Estão de parabéns todos os activistas LGBTQI, em especial a API (Ação Pela Identidade) que ajudou a redigir a proposta de lei que estabelece o novo regime da identidade de género, aprovado em Conselho de Ministros de 6 de Abril de 2017. Mais uma vez, Portugal volta a estar no escalão da frente dos países que mais liberdades e garantias concedem aos seus cidadãos transgénero e transexuais!
A notícia, ironicamente, não a soube pelos canais habituais de informação da comunidade LGBTI (só a Eduarda Santos é que fez um share do post do grupo Transexual Portugal), mas sim pela TSF, que entrevistou a a secretária de Estado da Cidadania e da Igualdade de Género, Catarina Marcelino. Não consegui ainda obter o texto integral do que foi aprovado em Conselho de Ministros, e presumo que seja, na sua grande parte, o texto que já tinha sido aprovado como projecto de lei na Assembleia da República (como reportei anteriormente); no entanto, sabemos, pelas notícias, que há umas alterações menores: uma delas é que as escolas passam a ser obrigadas a tratar as crianças pelo nome com que estas se identificam (mesmo as menores de 16 anos, às quais a auto-determinação da identidade de género já se aplica, mesmo contra vontade dos pais ou tutores legais) e não pelo nome inscrito na sua documentação legal. Presume-se, pois, que esta medida obrigue também os professores a activamente combaterem a transfobia nas escolas.
De resto, não se sabe mais nada sobre esta aprovação em Conselho de Ministros, excepto que não foi aceite a proposta de aceitar um terceiro género (neutro), provavelmente por questões burocráticas e informáticas (os sistemas não estão preparados para isso e alterá-los deve ser demasiado oneroso, nesta altura em que o Estado está a fazer todos os cortes, possíveis e impossíveis, nas suas despesas).
Também não sei exactamente quando é que esta proposta entra efectivamente em vigor, ou seja, a partir de que data é que qualquer cidadão português ou residente em Portugal se pode dirigir ao balcão da conservatória de registo civil mais próximo e pedir para alterar o nome e género. Sabe-se apenas que este procedimento será totalmente desburocratizado e não requer qualquer relatório médico; na proposta de lei da AR (do Bloco de Esquerda), estava previsto que este procedimento fosse gratuito, mas temos de esperar para ver se foi isto que o Conselho de Ministros aprovou ou não.
As pessoas intersexo, desta vez, não foram esquecidas de todo: passou a ser proibido aos médicos alterarem os genitais das crianças intersexo à nascença (excepto em casos de gravidade clínica extrema, ou seja, se a intervenção for necessária para salvar a vida da criança). Estas cirurgias serão apenas feitas após a criança manifestar a sua identidade de género (o que normalmente acontece por volta dos três anos de idade, mas a lei alegadamente não define o limite, pois evidentemente que cada caso é um caso, e podem haver pessoas intersexo que jamais desejem qualquer intervenção cirúrgica). Acaba-se, pois, com a situação desagradável dos médicos «errarem» na atribuição de género, obrigando a pessoa intersexo, anos mais tarde, a submeter-se a um complexo processo para alteração dos seus genitais, quando tudo isso pode ser simplesmente evitado deixando que a criança primeiro se identifique com um género, e depois, se assim o entender, se submeta aos tratamentos que forem necessários.
Também existiam imensas novas regras para o combate activo contra a transfobia e a discriminação, que temos de ver se foram aprovadas ou não, ou se o Conselho de Ministros apenas quis facilitar o registo e mais nada.
Seja como for, Portugal volta, depois de 2011, a integrar o escalão da frente dos países com maior protecção à população trans! O direito à auto-determinação de género é ainda uma raridade por esses países fora, mesmo entre os mais «liberais». Nalguns países (e Portugal não foi excepção!) havia o receio por parte da população trans que a auto-determinação excluísse a possibilidade de receber o tratamento hormonal e as cirurgias através dos respectivos serviços nacionais de saúde; se essa parte do projecto de lei foi também aprovada no dia 6, então isso continua assegurado em Portugal — mas, nesse caso, serão ainda necessários relatórios médicos.
Conclusão: o que acontece com esta lei é que, quem tome a decisão de transitar, a partir dos 16 anos, pode imediatamente mudar os seus dados (nome e marcador de género). Se não precisar de mais nada (seja porque não deseja as cirurgias e tratamento hormonais, seja porque não precisa delas para afirmar a sua identidade de género, seja porque prefere optar pelo tratamento no sistema privado…), então basta ir à conservatória mais próxima, e mais nada. Se tiver mais de 16 anos nem sequer precisa da autorização dos pais. Se a lei foi aprovada na íntegra, mesmo que seja menor de 16 anos, e os pais não concordarem com a mudança de nome/género, então a criança tem o direito legal de processar os pais, fazendo com que seja o tribunal a aceitar a sua decisão de mudar de nome/género. Isto são alterações verdadeiramente radicais e inovadoras, que nem sei sequer se estão contempladas em legislação alguma do mundo!
Ironicamente, talvez a razão principal para esta mudança não seja apenas uma vaga de liberalismo e de abertura de espírito que tenha subitamente passado pela população portuguesa e pelos seus governantes (embora, como tenho reportado, a verdade é que — à excepção de arranjar um emprego! — a transfobia em zonas como a Grande Lisboa é na verdade muito baixa) — mas sim uma admissão que o sistema actual era demasiado ineficiente, por escassez dramática de recursos humanos no SNS para lidar com as pessoas transgénero e intersexo (e falta de vontade política para aumentar os orçamentos dos hospitais públicos).
Posso dar o meu próprio exemplo, que será idêntico ao de milhares (sim, milhares!) de pessoas trans e intersexo a serem acompanhadas pelo SNS. Ao fim de dois anos com uma depressão e uma crise de identidade de género, ainda não tenho sequer um relatório médico preliminar relativamente à minha situação. Ora o meu caso faz muito provavelmente parte dos 90% de pessoas trans acompanhadas pelo SNS às quais será desaconselhada a transição e propostas alternativas — isto porque tenho sorte de ter um sogro que me paga as consultas de psicologia no sistema privado, onde, ao fim de poucos meses e mais de uma dúzia de sessões, os médicos têm sérias dúvidas de como classificar o meu caso. Isto não anormal em si, nem todos os casos são claros — aliás, penso que a maioria não o seja — e é necessário tempo para os resolver. Ora o problema no SNS é que, dada a escassez de recursos, as consultas são espaçadas de vários meses, e chegar a alguma conclusão é muito difícil nessas circunstâncias. Como para a mudança de nome/género, até agora, bastava um relatório médico, se a pessoa não precisava ou não queria submeter-se a tratamentos e cirurgias, mas pretendia imediatamente começar a sua vida de acordo com o género que se identifica, tinha de esperar vários anos. Ora é isso que esta nova legislação vem agora resolver: todos aqueles casos para os quais a mudança dos documentos é crucial, mas as hormonas e a cirurgia podem esperar, passam a poder imediatamente tratar do assunto, sem precisar sequer de estarem a ser acompanhados pelos médicos (ou inscritos em listas de espera para receberem esse acompanhamento…).
Os médicos, claro, não gostam disto, porque infelizmente há muitos casos mal diagnosticados. Mas isso passa agora a ser encarado de forma diferente: uma coisa é a parte burocrática associada à mudança dos documentos; a outra é a parte dos tratamentos hormonais, cirúrgicos, e outros, que envolve o SNS. Os médicos, claro, continuam a ter uma palavra a dizer neste caso. No entanto, uma vez que a pessoa tenha mudado de nome/género, os médicos já não a podem impedir de o fazer. E, segundo a proposta de lei ainda na AR, assumindo que foi o que foi aprovado, mesmo que a pessoa se «arrependa» da mudança de nome/género, pode reverter a situação de forma fácil e desburocratizada — não há (ou não havia) restrições a estas alterações.
Restam as dúvidas que eu própria tenho vindo a levantar nos últimos anos, nomeadamente como é feita a prevenção da fraude na alteração dos documentos legais. Um activista trans britânico (onde a auto-determinação de género ainda não é aceite, ao contrário do que se passa na vizinha Irlanda) sugeriu que a alteração de nome/género fosse feita sob juramento. Isto é uma formalidade jurídica que faz com que a fraude, se a houver, seja punida com o crime de perjúrio. É uma ideia simples e engenhosa, porque não dificulta o processo (é só uma cruzinha a meter no documento para mudar de nome/género), mas, do ponto de vista legal, passa a ser possível punir as pessoas por fraude, quando, neste momento, e de acordo com o texto a que tive acesso no site da AR, esta possibilidade não existe.
E evidentemente que esta lei foi essencialmente pensada para as pessoas transexuais (e, em segunda linha, algumas intersexo) que se identificam com um género diferente do que lhes foi atribuído à nascença. Não contempla, de todo, as pessoas que não se identificam com nenhum género (que são poucas) nem as que se identificam com mais do que um género, nomeadamente, as pessoas com fluidez de género (sejam estas bi-género, de género oscilante ou flutuante, ou qualquer outra possibilidade) — que na realidade são muitas, a maioria das quais nem sequer sonha alguma vez consultar um médico.
É certo que as pessoas que não se conformem com nenhum dos géneros binários continuam a beneficiar da protecção contra a transfobia que esta lei garante, e isso é um excelente passo! Mas o certo é que a diversidade da comunidade trans também complica o trabalho do legislador. Por exemplo, eu gostaria de ter direito a ter dois conjuntos de documentos, um com o meu nome e género masculino, outro com o meu nome e género feminino, para me poder identificar conforme a forma como me apresento publicamente (dado que os números de cidadão, contribuinte, etc. seriam os mesmos em ambos os conjuntos de documentos, isto não causaria problemas do ponto de vista informático), pelo menos até me decidir se opto por um ou pelo outro género — e mesmo que opte apenas por um, nunca se sabe se não serei «forçada» a usar o outro, pelo menos temporariamente, para ter acesso a um emprego, por exemplo, onde a transfobia é muito mais presente! Ora esse tipo de situações não está contemplada, claro está; mas também não devemos ser demasiado exigentes, pois não existe nenhum país do mundo em que isso seja possível — o melhor que há é justamente a noção de um género neutro ou outro. Mas que não é bem a mesma coisa… o que evidentemente dá panos para mangas para discutir o assunto, embora, infelizmente, não exista nenhum fórum ou associação ou espaço público para este tipo de discussão!
Seja como for, este é mais um importantíssimo passo — apesar dos defeitos e limitações que possa ter! — e que mostra que continuamos não só a acompanhar as tendências e recomendações dos países mais avançados nesta matéria (passámos a ser uma referência; estamos a alinhar pelo melhor e não pela mediania), como também temos uma sociedade que cada vez mais reflecte esta realidade, de uma forma espontânea: ao contrário de países como os Estados Unidos, em que a legislação (ainda antiquada na maior parte dos casos) até pode garantir alguma protecção às pessoas trans, na realidade, estas são vítimas constantes de transfobia no seu dia-a-dia; enquanto que na zona da Grande Lisboa, como disse já várias vezes, no quotidiano das relações interpessoais, essa transfobia não existe abertamente, embora, claro está, exista no espaço de trabalho — estamos a anos-luz de ter um CEO trans, um reitor de universidade trans, ou mesmo um ministro trans (nem sequer temos ainda um único deputado trans!). Mas temos de começar por algum lado!