, no entanto, concordam com esta interpretação. Alegam, pelo contrário, que já existe legislação relativa aos «actos preparatórios», e que estes são julgados de acordo com estas (e não de acordo com uma interpretação do artº 170). Por exemplo, no caso de uma violação, se, por hipótese, um homem força uma mulher a entrar num quarto, tranca a porta, atira a mulher para a cama, e se começa a despir — mesmo que, na realidade, não o chegue a fazer — e esta consegue escapar, pode acusar o homem de «tentativa de violação». O facto de não ter ocorrido nada, nem sequer a exibição de genitais, não é relevante. Do ponto de vista da vítima, há mais que fortes suspeitas da intenção de praticar o acto contra a vontade da vítima. Mesmo que o acusado depois se venha a desculpar em tribunal a dizer que era uma brincadeira, e que até tenha provas de que nem sequer exibiu os genitais e não tinha qualquer intenção de o fazer (por exemplo, se houvessem testemunhas do acto que confirmassem isso), pode não ser suficiente para o absolver do crime — pois envolveu-se em «actos preparatórios» para uma violação, e a vítima não tinha qualquer forma de saber se era uma brincadeira ou não. Provavelmente tal caso seria julgado acusando-o de crime de violação, baseando-se no facto dos «actos preparatórios» para o crime serem, por si só, também um crime.

Nesta interpretação não faz qualquer sentido considerar que o artº 170 tem meramente a ver com «actos preparatórios», mas, pelo contrário, que o entendimento do legislador era o de introduzir uma tipologia de crimes diferentes (do da violação e do da violação da autodeterminação sexual, por exemplo).

O Acórdão da Relação do Porto de 9 de Março de 2011, processo n.° 329/09.2PBVRL.P1, em contraste com a primeira posição, determina pois algo de bem diferente:

[…] desde a Reforma de 1995 que passou a entender-se que acto exibicionista seria toda a actuação com significado ou conotação sexual realizada diante da vítima.

Houve, porém, quem acrescentasse a necessidade desse acto só se poder qualificar como exibicionista se suscitasse fundado receio da prática subsequente de um acto sexual com a vítima.

Afigura-se-nos porém que a exigência desse fundado receio da prática subsequente de um acto sexual com a vítima não tem assento na descrição do tipo objectivo do crime do art. 170.° e é manifestamente desadequado para a tutela do bem jurídico aqui em causa, por quatro ordens de razão.

A primeira é porque o acto exibicionista de cariz sexual é, só por si, um acto de manifestação de sexualidade, que pode ou não ser consentido pela pessoa que o presencia.

No primeiro caso é penalmente atípico, mas no segundo já não o é, na medida em que existe a imposição da observação de um acto, o de exibir-se, a outro que não o deseja presenciar, colidindo, por isso, com a liberdade sexual da pessoa visada.

A segunda é porque o consenso nos actos sexuais e a escolha do parceiro sexual, é uma das facetas mais importantes da liberdade sexual e sabido que o relacionamento sexual tem diversas facetas, mas para as quais, em regra, se procura a intimidade e um inultrapassável envolvimento, incluindo a sua visualização, de corpos consentidos e nunca impostos.

A terceira é que quando ocorre um puro acto exibicionista de cariz sexual não se segue, em regra, qualquer outro acto sexual adicional com a própria vítima, pelo que aquela exigência acrescentada do perigo de se seguir um acto sexual de relevo ou um acto de cópula ou equiparado, deixaria sem tutela penal a violação do bem jurídico aqui em causa.

Por último, tal posicionamento equipara actos exibicionistas a actos preparatórios [21.° Código Penal] dos demais crimes contra a liberdade de autodeterminação sexual, o que são realidades jurídico-penais distintas.

Nesta conformidade e tomando por base o bem jurídico aqui em causa, consideramos como acto exibicionista toda a acção com significado ou conotação sexual de exposição dos órgãos genitais que é imposta a outrem, por ser contra a sua vontade […]

Ou seja, segundo esta outra leitura do mesmo artigo 170, este está a descrever um crime diferente. Não é apenas um «acto preparatório». Em vez disso, a exibição dos orgãos genitais imposta a terceiros, contra a sua vontade, independentemente da intenção subsequente, é crime por si só. Neste contexto é argumentado que o exibicionista deriva prazer e satisfação apenas pelo acto exibicionista, à custa de uma vítima, sem que precise de ter intenção de «ir mais longe», ou seja, de perpetuar qualquer acto sexual de facto.

Temos, pois, aqui dois casos de interpretações opostas. No primeiro caso, não é preciso haver exibição dos órgãos genitais, mas pode bastar o toque ou a estimulação visual com o objectivo de levar a vítima a entender que há desejo de relações sexuais; o que conta é se depois houve acto sexual ou não. No segundo caso, não há qualquer necessidade de haver um acto sexual, ou a intenção de cometer um acto sexual com a vítima, o crime é pela exposição dos genitais a alguém que não tenha intenção de os ver.

Qual das interpretações prevalece? Isto, evidentemente, não tem uma resposta única — depende, essencialmente, do juíz, e da jurisprudência que resolver consultar.

Há no entanto mais uma agravante. A maior parte da jurisprudência recente incide essencialmente nas questões envolvendo menores. Aqui a lei é muito mais protectora, porque se considera que os menores de 14 anos não só não têm ainda a capacidade de fazerem juízos correctos sobre o que se está a passar, como as experiências são, em geral, traumatizantes. Por outras palavras: um adulto, sabendo que as pessoas não podem mostrar os seus genitais em público, poderá evitar alguém que sugira fazer isso, ou denunciá-lo imediatamente à polícia se insistir. Uma criança pode não ter a capacidade de o fazer, e, em consequência, pode ficar muito traumatizada com a experiência. Assim, a justiça portuguesa é particularmente dura para com casos que envolvam crianças. Por exemplo, alguém que sugira mostrar os genitais publicamente em brincadeira, com uma outra pessoa que esteja disposta a vê-los, se existir uma criança presente que esteja a ver o acto (assumindo que se saiba que a criança está lá), pode ver-se constituído como arguido. Não encontrei nenhum caso concreto para esta situação, pelo que se trata apenas de uma hipótese conjectural, e não factual. Regra geral, no entanto, deve-se seguir sempre pelo princípio de que se tem de ter muito cuidado para que não hajam crianças presentes, pois «quase tudo» que tenha crianças presentes é sempre crime. Mesmo que as crianças presenciem a cena involuntariamente, pode haver complicações em tribunal — terá o arguido de argumentar que desconhecia a presença das crianças, alegando que também é papel dos pais afastá-los de locais onde possam haver actos sexuais entre adultos.

Ora em que medida é que isto afecta as crossdressers? Regra geral, não afecta muito, desde que as crossdressers em questão estejam a ter um comportamento adequado ao género que estão a manifestar (ou seja, se não estiverem publicamente a mostrar as maminhas — mesmo que sejam falsas — à partida não estão a fazer nada de mal).

Talvez exista apenas um pequeno problema nos casos das crossdressers cuja actividade tem um cariz essencialmente potenciador da actividade sexual, e, segundo uma socióloga com quem conversei (cuja tese de doutoramento ainda não foi publicada, pelo que não a posso citar formalmente), cerca de 90% das crossdressers vestem roupa de mulher para potenciarem a sua actividade sexual de alguma forma. Se, em público, ou em estabelecimentos comerciais de acesso público, estiverem a «provocar» a audiência, mesmo que estejam na brincadeira e sem a intenção de cometerem qualquer acto sexual, este acto pode ser considerado exibicionismo por parte de um juíz mais conservador, dependendo em que consiste a «provocação», e também dependendo da linha de interpretação que o juíz irá adoptar quando pronunciar a sentença. Não podemos «confiar» que todos os juízes sejam partidários da despenalização do exibicionismo. E, se também não tivermos dinheiro para contratar um bom advogado, é possível que o nosso advogado nem saiba muito bem argumentar este caso — pois trata-se dum tipo de processo bastante raro no nosso país: quase todos os casos envolvem normalmente exibicionismo perante menores (nos acórdãos todos que li, não encontrei um único caso que tenha ido a tribunal de exibicionismo entre adultos — mas também admito que não tenha lido todos), e é sobre estes que se tem feito jurisprudência.

Por isso mais vale prevenir do que remediar: quando estivermos em público, é melhor contermos o nosso exibicionismo, por mais que nos apeteça fazê-lo, e por mais que achemos que temos liberdade de expressão — e por mais que ocultemos os nossos genitais!

Fraude sexual

Nas minhas leituras da legislação portuguesa, encontrei um caso de um crime raríssimo — tão raro que o último parece ter sido julgado em 1961! Trata-se da fraude sexual: é o caso em que uma pessoa se faça passar por outra com o objectivo de ter relações sexuais. Os casos típicos, que remontam ao Código Penal de 1886 (!!!), eram de homens que se faziam passar pelos legítimos maridos para terem relações sexuais com as respectivas mulheres, aproveitando-se do facto da casa estar às escuras — ou seja, uma forma sofisticada de adultério. Mas nos tempos modernos, este crime aplica-se a quem, por exemplo, tenha semelhanças com uma figura pública, e se aproveite desse facto para obter relações sexuais. De notar que isto é diferente do caso em que alguém mente dizendo que é milionário, que é jogador de futebol ou cantor famoso, etc., com o objectivo de «engatar» um parceiro sexual — isso é outro tipo de crime de burla. A fraude sexual tem a ver com o fazer-se passar por outra pessoa, não com as qualidades que dizemos ter.

Isto já se aplica ao caso das crossdressers. Se não formos legalmente mulheres, mas «engatarmos» potenciais parceiros sexuais dizendo que na verdade somos mulheres — e realmente parecemos sê-lo — mas no momento do acto sexual a pessoa em questão se sentir defraudada, então acabámos de cometer o crime de fraude sexual. É evidente que isto não se aplica a uma transexual após transição — pois legalmente é mulher (independentemente da genitália que tiver!) — mesmo que a outra parte se considere «defraudada» por alguma razão. As coisas são bem mais complicadas para crossdressers e transexuais no início da transição, pois se dermos a entender que somos legalmente mulheres para obtermos um@ parceir@, podemos ser legitimamente acusadas pelo crime de fraude sexual!

Por ser um crime, isto significa que há que ter particular atenção ao contexto. Por exemplo, se um grupo de amigas crossdressers abordarem um indivíduo na rua, designando uma delas e dizendo que é realmente uma mulher, convencendo assim esse indivíduo a ter actos sexuais — e este verificar que, na realidade, não era uma mulher do ponto de vista legal — então as amigas foram cúmplices no crime!

O mesmo, evidentemente, se passa com anúncios colocados na Internet; se uma crossdresser afirmar ser mulher com o objectivo de ter relações com parceiros, e efectivamente cometer actos sexuais, e o parceiro se queixar, pode acusá-la de crime de fraude sexual. É importante, pois, saber «até onde devemos ir» para evitar esta situação.

Na prática, a probabilidade de alguém ser acusado em Portugal de fraude sexual é muito baixa. Não nos devemos esquecer de que o acusador, ou vítima do crime, terá de se expôr publicamente a um julgamento em tribunal em que vai ter de explicar porque é que «confundiu» uma crossdresser com uma mulher, e o julgamento vai ser público. Embora a situação seja embaraçante para a crossdresser, sê-lo-á muito mais para a vítima! Imaginem justamente uma sala de audiências em que o arguido se apresenta de barba e num impecável fato com gravata, e a vítima vai ter de explicar, de forma convincente para o juíz, de que a confundiu com uma mulher. Vai ter igualmente de apresentar testemunhas que confirmem que o arguido declarou ser uma mulher para ter relações com a vítima. Caso contrário, bastará ao arguido afirmar que nunca disse que era uma mulher, mas meramente crossdresser, o que significará que haverá a palavra de um contra o outro, e, nestes casos, o tribunal tenderá a absolver o arguido (é suposto este ser inocente até se provar de forma indiscutível a sua culpa; se houver dúvidas, é absolvido).

De notar que neste caso concreto as informações colocadas pela crossdresser na Internet podem ser aceites por um juíz como sendo prova. Em Portugal prevalece o princípio da livre apreciação da prova, ou seja, normalmente é o juíz que decide quais são provas são relevantes ao processo.

A Internet

O problema principal do papel das comunicações electrónicas em termos jurídicos é, a meu ver, o seu carácter efémero e de fácil adulteração. Por outras palavras: uma página na Internet que seja usada como prova pode de nada servir — na altura que for exibida como prova em tribunal, a página pode já não existir. Se alguém apresentar um snapshot da página tal como ela era, e submeter o snapshot como prova, o Tribunal terá de ter a certeza que esse snapshot não foi adulterado. Afinal de contas, nada mais fácil do que falsificar este tipo de provas: imaginem, no caso anterior, que alguém procura provar o crime de fraude sexual, e apresenta como prova um snapshot de uma página Facebook alegadamente actualizada pelo arguido em que afirma «ser uma verdadeira mulher». Ora qualquer pessoa com um mínimo de capacidades técnicas consegue facilmente reproduzir o HTML do Facebook e falsificar uma página. Ou se tiver conhecimentos de Photoshop, é também possível falsificar o snapshot. Nestas circunstâncias, em Portugal, a maioria dos juízes nunca aceitará isso como prova — a não ser que existam, por exemplo, várias testemunhas independentes que confirmem que realmente essa era a página original. O mesmo se passa com os emails, embora, regra geral, sejam aceites como prova, especialmente se forem assinados digitalmente.

O princípio que prevalece em Portugal é que as provas sejam relevantes para o processo e que sejam difíceis de adulterar. Ora na esmagadora maioria dos documentos digitais, estes são muito fáceis de alterar ou falsificar. É preciso, pois, ter «algo mais» que comprove que esses documentos digitais não foram falsificados. Por exemplo, num caso de um email (que não seja assinado digitalmente), tanto o remetente como o destinatário têm de concordar que o email de facto não foi modificado. Se qualquer um deles levantar a suspeita de que não tenha sido exactamente essa a mensagem transmitida, o juíz pode considerar que a prova não seja admissível em tribunal.

Não consegui encontrar muita informação na Internet sobre este assunto. O melhor que consegui foi um trabalho feito por estudantes de direito em 2010/11, que ilustra estas dificuldades da obtenção de provas digitais.

Isto significa que existe uma certa liberdade adicional para quem comunica através da Internet — é muito difícil que essas comunicações sejam admitidas como prova! Talvez por isso seja tão frequente o «abuso» da Internet para fins semi-legais. Por exemplo, se alguém exibir os seus genitais em público, é acusado do crime de importunação sexual (agravado se o fizer perante menores). Mas se o fizer na Internet, não lhe acontece nada (e por isso é que tantos perfis exibem pénis), pois é muito difícil de provar que se trate, efectivamente, dessa pessoa, a cometer um delito a tal hora em tal sítio — poder-se-á sempre alegar que a imagem foi falsificada ou adulterada. Só se alguém fosse suficientemente parvo para mandar um mail com fotografias do seu pénis, claramente identificadas como sendo suas, para uma dezena de pessoas que não as queriam receber, e todas estas fossem testemunhar em tribunal, concordando entre si que realmente receberam precisamente essas imagens. O mesmo relativamente à colocação de uma fotografia de um pénis numa rede social qualquer — teria de ser facilmente identificada a pessoa em questão, e teriam de haver dezenas de testemunhas independentes a concordar que tinham visto precisamente a mesma imagem. A probabilidade de isto acontecer é baixa, e os tribunais sabem isso, pelo que dificilmente aceitariam a prova.

Mas há, obviamente, pessoas que são condenadas pelo que fazem na Internet, mesmo em Portugal. Nesse caso, tem de haver uma queixa ou denúncia prévia, e que o Ministério Público encarregue a polícia de encontrar provas. Isto significa que podem haver uns agentes da Polícia Judiciária, na presença de testemunhas, e provavelmente a fazer um vídeo sobre a sua actividade, que se liguem ao Facebook e que vejam fotografias de pénis no perfil de certos utilizadores sob suspeita, e que falem com estes em chat, assegurando que realmente essa é uma fotografia deles, e que têm a intenção de «chocar» terceiros. Isto seria facilmente aceite como prova em tribunal e muito dificilmente seria refutada, especialmente se os agentes da PJ fizerem várias sessões, com pessoas diferentes, a horas diferentes, etc. e obtiverem sempre o mesmo tipo de respostas.

Isto seria assim num mundo ideal; na realidade, a Polícia Judiciária tem (infelizmente) coisas bem mais importantes para fazer e casos muito mais graves para investigar do que a andar a ver quem coloca pénis nos seus perfis nas redes sociais! Dadas as dezenas, senão mesmo centenas de milhares de pessoas que fazem isso em Portugal, a PJ não teria tempo para fazer mais nada…

E mesmo nestes casos ter-se-ia de fazer uma distinção entre o tipo de rede social. Por exemplo, se o site em questão for essencialmente um site de engates, destinado apenas a adultos, e essa informação estiver bem claramente afixada no mesmo, não há problema nenhum em andar a mostrar os órgãos genitais, pois a pornografia não é proibida em Portugal. O problema está em fazê-lo no Facebook (rede social de engate de excelência), não apenas porque vai contra as regras do próprio Facebook, mas porque a audiência pode não só incluir menores, como pessoas que podem não estar a querer ver pénis (não podemos impôr pornografia a terceiros que não a queiram ver, pelo princípio de que as pessoas não podem ser incomodadas).

O mesmo raciocínio se aplica evidentemente ao crossdressing (ou, na realidade, a qualquer forma de vestuário…). Se este for apresentado em espaços claramente reservados a adultos, em que haja indicação bem explícita de que se tratam de crossdressers, não há problema algum em manter fotografias (mesmo que sejam «indiscretas», eróticas, ou mesmo pornográficas), pois tal coisa não é proibida em Portugal. Mesmo que alguém alegue que «não sabia o que quer dizer crossdressing», esse argumento não é válido — neste país, presume-se que os adultos saibam o que estão a fazer, e que são responsáveis pela sua educação e acesso à informação. Se não sabem o que quer dizer alguma coisa num aviso, entram à mesma, e depois ficam chocados com o que viram, isso é problema deles, mas não podem depois protestar ou reclamar. Não nos cabe a nós, crossdressers, estar a explicar o que é o crossdressing, mas sim basta-nos avisar que somos crossdressers, e mais nada — tudo o resto depois não é problema nosso. Excepto quando se trata de menores. Mas não esquecer também que os pais são responsáveis ao que os menores estão expostos!

Conclusões

Quando vou a um estabelecimento comercial de acesso público, que normalmente se destina a mulheres, habitualmente pergunto se o posso frequentar. De notar que raramente esse estabelecimento terá afixado em algum lugar que «se destina a mulheres»; a maioria dos estabelecimentos assume que só mulheres os queiram frequentar. Mas a lei não funciona assim: se não estiver nada explicitamente afixado indicando o contrário, não pode haver «discriminação a posteriori» dizendo «ah, desculpe, mas não pode entrar aqui!». Se não houver nenhuma indicação, claramente afixada, ninguém nos tem o direito a negar o acesso a um estabelecimento privado cujo acesso seja público. E isto quer estejamos vestidas de mulher ou não.

Em locais públicos, como as vias públicas, parques, jardins, praias, mas também hospitais, escolas, universidades, salas culturais e museus, desde que sejam propriedade de entidades públicas (Estado, ministérios, câmaras municipais, juntas de freguesia), a questão não se coloca. Todos estes espaços são de livre acesso a toda a população, independentemente da forma como se vestem. A única restrição que existe globalmente é relativamente à exibição de genitais. Essa é proibida por omissão — é preciso que um estabelecimento afixe à porta que autoriza a exibição de genitais para que o possamos fazer impunemente (ex. salas de espectáculo de sexo ao vivo, bares de swingers, etc.), e estes estabelecimentos, obviamente, não permitem a entrada de menores de idade.

Se vamos estar em espaços habitualmente frequentados por menores, é melhor ter um especial cuidado para que a nossa roupa não seja excessivamente provocadora/erótica. À partida, tal roupa também não é proibida (e certamente não o será em espaços públicos), pois não existe mais a Lei da Moral e dos Bons Costumes. No entanto, um advogado manhoso, combinado com um juíz conservador, poderão eventualmente considerar isto uma forma de exibicionismo (especialmente se envolver menores). Do que pude ler, esta decisão é bastante arbitrária, não está claramente definida na lei, há duas escolas de pensamento em relação ao assunto (uma das quais é pela despenalização do exibicionismo), mas como não podemos ter a certeza de que juíz nos pode vir a calhar em tribunal, mais vale não arriscar. O nosso comportamento em público — excepto em estabelecimentos comerciais que claramente informem da existência de erotismo no interior do mesmo, com a exclusão de acesso a menores — deverá ser moderado, não provocador, e não convidando a qualquer pretensão exibicionista. Essa é a forma mais segura de estar em público e em que não arriscamos absolutamente nada.

Se formos a espaços privados — normalmente estabelecimentos comerciais, como salões de beleza, bares, restaurantes, discotecas, spas, etc. — mais vale perguntar antes do que arrepender-se depois. No meio da conversa e excitação é fácil não repararmos se existe alguma informação relativa à limitação do vestuário à porta do estabelecimento. Mas se esta limitação não estiver claramente afixada, temos todo o direito de lá entrar. Seja como for, é melhor sempre perguntar antes.

Uma coisa é termos um direito universal de entrar em praticamente qualquer lugar vestidas de mulher. A outra coisa é termos o direito de «incomodar» as pessoas. Podemos distinguir dois tipos de «direito». Um é aquele que chamamos direito natural — que se assume que qualquer ser humano tenha, só por ter nascido ser humano. A Declaração Universal de Direitos Humanos é um típico exemplo disto. Só por sermos humanos, por exemplo, temos direito à vida e à felicidade; ninguém nos pode arbitrariamente privar da nossa vida, e nenhum Estado (que assuma a DUDH na sua constituição) pode legislar no sentido de permitir subtrair-nos esse direito.

A outra coisa é o direito positivo. Este está associado a um conjunto de legislação que pretende impôr normas a uma sociedade para que esta seja mais justa, conferindo direitos adicionais às pessoas, para além dos que já têm naturalmente. Por exemplo, e usando o nosso contexto, todos os seres humanos têm direito (natural) a usar roupa. Também têm direito a manifestarem a sua liberdade de expressão usando a roupa que quiserem. No entanto, não podem incomodar terceiros com essa escolha — porque o princípio de que as pessoas não podem ser incomodadas é igualmente um direito natural. Assim, o legislador terá de estabelecer novos direitos para resolver os conflitos entre os direitos naturais. Um exemplo típico é permitir o topless nas praias para as mulheres, ou mesmo a nudez integral em praias/piscinas/spas de naturistas, mas tal não ser permitido fora dos locais assinalados para o efeito. Da mesma forma, todos temos o direito de assistir a shows/imagens/vídeos pornográficos. Mas como isto pode ferir a sensibilidade de menores (privando-os da sua autodeterminação sexual), o legislador impõe que esse nosso «direito» está restrito a espaços onde não hajam menores, e que o acesso à pornografia esteja claramente identificado, para evitar que aqueles que se sintam incomodados com esta não a possam aceder «por engano».

O direito natural é, à partida, absoluto, e não depende da época, do país, da sociedade, das «modas», etc. Uma pessoa tem sempre direito à vida, independentemente de onde viver. Já o direito positivo depende da sociedade e da época, e por isso vai sendo continuamente adaptado ao longo dos tempos.

Obviamente que há, como sempre, muitas «zonas cinzentas». Por exemplo, é um direito natural duas pessoas se poderem casar e constituir família. Mas é omisso se essas duas pessoas têm ou não de ser de sexos biologicamente opostos. Quando se enumerou esse direito natural assumiu-se que assim era, mas isso não estava implícito no direito natural em si. Assim, é através do direito positivo que se interpreta determinados direitos naturais consoante a época e sociedade, e nem todas as sociedades em todas as épocas chegam à mesma conclusão.

O que está errado é assumir, em primeiro lugar, que os nossos direitos naturais se sobrepõem aos direitos naturais das outras pessoas; e também é errado assumir que os direitos positivos são, em certa medida, tão «naturais» como os restantes.

O caso mais frequente deste tipo de erro é considerar que, porque o direito à liberdade de expressão é um direito natural, este é absoluto — ou seja, pode ser aplicado a qualquer altura e em qualquer situação. Tal não é verdade. Não podemos, por exemplo, usar a nossa liberdade de expressão para insultar terceiros, porque estes têm igualmente outro direito natural, o da defesa da honra e da integridade da sua pessoa, e que está em conflito com a nossa liberdade de expressão. A nossa liberdade de expressão não é «mais importante» que o direito a não ser incomodado. São ambos igualmente importantes. Logo, devemos agir no sentido de fazer valer os nossos direitos sem perturbar os direitos de terceiros.

Outro erro clássico é assumir que, lá porque tenhamos um direito natural, este deve ser promovido e protegido pelo Estado. Um exemplo disto são aqueles que acham que, porque tenham o direito a manifestar a sua opinião em público, o Estado deve proporcionar-lhes um meio para o fazerem. Uma coisa não tem absolutamente nada a ver com a outra. Tenho, de facto, o direito de manifestar a minha opinião em público, das formas que forem legítimas de o fazer, e ninguém me pode «privar» desse direito, mas também não tenho nenhum direito de «exigir» que me forneçam um meio de comunicação social para exprimir a minha liberdade de opinião. Conheço imensa gente que confunde as duas coisas e que diz que em Portugal, como a comunicação social é controlada pelo capital e pelo governo, não há liberdade de expressão. Não é verdade. Qualquer pessoa pode abrir um novo jornal, um novo canal de comunicação social, e ninguém lhe pode impedir que o faça. Claro, isso custa dinheiro. Muito dinheiro mesmo. Por isso a maioria das pessoas nunca o fará. Mas o que interessa é que não nos podem proibir de criar um novo jornal. Isso é o que quer dizer «liberdade de expressão».

Da mesma forma, ninguém nos pode proibir de andar vestidas de mulher na rua, pois isso faz parte da nossa liberdade de expressão e liberdade de nos podermos vestir como quisermos. Também ninguém pode proibir isso. Agora o que não podemos exigir é que tenhamos «mais» direitos que os outros. Se o nosso vestuário incomodar terceiros, o direito a não ser incomodado é igual em poder e força que o nosso direito a vestirmo-nos como quisermos. Logo, podemos vestirmo-nos como quisermos em qualquer lugar que não incomodemos ninguém. Não podemos «exigir» que terceiros sejam incomodados só porque achamos que o nosso direito é mais importante que o direito de terceiros!

Para mim isto é muito fácil de compreender porque sou fumadora. Ainda me recordo bem quando o acto de fumar não incomodava praticamente ninguém. Então podia-se fumar praticamente em todo o lado. Depois passou a incomodar um grande número de pessoas, actualmente a esmagadora maioria considera-se incomodada pelo tabaco. Assim, o direito dessas pessoas todas a não serem incomodadas é mais importante do que o meu direito a fumar. Ninguém me pode proibir de fumar em casa (mais uma vez, desde que não estejam menores presentes), mas também não tenho o direito a «exigir» que possa fumar onde me apetecer. Posso fazê-lo apenas em locais onde não haja ninguém que seja incomodado pelo fumo do tabaco. É por isso que alguns restaurantes, bares, casinos, etc. têm salas para fumadores. São claramente identificadas como tal. Nenhuma pessoa pode entrar nessas áreas e declarar que se se sente incomodada, pois essas áreas identificam claramente que quem se sentir incomodado, não as deverá frequentar. Também ninguém pode proibir um não-fumador de entrar numa área de fumadores. Só que este terá sido avisado que, ao entrar nessa área, abdica do direito de se sentir incomodado (pode manifestar a sua opinião, claro, mas não pode exigir que as pessoas deixem de fumar nessas áreas).

Que significa isto para nós crossdressers?

É importante perceber que, ao contrário do que se passa com o resto da comunidade LGBT, as crossdressers não têm direitos especiais nenhuns. Temos, isso sim, os direitos que qualquer cidadã portuguesa tem — não temos mais, mas também não temos menos. Temos precisamente os mesmos direitos de alguém que queira andar na rua vestido de urso panda, ou que ache piada andar com o uniforme do Super-Homem em público.

O activismo LGBT já tem uma tendência muito grande de defender mal o T — genericamente classificado de «transgénero» mas na realidade só se focando em «transexuais». Sejamos sinceras: @s transexuais necessitam de muito maior protecção e de muitos mais direitos — especialmente porque são ainda mais discriminadas, e porque a população, em geral, é pouco tolerante. Logo, faz sentido que o Estado, por uma questão de justiça social, @s proteja da melhor forma possível, e, no caso português, até temos uma excelente legislação.

O fenómeno crossdresser é muito mais complicado, porque não existe um tipo bem claro e definido de crossdresser, mas sim um vastíssimo espectro de pessoas que praticam alguma forma de crossdressing, com as intenções e os objectivos mais variados. Assim torna-se muito difícil «colocar tudo no mesmo saco». Por exemplo, talvez exista um pequeno grupo de crossdressers que tudo o que querem é o direito de entrar em qualquer estabelecimento, público ou privado, sem serem discriminadas pela roupa que usem. Mas esse direito já nos é concedido, não precisamos de direitos «especiais». Eu gostaria de que me fosse permitido, independentemente da vontade do meu patrão, de ir vestida de mulher para o emprego. Mas o meu direito a vestir-me como quero não se pode sobrepor ao direito do meu patrão em impôr as regras de conduta e de vestuário que quiser no estabelecimento comercial que gere. Repare-se a diferença para o caso transexual: uma transexual MtF é legalmente mulher e tem o direito a vestir-se como tal e de não ser discriminada por causa disso. Logo, não pode ser impedida de usufruir de todos os direitos de ser mulher, e por isso é que a lei a protege (depois, na prática, as coisas não são tão fáceis nem tão cor-de-rosa como a lei o determina…).

Mas as crossdressers não são legalmente mulheres; pelo que não têm qualquer pretexto para reclamarem o «direito» a vestirem-se como mulheres, em locais que não permitam o crossdressing. Penso mesmo (mas não tenho a certeza) que não seria fácil «criar» esse direito. Não estou a ver como é que se poderia criar uma formalidade legal que classificasse oficialmente uma pessoa de «crossdresser» e que lhe concedesse direitos especiais por causa disso. Na verdade, se uma crossdresser quiser sê-lo a tempo inteiro, e quiser ir para o emprego vestida de mulher, tem uma solução muito simples: pedir a transição. Em Portugal, felizmente, a transição não implica que se tenha de fazer qualquer cirurgia e/ou tratamento hormonal; estes são opcionais. Mas implica, isso sim, o acompanhamento médico e uma série de relatórios independentes para conferirem esse «estatuto» especial.

Não me parece, pois, que faça sequer sentido, do ponto de vista do enquadramento legal, estar a criar esse tipo de estatuto para as crossdressers. E isso quer dizer que, na prática, nos devemos seguir pelas leis gerais, que protegem o nosso direito à liberdade de expressão, manifestada na roupa que vestimos e no comportamento que adoptamos, desde que, claro está, tenhamos o cuidado e atenção de não incomodar ninguém com o nosso vestuário e comportamento, quando estivermos em espaços que não sejam públicos.

Nota final: Não sou jurista, nem advogada, nem perita de qualquer espécie. Nem sequer percebo nada de leis. Este artigo não deve ser considerado um conselho formal, e muito menos legal. No entanto, posso exercer a minha liberdade de expressão em manifestar uma opinião. Também sei ler, e sei procurar informação na Internet, e sei somar dois mais dois. Tentei deixar referências para a sustentação das minhas hipóteses; sugiro que leiam os artigos que referi e que tirem as vossas próprias conclusões. E, em caso de dúvida, o melhor mesmo é consultar um especialista. Em caso algum me devem citar, porque a minha opinião não é válida como fonte para citação. Em compensação, podem, e devem, citar os Acórdãos que referi e que explicam como se aplicam algumas das leis do nosso país.
Atenção que a legislação noutros países de expressão portuguesa é completamente diferente da legislação portuguesa! O Brasil, em particular, aprovou em 2009 legislação nova para regular o atentado ao pudor, que tem dado muito que falar, e que apresenta uma realidade muito distinta da portuguesa.