Não há muito tempo atrás, estava à conversa (online) com uma pessoa transexual que estava em transição, e que se lamentava e queixava da ausência de direitos, da forma como tinha de «agradar» aos médicos para obter as desejadas hormonas (e depois as cirurgias), e como era oprimida, etc… A dada altura só pude acresentar, entre os vários prantos e lamentos, de que não eram só as pessoas transexuais que sofriam com a discriminação e ausência de direitos, as outras pessoas transgénero também. Ao que a pessoa me respondeu: «Tu és crossdresser, que raio de direitos é que precisas?»
Ora eis uma excelente questão! Claro que na altura respondi da melhor forma que pude, mas entretanto passou-se muito tempo, tive mais oportunidades de conhecer pessoalmente diversas pessoas dentro do espectro transgénero, e formaram-se mais umas ideias na minha mente…
Vou usar obviamente uma abordagem muito incompleta (e por isso politicamente incorrecta!) pois este «manifesto» na realidade é mais um ensaio sobre a reinvidicações, com o objectivo de abrir uma discussão, e, para isso, é preciso provocar as pessoas! Nada como ter gente que discorde completamente de nós para nos fazer reflectir melhor sobre determinados assuntos, e por isso é que o espaço de comentários está aberto a todos 🙂
Uma súmula dos direitos reoinvidicados pelas pessoas transexuais
Vamos começar pelo caso que tem — actualmente — mais direitos específicos e explícitos (já veremos porque digo isto desta forma, quando analisarmos um caso que tem direitos implícitos). Deliberadamente usando um generalismo, as pessoas transexuais, em primeiro lugar, desejam alterar legalmente o seu nome e género para aquilo com que se identificam, em vez do que lhes foi atribuído à nascença.
Aqui, o «combate» seguiu várias etapas. Primeiro, o da mera possibilidade, como foi em Portugal até 2011 e ainda é em França e vários outros países do mundo: através de um processo judicial movido contra o Estado em que se vive, procura-se provar em tribunal de que a pessoa em questão vive de acordo com o género com que se identifica, e que deseja que esse género lhe seja legalmente reconhecido, através da alteração da sua documentação. Isto foi a primeira vitória obtida pelos activistas dos direitos das pessoas transexuais, mesmo sabendo que tal processo é moroso, caro, e muito penoso para a pessoa em questão.
A segunda fase foi a de tornar o processo de alteração de nome/género um mero processo administrativo, e não requerer um processo jurídico. Esta é a recomendação actual da União Europeia, e aplica-se à maioria dos seus estados-membros. Em países como os Estados Unidos, o processo ainda é jurídico, mas é tão eficiente e expedito, que se pode considerar como «semelhante» ao processo administrativo propriamente dito. No entanto, há uma diferença do ponto de vista jurídico e de luta pelos direitos humanos. No caso em que é necessário processar um Estado para obter a legalização do nome/género, parte-se do pressuposto que esse Estado, de certa forma, está a violar direitos fundamentais do cidadão (como o seu direito à identidade, por exemplo). No caso meramente administrativo, está-se a reconhecer esses direitos, e a criar um procedimento simples para que se possa gozar ou usufruir desses direitos.
Finalmente, existem os casos mais sofisticados, em que o processo administrativo deixa de estar sujeito a um processo médico, onde a situação da pessoa, quer se use essa palavra formalmente ou não, continua a ser patologizada. Em contraste, países como a Irlanda, Malta, Argentina (e em certa medida a Dinamarca) concedem a todos os cidadãos o direito, ilimitado e indiscriminado, a optarem pelo nome e género com que se identificam — a chamada Lei da Identidade de Género. Dado ser a forma jurídica que mais se enquadra com o espírito dos direitos universais dos seres humanos (justamente o direito da identidade de género, que passa a ser explicitamente considerado, formalmente, como fazendo parte do direito à identidade e à liberdade de expressão).
O segundo ponto já não tem a ver propriamente com a questão administrativo-jurídica, e o reconhecimento maior ou menor de direitos universais, mas sim no processo pelo qual a transição decorre. Por outras palavras, a forma como é feito o acesso aos serviços de saúde e aos seus profissionais especializados para que possam dar apoio à transição, quando esta é desejada pela pessoa em questão.
Nos casos em que é o tribunal que decide quem é que pode alterar o seu nome e género, é frequente que tenha de ser feita «prova» de que a pessoa em questão se submeteu a cirurgias e tratamentos hormonais. Ou seja, para além da prova médica, há uma prova jurídica (que até pode envolver testemunhas comprovando que a pessoa em questão está a viver de acordo com o género com que se identifica e para o qual requer ao tribunal que lhe altere o nome e género). Temos aqui, pois, pelo menos dois obstáculos com que lidar, e duas classes de profissionais com os seus preconceitos próprios: do ponto de vista da classe médica, há uma patologização da disforia de género, que é apresentada ao tribunal como tendo sido «curada» através do ponto de vista da transição; do ponto de vista jurídico, há uma pessoa que deixou de estar conforme — mental, física e socialmente — as normas da sociedade para o nome e o género que mostra na sua identificação, e cabe ao tribunal, pois, corrigir essa situação permitindo a alteração do nome/género.
Contraste-se isto com outros casos de discriminação. Vejamos talvez o mais simples: a cor da pele. Ninguém, nas sociedades ocidentais do século XXI, precisa de um atestado médico para ser considerado «um cidadão de pleno direito» (e, portanto, protegido pelas leis que lhe asseguram igualdade de direitos e oportunidades) só porque tem uma côr da pele que não está conforme os padrões sociais da maioria dos restantes cidadãos. Claro que poderemos pensar que tal caso não faz sentido em 2016 (altura em que escrevo este artigo!) mas a verdade é que em países como nos Estados Unidos as pessoas ainda têm de se auto-classificar de acordo com a etnia a que julgam pertencer. Em países como Portugal, pelo contrário, é mais que óbvio que a «cor da pele» não faz qualquer sentido de ser classificada: os portugueses, regra geral, nem sequer são «brancos» (comparando a média da população portuguesa com a média da população sueca ou norueguesa, por exemplo), mas sim uma diversidade extraordinária de tons, mais ou menos bronzeados conforme a época do ano. Os orientais que habitam em Portugal também são tudo menos «amarelos»; e apesar de ser verdade que possam, por exemplo, ter um formato dos olhos diferente da média dos restantes portugueses (tenham eles o tom de pele que tiverem), vamos discriminar pessoas só porque têm nariz ou lábios ou queixo ou um formato de olhos diferente? Ou pela cor do cabelo? E as pessoas que pintam o cabelo, deverão ser discriminadas de acordo com o tom original do cabelo, ou a cor que têm agora? Como é evidente, qualquer pessoa racional verá — pelo menos nos dias de hoje — quão idiota é este tipo de «discriminação», porque todos nós fazemos parte de um largo espectro de possibilidades (genéticas) que determinam a cor da pele, dos olhos, do cabelo, o formato do rosto, etc., mas não somos «mais» ou «menos» seres humanos por causa disso.
Outro grupo discriminado (historicamente) são as pessoas portadoras de deficiência física e/ou mental. Aqui sabemos que, por exemplo, para efeitos de descontos no IRS, é realmente necessária a intervenção médica para determinar qual o grau de deficiência. Ou seja: não está colocado em causa que a pessoa seja ou não deficiente — e, logo, tem o direito a uma protecção acrescida pelo Estado — mas apenas a qualidade da sua deficiência, que o/a impeça de desempenhar funções sociais (como, por exemplo, trabalhar para ganhar o seu sustento). Esse grau de deficiência não é facilmente diagnosticável por um funcionário administrativo da Autoridade Tributária, porque não têm formação para a identificar; e o próprio deficiente pode também não saber explicar a forma como é afectado. Assim, o papel dos médicos é de estabelecer, mediante uma análise aprofundada de diversas amostras da população com certo tipo de deficiência, um factor qualitativo que seja objectivamente determinado a partir da observação de certos sintomas/propriedades. Trata-se, pois, de uma questão científica, que é colocada ao serviço da sociedade.
Podemos, evidentemente, contestar este tipo de abordagem; no entanto, também devemos pensar que nos estados de direito europeus, que são sociais-democracias, o papel do Estado é distribuir riqueza de forma justa. Assim, não é justo que uma pessoa que tenha um deficiência ligeira, mas que lhe permita executar 90% de todas as tarefas possíveis para o desempenho da sua profissão, que tenha acesso às mesmas vantagens e regalias que uma outra pessoa, que, devido ao seu tipo particular de deficiência, não possa trabalhar de todo e até dependa de terceiros para a sua sobrevivência. Os estados, nestas situações, necessitam de canalizar mais fundos para aqueles que têm maior necessidade do que para os outros cujas necessidades não são tão prementes. O que não quer dizer que haja uma «discriminação» consoante o grau de deficiência, antes pelo contrário; todos têm precisamente o mesmo direito ao acesso aos serviços de saúde, na medida das suas necessidades específicas. Estamos apenas a falar do esforço financeiro feito pelo Estado — e, por consequência, pelos contribuintes — para poder garantir uma vida melhor a determinado cidadão portador de deficiência, idealmente (desde que medicamente possível) garantindo-lhe as mesmas oportunidades que a um cidadão vulgar sem qualquer deficiência.
É certo que a medicina ainda não está assim tão desenvolvida como isso, mas podemos imaginar um futuro muito, muito próximo em que praticamente todas as deficiências físicas possam ser ultrapassadas através de mecanismos biónicos e cibernéticos; nesse caso, por mais caras que essas tecnologias venham a ser, caberá ao Estado fornecê-las gratuitamente às pessoas portadoras de deficiência física, para que possam ter uma vida semelhante (em oportunidades) como os demais cidadãos. Já estamos bastante avançados nesse aspecto em muitos casos, mas claro que não em todos! No entanto, para lá caminhamos…
Quando falamos nos direitos reclamados pela comunidade de pessoais transexuais, então, estamos a reclamar precisamente os mesmos direitos que qualquer cidadão tem quando está impedido, por questões físicas e/ou mentais, de exercer plenamente o seu direito de cidadão (seja trabalhando, seja em qualquer outra situação): concretamente, o direito a pedir que seja o próprio Estado a custear as intervenções médicas necessárias (e/ou desejadas) para que o indivíduo possa livremente desempenhar o seu papel social (neste caso concreto, de acordo com o género com que se identifica). Estas intervenções médicas são há décadas possíveis (embora, claro, tenha havido um desenvolvimento constante das várias técnicas cirúrgicas, assim como da síntese de hormonas com menos efeitos secundários indesejáveis), pelo que nada de mais legítimo estar a pedi-las. Não o fazer seria justamente privar estes cidadãos de gozar a sua cidadania com plena igualdade de oportunidades.
E este é o direito que tem sido garantido em países como Portugal. Mas há mais! No caso das pessoas transexuais, apesar de requererem complexas intervenções cirúrgicas e longos tratamentos hormonais (alguns dos quais para toda a vida), não existe, efectivamente, nenhuma patologia – o que no passado relegou (infelizmente) este tipo de tratamentos para a classificação de «cirurgia estética». Ora hoje em dia, felizmente, já existe um consenso na comunidade médica relativamente ao bem estar mental obtido por alegados «meros procedimentos de cirurgia estética», alguns dos quais têm, pois, os seus encargos correctamente suportados pelo Serviço Nacional de Saúde. A diferença aqui é que não basta a «vontade» do paciente em submeter-se aos procedimentos cirúrgicos; é necessário igualmente um parecer clínico de que a pessoa, sem o tratamento, padecerá de sintomáticas associadas à problemas do foro psiquiátrico e psicológico, tendo consequentemente uma redução notória da sua qualidade de vida.
Parece-me, pois, que se procurou em leis como a portuguesa «adaptar» esta noção também à «disforia de género», que pode ser vista por um médico como uma patologia, uma deficiência (genética? biológica?), ou, para aqueles que são mais politicamente correctos, «uma condição clínica». Nesse caso, os médicos naturalmente vão arrogar-se do direito de «tratarem» a condição clínica, da melhor forma que o souberem. Mas ao encarar a questão desta forma, é evidente que a classe médica não irá colocar nas mãos do «paciente» a capacidade deste de se auto-medicar ou de decidir qual é a «terapia» que é melhor no seu caso. Ou seja: apesar de hoje em dia a maioria da classe médica possa, de facto, aceitar plenamente de que as pessoas transexuais necessitam (e não apenas «desejam») a transição medicamente assistida para que possam melhorar substancialmente a sua qualidade de vida (o que, de um ponto de vista estritamente financeiro, faz todo o sentido, já que significa um investimento inicial por parte do Sistema Nacional de Saúde que depois compensará, a longo prazo, por a pessoa em questão poder ter uma vida normal (pagando os seus impostos!) sem necessitar de terapia constante), por outro lado não podem aceitar que seja o «paciente» a auto-diagnosticar-se e a determinar qual é a terapia que deseja. E, no caso português como no de grande parte dos países, também o legislador (assim como todo o sistema jurídico) considera que é, de facto, a classe médica a que tem a formação adequada — aliás, a única que tem essa formação — para proceder a um diagnóstico e responsabilizarem-se perante o Estado que, via o Serviço Nacional de Saúde, desembolsa o custo dos tratamentos e cirurgias.
Ora aqui reside, pois, a última e final reinvidicação da comunidade transexual — o direito à auto-determinação da identidade de género, que passa essencialmente por despatologizar a «disforia de género» como «requisito» para a transição. Por outras palavras: nos países onde a identidade de género pode ser livremente determinada (do ponto de vista legal, administrativo…) por cada cidadão, não existe qualquer requisito prévio para um cidadão registar o nome e o género com que se identifica, e, ao fazê-lo, se esse registo é diferente do que lhe foi atribuído à nascença, e existir necessidade de adaptação fisiológica do corpo para que mais se aproxime do género com que se identifique, então esse cidadão tem o direito de «exigir» toda e qualquer terapêutica clinicamente assistida ou cirurgia que esteja à sua disposição através do respectivo serviço nacional de saúde. De notar que, em particular, como é abolida a «necessidade» de determinar a «disforia de género» — uma condição do foro psicológico e psiquiátrico — não é necessário, de todo, que a pessoa em questão passe por psicoterapia, ou sequer pelo diagnóstico efectuado por um psicólogo ou psiquiatra. Tudo o que necessitará, numa primeira consulta, é o acesso a especialistas de endocrinologia e de cirurgia de reatribuição de sexo para que lhe sejam feitos os exames adequados ao início dos tratamentos e/ou cirurgias, assim como o devido acompanhamento regular para adaptar as dosagens, etc.
Há alguns problemas com esta abordagem (nomeadamente, saber como evitar potenciais fraudes) mas hoje vou ignorar isso 🙂 e apenas deixar aqui estas indicações…
É certo que depois existe também a exigência de combater a discriminação, a transfobia; de fazer circular mais informação pela população em geral; de educar professores, assistentes sociais, agentes de segurança (pública e privada), serviços médicos, etc. para estarem aptos a lidar com as questões das pessoas transexuais. Neste campo há sempre mais que se pode «reclamar», mais que se pode exigir, mesmo que tenha já sido feito um trabalho razoável até à data — mas que pode ser sempre melhorado.
As pessoas transexuais até são «casos simples»… e que direitos reclamam as outras pessoas transgénero?
Vamos pegar num caso «clássico» de disforia de género: alguém que, desde nascença, sabe que é um homem, apesar de todas as pessoas à sua volta insistirem em tratá-lo como se fosse uma mulher. Finalmente, ao fim de anos de desespero, a pessoa em questão modifica o seu corpo para o sexo masculino — procedendo à terapia hormonal e às devidas cirurgias — e, especialmente tendo em conta as modificações provocadas pela testosterona, e o corte e tipo de roupa usado, vamos assumir que esta pessoa consiga, no dia-a-dia, passar completamente despercebida (ou seja, é tratada, em todas as situações, como um homem). De uma forma perfeitamente clássica, apaixona-se por uma mulher e casa-se com ela (eventualmente tendo filhos com inseminação artificial…). Tem uma vida perfeitamente «normal», neste caso, completamente indistinguível de qualquer pessoa cisgénero heterosexual. E, dado tudo lhe ter corrido bem com a transição, provavelmente a última coisa que quer é chamar a atenção para a sua pessoa: torna-se, pois, «invisível», no sentido em que deixa de ser «vista» como uma «pessoa transexual». É, para todos os efeitos, apenas uma pessoa. Que poderá ter tido alguns defeitos físicos no passado, mas que os corrigiu prontamente, e agora continua a sua vida de forma perfeitamente normal.
Ora este caso «clássico» tem a vantagem, do ponto de vista social, que não «desafia» as normas da sociedade. Não coloca em questão o binarismo de género, nem sequer a sexualidade, ou o modo de vida desejado e pretendido. Este tipo «clássico» quer, pura e simplesmente, que @ deixem em paz e que @ deixem viver a sua vida como «qualquer outra pessoa».
É por isso que, tradicionalmente, os casos das pessoas transexuais são mais fáceis de resolver, do ponto de vista jurídico e clínico, mas também do ponto de vista social: desde que, após os tratamentos e cirurgia, a pessoa em questão «passe» por alguém do género com que se identifica, então não há (socialmente) qualquer problema. Houve, sim, um processo de transição complexo (e caro!), mas, após este, a pessoa em questão encontra-se «adaptada socialmente» ao padrão cisgénero heterosexual — com o qual se identifica (e até defende!).
No fundo, é por isso que se questiona sequer se estas pessoas são ou não transgénero. Para mim essa questão não faz qualquer sentido; no entanto, é legítimo apresentar a argumentação daqueles que defendem que as pessoas transexuais não são (nem nunca foram!) transgénero: é que fundamentalmente não se sentem «homens transexuais» ou «mulheres transexuais» — o que poderia ser uma identidade de género própria! — mas sim verdadeiros «homens» e «mulheres», só que o seu corpo infelizmente não está de acordo com o género com que se identificam… E é importante referir que estes casos de transexuais «clássicos» não querem, de todo, abolir o binarismo de género. Nalguns casos até lhes assusta a ideia, pois poderia eventualmente fazer com que as desejadas cirurgias e tratamentos hormonais lhes fossem negadas — se não houvesse diferenciação entre géneros, afinal de contas, não haveriam pessoas «transexuais» propriamente ditas.
É verdade que uma grande parte das pessoas transexuais têm, de facto, uma narrativa «clássica» deste tipo, e são igualmente os casos de maior sucesso e de maior celeridade no processo de transição — pois tanto os médicos, como os juristas, como até mesmo a sociedade sabem que estas pessoas não estão, de forma alguma, a questionar o binarismo de género na sociedade, nem sequer o papel social atribuído a cada um dos dois géneros. Pelo contrário: percebem perfeitamente — e aceitam profundamente — esses papéis, que desempenham da melhor forma uma vez tendo o seu corpo (e os documentos…) alterado para o género com que se identificam.
Mas há muitas pessoas com disforia de género que não têm esta narrativa clássica. Por exemplo, tal como existe uma percentagem da população que não é estritamente heterosexual (vamos assumir que pelo menos 10% não o sejam), também entre a população transexual existirão pessoas cuja orientação sexual não é a «clássica». Assim, para além das pessoas que são claramente bisexuais, haverão muitas transexuais MtF que são «ginéfilas» (neste caso, atraídas fisicamente por pessoas do género feminino), tal como existirão muitos transexuais FtM que são «andrófilos» (ou seja, atraídos pelo género masculino). Nas estatísticas que temos, esta distribuição não é exactamente 50/50 — existem muito mais MtF ginéfilos que FtM andrófilos, não se sabe porquê — mas o que interessa reter em mente é que estas pessoas têm narrativas diferentes.
Entre os transexuais tardios (aqueles cuja disforia de género só os começa a afectar realmente a uma idade adulta, mais avançada) é frequente que as narrativas se tornem cada vez mais «desviadas» da suposta e alegada «norma». Embora seja também verdade que uma esmagadora maioria de transexuais tardios abandonem a sua família, amigos, e emprego, para começarem uma nova vida com um género diferente do que tiveram até à data, outros (poucos, mas são suficientes para serem uma excepção válida à norma!) mantêm a mesma vida que tinham, só que passam a apresentar-se com um género diferente. Nestas narrativas também é frequente não haver desejo de fazer todas as cirurgias e/ou tratamentos hormonais — existe, pois, muito mais variedade.
Isto, evidentemente, cria um problema na situação em que são os médicos a diagnosticar a disforia de género e a autorizar os tratamentos/cirurgias. Dado que estas pessoas não estão «conforme a norma», a dúvida que se mantém é se faz sequer sentido considerá-las do «outro» género «oposto» — ou se são, pura e simplesmente, transgénero no sentido de não pertencerem nem a um género, nem a outro. Nalguns casos serão uma «mistura». Noutros, existirá mesmo o forte desejo de não «pertencer» a género nenhum.
Também estas pessoas desejam frequentemente passar por tratamentos hormonais e/ou cirurgias para adaptarem o seu corpo à sua identidade de género. O problema aqui passa, pois, pelos preconceitos da classe médica: será legítimo, por exemplo, autorizar cirurgias para quem queira só ter a «parte de cima» semelhante ao de uma mulher, mas que se mantenha casado ou com uma companheira do género feminino? Porquê re-classificar então esta pessoa de «mulher» se continua a desempenhar — pelo menos parcialmente — o papel de género masculino? Este tipo de interrogações é frequente entre a classe médica, que normalmente acaba por não permitir a existência destas situações (apesar de, do ponto de vista estritamente legal, pelo menos em Portugal, a identidade de género nada tem a ver com as cirurgias que se fez — o problema está apenas na cabeça dos médicos, não na legislação, que é mais arrojada e tolerante).
A cirurgia «parcial» ou os tratamentos «parciais» podem ser aplicados nos casos em que a pessoa, do ponto de vista de saúde clínica, não deva fazer o procedimento completo. Por outras palavras: se se tratar de uma pessoa com uma narrativa transexual «clássica», mas que, após análises endocrinológicas e/ou outras, por uma questão de saúde, certas intervenções estejam fortemente desaconselhadas, então os médicos não terão qualquer problema em apresentar as devidas justificações para que a pessoa mude de nome e género. Afinal de contas, é bem claro que desejam continuar a sua vida de acordo com uma narrativa clássica. É apenas por questões de saúde que não podem fazer o mesmo que as pessoas transexuais saudáveis; não devem, pois, ser discriminadas por isso. E a verdade é que em Portugal não o são, de todo — ajudados pela lei que lhes reconhece plenamente o direito a mudar de nome e género sem se submeterem a cirurgias/tratamentos hormonais.
Também tem sido cada vez mais frequente os médicos darem um «empurrãozinho» às pessoas transexuais que entram no chamado Teste de Vida Real. Numa altura em que seja claramente visível que a pessoa em questão vai avançar com a transição completa (ou parcial, se houver razões de saúde que não a permitam); que está mais que dispost@ a fazer o respectivo teste, ou que até já viva de acordo com o género com que escolheu (e sempre dentro do binarismo de género!), então também a classe médica facilita os relatórios que permitem a mudança do nome e género, o que pode ser crucial, por exemplo, para obter trabalho ainda durante o teste de vida real.
Ora o mesmo não se passa, de todo, com aqueles que se afastam da narrativa clássica. Por exemplo, uma pessoa transexual que se apresente com o estado civil de «casado» — e que não tencione, de todo, terminar a relação — terá muito poucas hipóteses de conseguir a desejada transição. Pegando no exemplo de uma pessoa transexual MtF, casad@ com uma mulher cisgénero, e que tem como preferência sexual parceiras do género feminino, após a (eventual) transição, passaria a fazer parte de uma relação lésbica num casamento entre pessoas do mesmo sexo (legal). Embora isto em Portugal actualmente não cause problemas jurídicos, já que o casamento pode ser entre dois adultos de qualquer sexo, do ponto de vista moral causa «incómodo social», pelo menos na mente de muitos clínicos.
Há evidentemente outras razões, claro. Pode-se também dar o caso do cônjuge não estar interessado numa relação lésbica (no caso do marido efectuar a transição), e, nesse caso, o papel dos médicos é de procurar encaminhar a pessoa transexual para outras soluções (nomeadamente o crossdressing).
Finalmente, existem ainda muitos casos cujas narrativas são tudo menos óbvias. Conheço pessoalmente algumas pessoas assim, pelo que não se tratam de situações hipotéticas, mas sim casos reais. Um é simplesmente o desejo de pessoas transgénero MtF se submeterem à hormonização e à cirurgia de aumento dos seios, mesmo que depois não queiram manter um papel de género feminino durante todo o tempo. Não estamos apenas a falar dos casos de rejeição de género, de androginia, de criação de papéis de género novos (misturando ambos os géneros clássicos, ou rejeitando-os). Estamos a falar de pessoas que até podem aceitar o binarismo de género, e que não desejam viver numa sociedade nova que tenha abolido o género; estão satisfeitas em desempenhar o papel de género que lhes foi atribuído à nascença, e fá-lo-ão pelo menos parte do tempo (por exemplo, no trabalho, entre familiares, etc.), mas desejam mesmo assim transformar o seu corpo para que possam, sempre que o queiram, adoptar um papel de género feminino, com modificações corporais que permitam que essa adopção seja mais fácil.
Tais «desejos» são frequentemente incompreensíveis para os médicos, especialmente aqueles que gostam de narrativas muito clássicas: ou a pessoa é crossdresser, ou é transexual (e continua a acreditar no binarismo de género). As situações intermédias não se encontram nem regulamentadas, nem sequer contempladas. São, pois, ignoradas pelos médicos. No entanto, estas pessoas sofrem de disforia de género tal como os casos clássicos.
Outra situação semelhante é tratada de forma diferente no estrangeiro e em Portugal. Nos casos de pessoas que apresentam outras patologias para além da disforia de género — ansiedade, comportamento obsessivo-compulsivo, depressão, trauma, etc. — existe, regra geral, um procedimento (um protocolo) para que estas patologias sejam todas tratadas em primeiro lugar, e só depois seja contemplada uma solução para a disforia de género. Ora isto não quer dizer que a disforia de género deva ser «ignorada», mas apenas que há uma questão de prioridades: uma pessoa ansiosa, por exemplo, terá muito maior dificuldade de passar pelo Teste da Vida Real do que uma pessoa que não sofra de ansiedade; ora a ansiedade é facilmente medicável, pelo que faz todo o sentido tratá-la primeiro, permitindo assim que a transição decorra com facilidade.
No entanto, certas situações podem ter acompanhado a pessoa transgénero ao longo de uma grande parte da sua vida, e, como consequência, são muito difíceis de erradicar, o que obriga a pessoa em questão a aguardar muitos anos até estar curada dessas patologias para depois, finalmente, começar o processo de transição. Entretanto, têm de colocar a sua vida em stand-by. Ora, isto para casos de ansiedade e depressão (só para mencionar dois), só vai piorar a situação. Uma pessoa ansiosa é tudo menos paciente. Uma pessoa que já está deprimida devido à sua disforia de género não irá melhorar se lhe for dito que tem de aguardar até que a depressão desapareça; pelo contrário, o mais provável é que tenha recaídas…
Em muitos estudos feitos nestes casos, tem sido interessante verificar que a entrada no processo de transição através da tomada de hormonas tem um efeito positivo também na saúde mental — em especial nos casos ansiosos e depressivos. Embora originalmente se acreditasse que se tratava de mero efeito placebo (que não deve ser menosprezado, se de facto ajudar…), hoje em dia os cientistas desta área não são tão assertivos nas suas «certezas». Uma teoria promissora era de que, no caso dos transexuais MtF, a diminuição da testosterona pela via do tratamento hormonal serviria para «acalmar» a pessoa em questão, e, em consequência, baixar-lhe os níveis de ansiedade. Mas esta teoria foi contestada quando se notou que, no caso dos transexuais FtM, em que a administração de testosterona deveria provocar maior agressividade e irritação, isso não acontecia. Ou seja: embora quase todas as pessoas em transição registem mudanças de humor, o certo é que, independentemente das hormonas administradas, as pessoas tornavam-se sempre mais calmas, menos ansiosas, menos depressivas. E esta alteração de humor estava indiscutivelmente relacionada com a terapia hormonal, pois os mesmos exemplos foram testados em casos de pessoas transexuais MtF que não se submeteram a um processo de transição através do Teste da Vida Real, mas que se mantiveram no seu papel de género, submetendo apenas o seu corpo a uma feminização. Os sintomas de disforia de género desapareciam por completo nesses casos estudados.
Como este tipo de resultados vai contra os modelos clínicos da compreensão do género, são geralmente vistos como «excepções à regra». Não há nenhuma razão médica que possa explicar porque é que uma feminização/masculinização do corpo, através de terapia hormonal e/ou cirurgias, possa ter um efeito imediato não só nas patologias acessórias (depressão, ansiedade, etc.), como até na própria disforia de género, mesmo que as pessoas não transitem legalmente de género. É aparentemente o próprio acto de «entrar em transição» (mesmo que seja uma transição oculta, no sentido em que a pessoa em questão não se tenciona «revelar» a ninguém como membro do género com que se identifica) que tem efeitos notoriamente benéficos sobre todas as perturbações.
Não havendo uma explicação científica para o facto, em países como Portugal esta via de «tratamento» não é possível. Noutros países, pelo contrário, por vezes recorre-se à terapia hormonal em complemento à medicação para a ansiedade/depressão e à psicoterapia, pois claramente parece dar resultados bem melhores. Mesmo a explicação do «senso comum» não é (por ironia!) comummente aceite: se uma pessoa decide tratar-se da sua disforia de género, e a única «cura» é a transição, então não será lógico que, ao começar a transição, passe a sofrer menos da disforia de género?
Lógico, é, mas para a ciência é preciso também determinar o mecanismo que leva a que isso aconteça de facto, e o certo é que este mecanismo ainda não é conhecido.
Da minha experiência, pois, o que acontece em Portugal é mais ou menos o seguinte: nos casos de narrativas «clássicas», em que existe, por exemplo, ansiedade (facilmente medicável) associada à disforia de género, e em que a pessoa em questão não tem nenhum obstáculo à transição (seja este financeiro, social, de origem familiar, etc.), então a transição é iniciada em simultâneo com o tratamento da ansiedade. Também conheço pelo menos dois casos em que co-existia depressão com a ansiedade, e, dadas as circunstâncias pessoais e familiares dessas pessoas, estas também não tiveram problema em iniciar o seu percurso.
Nos casos das narrativas não clássicas e/ou casos em que a situação familiar/laboral/social não está resolvida, então os médicos não fazem «experiências». Rejeitam o desejo de transição e, como disse, procuram alternativas.
Existe então uma discriminação de todos aqueles que não se encaixam nas narrativas clássicas?
A palavra «discriminação» é aqui um pouco forte demais; talvez seja melhor falar de enquadramento clínico. Ou seja: quando o que está em questão é saber o que é que os contribuintes vão pagar para que uma pessoa se sinta melhor com ela própria (e idealmente volte a ser um membro produtivo da sociedade), então o que existem é casos-tipo, com uma série de características, para os quais a via da transição assistida hormonal e cirurgicamente está aberta. É possível que estes casos-tipo aumentem de número ao longo do tempo. Mas também existem casos-tipo em que essa via se encontra claramente negada, e para os quais, pelo menos do ponto de vista técnico, a medicina em Portugal rejeita o «tratamento» da disforia de género.
Temos, pois, um problema complicado do ponto de vista ético e moral, que é a questão de serem os médicos a decidir, de entre os casos de disforia de género, quais é que vão tratar, e quais não vão. De notar que não estamos a falar de «falsos diagnósticos», ou ausência de diagnóstico: o diagnóstico pode ser bem claro (e até confirmado por equipas clínicas diferentes), mas considera-se que nuns casos-tipo a transição é desejável e portanto encorajada e apoiada, enquanto que noutros, apesar das pessoas claramente sofrerem de disforia de género, a terapia e a cirurgia são negadas.
Portanto, voltando ao ponto em questão, para além dos transexuais com uma narrativa clássica, temos também um grande grupo de pessoas transgénero, que sofrem de disforia de género, e para as quais deve ser reclamado o direito a poderem também ser «tratadas» — com o tratamento que seja adequado à sua situação — independentemente de configurarem um caso «clássico» ou não.
Mas vamos aos casos de pessoas transgénero que não sofrem de disforia de género.
Embora a nomenclatura vá mudando ligeiramente ao longo dos tempos, e não seja igual entre a comunidade transgénero, a comunidade médica e a comunidade académica, em 2011, na lei portuguesa, fez-se uma equivalência legal entre «transexualidade» e «disforia de género» (na altura ainda chamada de «perturbação de identidade de género», uma designação que desde 2012 não deve ser mais utilizada). Ou seja: a lei não regulamenta de forma alguma as pessoas que sejam transgénero, mas que não sejam transexuais. Não quer dizer que lhes retirem direitos, mas também não lhes conferem nenhuns direitos especiais. Por outras palavras: é como se não existissem, do ponto de vista legal.
O que as associações de activistas têm estado a fazer é procurar incluir na legislação nacional (à semelhança do que acontece noutros países) uma alteração em que, sempre que seja referida a palavra «género», seja acrescentado «género e identidade de género». Isto é particularmente importante em todas as leis que regulam (e criminalizam!) o comportamento discriminatório. Actualmente, embora a discriminação seja proibida em Portugal, não há uma proibição explícita da discriminação das pessoas devido à sua identidade de género. Não podem ser discriminadas de acordo com o seu género (e não é referido em lado nenhum — pelo menos não encontrei referência nenhuma — que existam apenas dois géneros). Isto obviamente que é ambíguo, claro, mas tem sido essa ambiguidade que tem permitido, em Portugal, combater activamente a transfobia e a criminalizá-la. No entanto, é preferível que se vá mais longe e que a designação identidade de género seja claramente referida na legislação. Este é um direito que tem sido reivindicado pela comunidade transgénero.
De notar que as pessoas transexuais já se encontram abrangidas pela legislação anti-discriminação, pois, dado que se identificam com a noção de género binário, ao transitarem «de um género para o outro», estão sempre protegidos pelas leis que proibem a discriminação de género. Por outras palavras: no caso de uma pessoa transexual MtF, o seu género passa a ser legalmente o feminino, e se for discriminada (no emprego, no atendimento…), estará a ser discriminada porque é mulher, e essa discriminação é legalmente proibida. Não interessa minimamente se essa discriminação acontece por transfobia ou não, se a pessoa é discriminada porque «sabem» que não nasceu com o género apresentado no Cartão de Cidadão ou não; o que é evidente é que está a ser discriminada por ser mulher, e isso não é permitido por lei.
Ora o problema está justamente nas pessoas transgénero que não se identificam com um género binário, ou que até podem seguir o binarismo de género, mas não estão limitadas a um só género, como é o caso das pessoas bi-género e das que apresentam fluidez de género.
Aqui existem evidentemente duas questões. Uma delas é médica: uma pessoa que se encontre claramente fora do binarismo de género, e deseje alterar a sua aparência para que esteja mais de acordo com a sua identidade de género (que pode nada ter a ver com os dois géneros clássicos, ou pode ser uma mistura de ambos), não deverá ter direito ao mesmo tipo de acompanhamento e tratamento que as restantes pessoas? Mesmo que não apresente disforia de género, mas apenas uma identificação com géneros fora da norma, não deverá igualmente ter o direito à melhoria da sua qualidade de vida?
E quanto às questões legais das pessoas que expressam mais do que um género, ou um género fora dos dois clássicos? Como se procede, por exemplo, quanto à sua identificação? Para isto não existe ainda solução em nenhum país do mundo, excepto alguns casos raros (a Tailândia e, aparentemente, a Alemanha) que permitem a inclusão, no respectivo documento de identificação, a designação de outro. Isto resolve só parcialmente o problema, ou seja, permite que pelo menos a pessoa em questão não seja «discriminada» por eventualmente apresentar alguma ambiguidade de género. Mas existem casos mais complicados ainda, e vamos passá-los em revista no tópico seguinte…
«Crossdresser» — Muito mais do que apenas «vestir roupa de mulher»
Em certa medida, durante a maior parte do século XX, os médicos tinham a vida simplificada: se lhes aparecia uma pessoa à frente vestindo roupa do género oposto ao que lhe tinha sido atribuído à nascença, existiam duas hipóteses: ou queriam realmente cirurgia para fisicamente serem mais parecidas com o género com que se identificavam, ou tinham uma parafilia (um «desvio» à sexualidade «normal»), que se chegou a chamar transvestismo fetichista.
Até mais ao menos ao início dos anos 1960, o primeiro caso podia ser tratado, in extremis, com terapia de aversão (basicamente a utilização de imagens com drogas ou choques eléctricos, para tentar «forçar» uma «lavagem cerebral» que fizesse a pessoa pensar doutra forma). Os casos não eram considerados «pouco sérios» ou «leves», mas sim «graves», o que tornavam estas terapias em formas desumanas de tortura extrema. Depois da 2ª Guerra Mundial, começou a surgir a prática de injecção de hormonas, mas precisamente com o objectivo oposto de hoje em dia: os homens que se manifestavam como mulheres eram injectados com testosterona para aumentar a sua «masculinidade», e vice-versa. Escusado será dizer que estes «tratamentos» nunca tinham sucesso e as pessoas frequentemente acabavam por se suicidar (em certa medida, confirmando assim o diagnóstico de «grave perturbação mental»).
O segundo caso (o transvestismo) era tratado com prisão— por várias razões, tanto pelo vestuário que era considerado uma ofensa ao pudor e à moral, como pela utilização de uma identidade falsa, como ainda pela intenção de enganar terceiros para encontros sexuais «perversos» (no sentido também do «atentado ao pudor»). Se persistiam (e eram apanhados de novo), sendo reincidentes, as penas eram mais agravadas, e podiam eventualmente também ser-lhes administradas drogas e outras formas de «tortura psicológica» nas celas da prisão.
Meio século mais tarde, parece-nos incrível que as pessoas pudessem ter sido tratadas assim em países que já na altura eram democráticos, e nos quais até vigorava a declaração universal dos direitos humanos…
Com o tempo, claro, e especialmente a partir dos anos 1960, as coisas mudaram muito, mas durante imenso tempo esta divisão — crossdressers para um lado, transexuais para o outro — ainda perdurou. Posso dizer que em 1995, mais ou menos, altura em que comecei à procura de informação na Internet sobre a minha situação pessoal, estava a encontrar informação de dez anos antes, altura em que ainda não se sabia muito bem o que fazer das pessoas que não eram nem crossdressers, nem transexuais…
Mas aqui havia um problema mesmo com as chamadas «crossdressers» (na altura, a Internet considerava o crossdressing como uma actividade essencialmente MtF; hoje em dia, sabemos que não é assim, embora seja verdade que as crossdressers FtM ainda são mais invisíveis que as MtF…) — é que haviam-nas de vários tipos, e, como já referi num artigo anterior (em inglês), o meu amigo Libertino tem andado a pensar na diversidade da tipologia das pessoas que praticam crossdressing e a propôr uma taxonomia nova, com pressupostos muito diferentes das existentes, que se focam essencialmente na sexualidade.
É justamente nos anos 1980 que se começa a identificar o acto de vestir roupa de um género diferente do atribuído á nascença com uma personalidade — ou, melhor ainda, com uma identidade. Presume-se, pois, que quem pratique crossdressing tenha uma mentalidade bem clara e específica, e, dez anos mais tarde, apesar de sabermos que não é assim que as coisas são, esta conotação entre a roupa e a identidade mantém-se presente na informação divulgada por toda a Internet.
Assim, presume-se que exista uma noção de «verdadeira crossdresser MtF» (uma praga que nos persegue até aos dias de hoje!), que terá algumas características bem claras: a primeira, claro está, é a de gostar de se vestir de mulher por inteiro (no sentido de que o «crossdressing parcial» não é visto pela comunidade das «verdadeiras crossdressers» como digno sequer de menção), embora, claro, se aceite que as «verdadeiras crossdressers» só se possam vestir de mulher em certas ocasiões especiais, e que, no dia-a-dia, possam não conseguir vestir mais do que algumas peças de lingerie feminina por baixo das roupas de homem; mas assume-se sempre que tal é apenas uma situação de excepção, ou de desespero, porque a «verdadeira crossdresser» apresenta-se como uma mulher total. Presume-se também sempre que o acto de vestir roupas de mulher seja uma actividade prazenteira (eventualmente até do ponto de vista do prazer sexual), muitas vezes relaxante, e que ajuda o «homem» a «estar em contacto com a sua mulher interior». Estas classificações também só aceitam o binarismo de género, embora naturalmente aceitem que uma «pessoa crossdresser» (deliberadamente entre aspas, pois tal classificação não existe!!) possa ser «forçada» a passar a maior parte do tempo no género masculino por condicionamentos sociais, familiares, e de trabalho.
Como se pode ver bem, pois, até mais ou menos aos anos 1990, é frequente olhar-se para o crossdressing como uma identidade de género com as suas características bem definidas; por outras palavras, e no caso MtF, estamos a falar de homens que têm «uma alma feminina» (reprimida ou não) que tem de se manifestar ocasionalmente (e regularmente), e isso acontece através da prática do crossdressing. Assume-se que todas as crossdressers MtF sejam assim; e que, naturalmente, o contrário também seja verdade: ao identificar uma pessoa que está a vestir roupa de um género que não lhe foi atribuído à nascença, presume-se que essa pessoa (no caso MtF) seja sempre um homem com «uma personalidade feminina interior», reprimida ou não.
O problema que as próprias «verdadeiras crossdressers» tinham com esta classificação limitadora — e note-se que grandes organizações transgénero como a Beaumont Society (que eu estou sempre a citar, pois representam um dos melhores, mais famosos, e mais antigos exemplos deste tipo de organizações de apoio à comunidade) já incorporavam este tipo de definição e classificação nas suas regras, chegando mesmo a expulsar membros que não se identificassem com estas características, considerando que não eram «verdadeiras crossdressers» e que, logo, não podiam fazer parte da organização (presume-se que uma «falsa crossdresser» seja alguém que finja ter a tal «essência feminina» escondida, mas que na realidade não a tenha, e que por isso esteja apenas a «representar» o papel de uma crossdresser… estão a ver como isto se complica!) — era a existência, inegável, e cada vez mais frequente, de pessoas que não se enquadravam claramente nestas regras, e que era, pois, difícil saber o que fazer com elas.
Vamos pegar nuns exemplos óbvios: algumas pessoas, na realidade, eram transgénero ou mesmo transexuais, desejando, pois, viver permanentemente no género com que se identificavam, e rejeitando qualquer identificação com o género que lhes tinha sido atribuído à nascença. Para organizações semelhantes à Beaumont Society, tais casos não faziam sentido pertencer ao grupo. Até haveriam comportamentos claramente transfóbicos, nomeadamente, dizendo à pessoa, de forma cruel, que tinha nascido homem e que seria sempre homem, mesmo que andasse com fantasias de fazer operações para parecer-se fisicamente com uma mulher. Tais organizações ainda existem hoje em dia, com o mesmo tipo de atitude e mentalidade, e não chocará provavelmente muita gente se eu disser que assisti, ao vivo, a precisamente este tipo de conversa…
Ou seja: para as «verdadeiras crossdressers», as pessoas transexuais são uns «bichos estranhos», umas criaturas esquisitas com ideias mirabolantes, e não estão no seu perfeito juízo — atitude, pois, não muito diferente da sociedade mainstream e da sua atitude transfóbica. Ironicamente, são as «verdadeiras crossdressers» aquelas que mostram uma menor tolerância perante o resto da comunidade transgénero — regra geral, desprezam todas as pessoas que não sejam «verdadeiras crossdressers».
(Uma nota apenas: para ser justa, deverei dizer que a atitude de muitas pessoas transexuais perante as auto-proclamadas «verdadeiras crossdressers» não é muito diferente…)
Mas há, obviamente, casos mais complicados. Um dos propósitos da Beaumont Society, por exemplo, é proporcionar a todos os seus membros lugares seguros onde podem praticar o crossdressing em privacidade, longe dos olhares reprovadores da sociedade em geral. Muitas vezes os eventos não se restringem à sede social e respectivas delegações e representações, mas são organizados eventos em espaços mais públicos — hotéis, restaurantes, bares, etc. muitas vezes alugados por uma noite especificamente para um encontro de convívio saudável. Por vezes os eventos são em lugares completamente públicos, para os membros que se sintam à vontade com essa situação, mas, regra geral, os eventos com maior participação decorrem sempre em espaços privados.
Ora mais cedo ou mais tarde, este tipo de organizações de «verdadeiras crossdressers» irão deparar com membros que não saiem de casa de forma alguma, e que até consideram uma palermice homens sairem em público de vestido e saltos altos. Relativamente a todas as restantes características, estas «crossdressers de armário» seguem rigorosamente toda a lista — nomeadamente, o reconhecerem que o crossdressing é a forma de manifestarem a «oprimida personalidade feminina» que vive dentro delas, e que a única forma de o fazer é através da recriação de uma imagem feminina completa, usando todos os truques que a arte da cosmética e da moda permitam. Estas pessoas, tal como as «verdadeiras crossdressers», não desejam qualquer forma de modificação corporal, e também, regra geral, desdenham quem as queira fazer; pois são igualmente pragmáticas e sabem que no dia-a-dia terão de desempenhar o seu papel de género atribuído à nascença, quer gostem deste ou não.
São, pois, iguais em todos os sentidos (ou pelo menos aparentemente o são) às «verdadeiras crossdressers» com a diferença que não acham que faça sentido sairem de casa vestidas de mulher. Ora isso pode ser encarado pelas «verdadeiras crossdressers» como sendo apenas timidez, medo, ou teimosia; nos primeiros casos, procura-se dar algum apoio e ajuda, por exemplo realizando encontros em locais seguros onde duas crossdressers — uma «madrinha» e a «afilhada», recentemente iniciada na arte do crossdressing — se possam vestir longe dos olhares indiscretos. Mas a relutância em «sair em público» manter-se-á.
Outras variantes, claro, são as crossdressers parciais; ou as crossdressers que não se identificam com imagens «clássicas» das mulheres contemporâneas, preferindo ou optar por um visual tipo drag queen, ou, pelo contrário, por visuais vintage ou ainda de fantasia (caso dos exemplos de cosplay). Também isto não «encaixa» muito bem com a noção das «verdadeiras crossdressers». Já não falando, claro, da esmagadora maioria que apenas veste alguma lingerie feminina como objecto fetichista, opcionalmente com o interesse em obter um parceiro sexual; assim como a variante BDSM da sissyfication, que é feita num contexto muito específico (seja apenas com um(a) parceir(a), seja em grupo); e se não fosse já tudo muito confuso, ainda existem os casos em que a pessoa em questão é homosexual assumido, mas não tem qualquer interesse em parceiros «efeminados»; então veste roupas de mulher, procurando assim atrair o interesse de eventuais parceiros masculinos (não efeminados) interessados…
Ficou assim mais que claro, na viragem do século, que existe uma variedade incomensurável de pessoas que praticam crossdressing pelas mais diversas razões, e que não é possível, de todo, associar um tipo específico de «identidade» apenas observando o exterior; ou seja, lá porque uma pessoa pratique crossdressing, não quer isto dizer que seja assim ou assado; havendo tantas razões possíveis para crossdressing, é impossível determinar, a priori, a qual dos tipos é que pertence.
Não existe, pois, «a verdadeira crossdresser» — que implica a existência de crossdressers «falsas» ou que de certa forma estejam a fingir serem crossdressers sem não o serem — mas apenas um vasto espectro de pessoas, com identidades (incluindo identidades de género), personalidades, atitudes e características muito diversas, e nenhuma delas pode reclamar o epíteto «crossdresser» apenas para si com exclusão de todas as outras pessoas. Isto é crucial e importante para chegarmos ao ponto que interessa, que é uma discussão dos direitos reclamados por (algumas) pessoas que praticam o crossdressing.
Comum a todas as pessoas que praticam crossdressing em público é o desejo de que sejam respeitadas. Isto significa, por um lado, estar dispost@ a aceitar determinadas normas da sociedade (ou seja, que o objectivo do crossdressing não seja meramente o de chocar ou incomodar as outras pessoas — o que pode ser apropriado numa marcha LGBT, por exemplo, mas já não o será num restaurante ou num centro comercial); em troca, espera-se que a sociedade, por cortesia e respeito, trate as pessoas que praticam crossdressing como tratariam qualquer outra pessoa.
Este «direito» não precisa de ser exigido a nível legislativo: já está constitucionalmente garantido o direito à livre expressão (que inclui o vestuário) nos espaços públicos. A legislação, conforme já tive oportunidade de explicar anteriormente, define rigorosamente o que são espaços públicos, o que são espaços privados de acesso público, e o que são espaços privados (de acesso estritamente privado). Apenas os primeiros contemplam a possibilidade de serem frequentados por qualquer pessoa que faça crossdressing (seja porque razão for) — incluem a via pública (incluindo, claro está, os parques naturais, as praias e demais espaços abertos ao público) e todos os edifícios públicos (tanto da administração pública, como da administração local — isto inclui as repartições de finanças, os museus, os hospitais, as escolas e universidades públicas, os teatros municipais, os transportes públicos, etc.). Os espaços privados de acesso público (restaurantes, bares, discotecas, lojas e demais estabelecimentos de comércio local, centros comerciais e grandes superfícies, cinemas e teatros privados, clínicas/consultórios/hospitais privados, alguns escritórios comerciais que estejam abertos ao público, transportes privados, etc.) têm o direito de vedar o acesso a certas pessoas, mas tais normas têm claramente de estar afixadas no exterior do estabelecimento. Finalmente, na categoria de espaços privados incluem-se não só as habitações das pessoas, mas também associações e organizações cujo acesso é limitado aos seus membros (penso que as igrejas e demais locais de culto também se incluem aqui), assim como escritórios comerciais onde não haja acesso ao público mas apenas aos trabalhadores, etc. Estes não precisam de afixar publicamente as suas regras, pois presume-se que, dada a sua natureza, os membros saibam muito bem quais sejam (estarão nos regulamentos internos das associações, por exemplo).
Ora nestes dois últimos casos existem claramente alguns problemas legais que poderiam vir a ser esclarecidos. Por norma, sempre que vou a um restaurante novo, informo-me junto do gerente ou proprietário quais são as normas da casa. Regra geral, se não estiver nada afixado à entrada, não haverá qualquer problema, mas não vale a pena criar problemas…
Devia, pois, haver uma alteração à lei – explícita, e não implícita como actualmente – em que fique bem claro que as pessoas que se apresentem em espaços privados de acesso público com roupa e acessórios de acordo com o género que se identificam deveriam ser sempre aceites (desde que a sua indumentária esteja de acordo com a formalidade do local, p. ex. pernas e ombros cobertos numa igreja católica, vestido de cocktail ou noite para um espectáculo formal, etc.). Não será talvez fácil redigir os termos desta lei, claro está, mas pode-se sempre tentar fazer um esforço – cabe ao legislador ser «criativo» neste aspecto!
Mas isto não é suficiente nalguns casos, em que a identificação constante no Cartão de Cidadão não coincide com a apresentação em público. Isto pode ou não ser importante para o acesso a certos espaços (como as casas de banho públicas, por exemplo! – mas não só). E aqui a situação complica-se. Tal como sugeri anteriormente, a primeira coisa a exigir é a eliminação da indicação de «sexo» em toda a documentação (tal como já acontece na Carta de Condução Internacional). Isto é apenas uma ajuda parcial, já que, em Portugal, os nomes próprios têm obrigatoriamente de designar o sexo atribuído à nascença (há muito poucos nomes ambíguos que sejam aceites oficialmente).
Ora, se bem que, para o caso das pessoas transexuais que desejam apenas ser tratadas pelo género com que se identifiquem já existe uma solução administrativa (mesmo que não perfeita, já que requer a intervenção médica para confirmar um «diagnóstico», como já vimos), para as pessoas que se identificam com vários géneros ou nenhum género em particular, esta solução não lhes serve.
Embora em países como o Brasil exista a possibilidade de escolher um «nome social» (que tem de ser obrigatoriamente utilizado pelos serviços públicos, tal como os serviços de saúde, quando se dirigem à pessoa em questão), e o registo do mesmo seja um procedimento administrativo comparativamente simples (pelo menos no Brasil), a verdade é que esta solução também não é perfeita: em primeiro lugar, os cartões de identificação ostentam os dois nomes, identificando, pois, a pessoa em questão como «travesti» ou «transexual», o que permite, pois, o ostracismo e discriminação deliberados, mesmo que estes sejam proibidos (por outras palavras, se não constarem os dois nomes, mas apenas um, pode haver dúvida se a pessoa em questão é ou não transexual, e, em muitos casos, a dúvida pode ser suficiente para garantir um tratamento adequado e não-discriminatório).
Além disso, deva-se referir que o «nome social» não se encontra em todos os documentos; por exemplo, é legítimo assumir que para abrir uma conta num banco privado seja exigido à pessoa que utilize o seu nome de nascença, e não o social – o que impede, por exemplo, que tais pessoas possam ter um cartão de débito ou crédito no seu nome.
A legislação brasileira (e outra) pode-nos servir de inspiração, mas é evidente que é preciso mais do que isto; embora seja compreensível que o foco esteja nas pessoas transexuais (e naquelas que, como as travestis brasileiras, já desempenham um papel de género feminino a tempo inteiro mesmo que formalmente este não lhes seja reconhecido), a verdade é que o espectro transgénero não se esgota aqui. Uma pessoa bi-género que se apresente num género diferente ao atribuído à nascença deveria poder, legalmente, identificar-se perante as autoridades (apenas para dar um exemplo) de acordo com o género com que se apresenta; qualquer outra forma de tratamento é embaraçosa e discriminatória – uma forma de transfobia.
Talvez possa propôr, pois, uma solução – facilitado pela era da informação em que nos encontramos. Uma coisa que muitas pessoas não conhecem é a possibilidade do registo de um pseudónimo artístico. Este registo pode ser feito junto da Sociedade Portuguesa de Autores (SPA) e, curiosamente, tem validade legal em todos os contratos assinados a nível de direitos autorais. De notar que isto não contempla apenas música, vídeo, ou literatura. Uma carta escrita por um advogado, ou um relatório elaborado por um consultor para o seu cliente, ou um programa de computador, todos eles estão protegidos pelo direito de autor, e todos eles podem, legalmente, ser contratualizados com um pseudónimo. Apesar disto estar legalizado é regulamentado em Portugal, é usado muito raramente (se é que é usado de todo), mas noutros países é frequente os artistas e autores, por exemplo, assinarem contratos com o seu pseudónimo (conhecido por toda a gente) e não o seu nome real. Julgo que existe legislação semelhante para os pseudónimos dos atletas, mas não fui confirmar.
Como se pode, então, saber quem é a pessoa que assinou determinado contrato com um pseudónimo? Na realidade é muito mais simples do que se possa pensar. Os contratos têm geralmente implicações fiscais, pelo que contêm o número de contribuinte das partes, e isto é o que interessa para as Finanças. Assumindo que hajam dúvidas quanto ao nome escolhido para assinar o contrato, pode-se sempre perguntar à SPA se têm um registo deste pseudónimo em nome de um associado. Regra geral, tal será apenas necessário se houver qualquer problema legal com o contrato; em situação regular, claro, nada disto será preciso.
Obviamente que está solução – disponível hoje! – não serve para todos os casos. Em primeiro lugar, é necessário ser-se membro da SPA para usufruir dos registos de pseudónimos efectuados por esta entidade (embora a legislação, claro, não possa obrigar uma pessoa a ser membro da SPA para beneficiar da utilização de um pseudónimo legal – a constituição portuguesa proíbe explicitamente a obrigatoriedade de pertença a uma associação! – a verdade é que não faço a menor ideia de como isto se faz fora da SPA). Em segundo lugar, não pode ser «exigido» a ninguém que autorize a utilização o pseudónimo (em especial se o género deste divergir do nome atribuído à nascença) em vez do nome legal — ou seja, não podemos «obrigar» o nosso banco a emitir um cartão em nome do pseudónimo, por mais que este esteja «registado» legalmente.
O que é preciso, isso sim, que exista uma forma dos cidadãos nacionais poderem ter legalmente mais do que um nome. Isto, sim, é que era uma solução! De notar que, para todos os efeitos, nos dias que correm, é mais importante o número (nomeadamente o nº de identificação fiscal) do que propriamente o nome. Podemos alegar que isto é uma certa «perversidade» do princípio, mas obviamente que há uma excelente razão para isso — é que é muito mais fácil garantir que uma pessoa introduza correctamente o nº de contribuinte (até porque nem todas as sequências de 9 dígitos são números válidos: há um algoritmo para verificar se o nº é válido ou não, de propósito para se poder confirmar que não houve enganos a digitar o número…) do que garantir que escreva o nome correctamente (por exemplo, os americanos adoram escrever o meu último nome como «Lopez», por mais que lhes diga que sou portuguesa e não espanhola…).
Embora radical, esta ideia permitiria que cada cidadão, ou cada contribuinte, tivesse associado ao seu número vários nomes diferentes, potencialmente de vários géneros possíveis. Isto evidentemente que teria de ser pensado um bocadinho, para evitar fraudes; no entanto, pelo menos uma coisa era garantida: seja como for que nos queiramos chamar, iremos pagar os nossos impostos a partir do número de contribuinte correcto 🙂
Haveria, naturalmente, necessidade de ter um «registo central» em que as pessoas pudessem efectivamente «registar» o seu nome — seja este qual for — e obter um cartão ou certidão nesse nome, de forma legal. Nos dias que correm, esse registo poderia até ser feito via Internet — para quem tenha o leitor de Cartão de Cidadão (custava €17 quando tirei o CC da primeira vez, pelo que comprei um desses aparelhinhos), nada mais fácil que ir ao Portal do Cidadão, e ter uma área para acrescentar mais um nome.
O importante seria garantir que todos os nomes são igualmente importantes. Ou seja: ao contrário da solução brasileira, em que existe um «nome legal» e um «nome social», a minha proposta é no sentido de não dar primazia a um nome sobre o outro. Uma consequência desta alteração da lei obrigaria, claro está, a que seja o número mais importante do que o nome, e penso que a nossa actual Constituição não permita uma coisa destas (e embora tecnicamente permita a mudança de nome, é omissa quanto a existência de múltiplos nomes para a mesma pessoa).
Estou a tentar ver como é que esta alteração poderia encorajar ou facilitar a burla ou a fraude, mas o certo é que o que aconteceria era que em todas as transacções feitas com determinada pessoa, seja como ela se queira chamar no momento, seriam sempre feitas com o número (o de contribuinte, o de cidadão, o da segurança social — consoante o que for mais apropriado). Repare-se que em muitas situações actuais nada impede que os cidadãos se identifiquem da forma que quiserem, desde que não seja para fins ilegais. Por exemplo, podemos ter um cartão de biblioteca com um nome fictício, desde que não nos seja pedido nenhum número oficial (e não o deveriam pedir de qualquer das formas, excepto eventualmente o nº de contribuinte se o acesso à biblioteca for pago, o que implicaria a emissão de uma factura). E é frequente, mesmo nos casos em que damos o nosso nome «real» (ou «legal») estarmos sempre a abreviar ou omitir nomes; na prática, é irrelevante quantas «Sandra Lopes» existam em Portugal, porque cada uma delas terá um nº de cidadão/contribuinte/segurança social diferente…
É certo que, para muitos, passar a identificar as pessoas por um número e não um nome pode ser o início do totalitarismo tipo Big Brother na novela 1984 de George Orwell; e isso, como disse, pode obrigar a uma revisão constitucional — não tenho bem a certeza. Por outro lado, nos dias que correm, o que não faltam é pessoas com múltiplos emails, múltiplos nicknames, múltiplos números de telemóvel… se quisermos, múltiplas identidades digitais, e penso que ninguém terá qualquer problema em «aceitar» isto do ponto de vista social. Sabemos, no fundo, que se trata da mesma pessoa — e que essa «pessoa» não condiz com o que está escrito no Cartão de Cidadão.
Evidentemente que esta medida — a autorização para que se possa usar qualquer nome e registá-lo centralmente para que fique associado ao mesmo número, e a possibilidade de emissão de documentos legais (Cartão de Cidadão, Carta de Condução, etc.), bancários e outros semelhantes em qualquer um dos nomes registados — não estará limitada apenas a pessoas transgénero, mas sim para toda a população. Afinal de contas, o que não faltam são pessoas que não gostam dos nomes que lhes foram dados pelos pais, por exemplo. Isto, obviamente, irá criar uma enorme confusão a nível social! Já não falando nas questões acessórias — como garantir que a emissão dos cartões com nomes diferentes respeitem a Constituição (ou seja, que não seja possível correlacionar nomes diferentes em entidades diferentes através do mesmo número), ou que não seja possível criar bases de dados de relações entre os nomes, que não haja possibilidade de fraude (usar deliberadamente um nome igual a uma outra pessoa para obter determinadas regalias e privilégios), e assim por diante. Será desnecessário acrescentar que, com esta proposta, o marcador de «género» desaparecerá das bases de dados centrais do Ministério da Justiça, existindo apenas nalgumas bases de dados — como as da Segurança Social ou do Serviço Nacional de Saúde — onde é preciso assegurar, por exemplo, algumas medidas de discriminação positiva para com as pessoas do género feminino (cuidados pré e pós-natais, por exemplo; pagamentos de eventuais subsídios de maternidade; etc.).
Podem imaginar a confusão que isto não dará! No entanto, a verdade é que temos já algumas bases para que esta medida seja possível. Por exemplo, o mesmo Cartão de Cidadão ostenta claramente três números diferentes no verso, coisa que eu sempre pensei que não fosse constitucionalmente possível. O Cartão de Cidadão é já usado para coisas como identificação nas farmácias (facilitando o processo de registo), mas as receitas electrónicas podem estar associadas a um número de telemóvel — outro número — e não existe nenhuma necessidade legal de «provar» que a pessoa com o telemóvel é, de facto, a mesma que tem determinado número do SNS no Cartão de Cidadão. Por outro lado, como disse, já existe a legislação que trata dos pseudónimos e lhes dá existência legal, mesmo que esta medida seja muito pouco usada para a esmagadora maioria dos cidadãos (incluindo mesmo os artistas, autores, cientistas… talvez só alguns desportistas a usem, não sei). E há logicamente medidas para as pessoas mudarem de nome, em particular a mudança de nome e género com autorização médica, que é um procedimento administrativo relativamente recente (só existe há cinco anos), mas que é implementado em comparativamente pouco tempo (8 dias, salvo erro). Já percorremos, pois, parte do caminho. Falta ainda dar «o grande salto para a frente» (perdoem-me os maoístas esta comparação…), e existem certamente muitos obstáculos — muitos que nem sequer sonho quais sejam! — mas estes são essencialmente de índole administrativa, burocrática, e jurídico-legal. Há certamente algum impacto social, mas a minha intuição diz-me que nem é aí que estará o maior problema, mas sim nas complicações jurídicas e na percepção de que esta medida possa criar mais fraudes (nomeadamente a fraude de roubo de identidade, mas não só).
Isto já seria uma enorme ajuda, claro está, mas não chega! E as últimas questões, essas sim, têm enormes implicações sociais…
O problema das múltiplas apresentações de género
Vamos assumir, pois, que ao fim de muitos anos (ou décadas) de luta contínua, as organizações LGBT conseguem finalmente aprovar a minha proposta anterior e garantir, pois, que as pessoas que se apresentem com géneros diferentes possam ter identificações legais, completas, consoante o género que manifestam (mesmo que não manifestem nenhum género clássico ou tradicional). Isto, claro, resolve o problema de grande parte das pessoas que praticam crossdressing a tempo parcial (ou mesmo total), pois assim podem ter sempre consigo a identificação «correcta» conforme a situação e o contexto em que estejam.
Mas isto não resolve tudo. O caso das pessoas bi-género e com fluidez de género só é parcialmente contemplado com esta medida. Por exemplo, há pessoas que manifestam um género de acordo com o seu estado de humor, consoante o dia, por vezes consoante a hora… se pensarmos que todas as pessoas na realidade passam por estados de humor diferentes e que é muito frequente nos vestirmos de acordo com o que sentimos, e que nos comportamos geralmente de forma diferente quando estamos bem dispostos de quando estamos deprimidos, não deveria criar-nos confusão certas pessoas manifestarem um género diferente consoante esse estado de humor.
Ora isso cria imensos problemas a nível social. A seguinte história, repetida frequentemente em estados americanos onde a discriminação contra as pessoas transgénero é activamente perseguida e erradicada, ilustra bem esta complicação. Determinada pessoa transgénero MtF, passando já praticamente todo o seu tempo fora do trabalho apresentando-se como mulher, tendo-se revelado a amigos e familiares, decide por fim informar o seu patrão da sua decisão. Este, consciente das leis e regulações do estado, diz-lhe: «Por mim tudo bem, podes vir vestido de mulher amanhã, se isso te faz sentir melhor; mas tens de tomar uma decisão agora, e que ficará decidido para sempre: ou vens para o trabalho vestido de homem, ou vens vestido de mulher — mas não quero confusões, ou uma coisa, ou outra».
Isto apenas mostra como a legislação contra a transfobia está a incidir essencialmente na protecção dos direitos das pessoas transexuais — as que se identificam com o binarismo de género, logo não «ameaçando» a sociedade — deixando as pessoas transgénero, em certa medida, ausente desta protecção. As pessoas bi-género ou com fluidez de género não parecem gozar dos mesmos direitos e protecções; ou seja: se bem que é normalmente assegurado, no local de trabalho, que cada pessoa se pode vestir de acordo com o seu estado de espírito, quando esse «estado de espírito» implica a utilização de um vestuário não conforme ao género atribuído à nascença, então esse comportamento é «proibido», especialmente nos casos em que há oscilação de género com frequência.
E este caso é, na realidade, muito mais frequente do que normalmente se pensa. É certo que dentro do grupo de activistas transgénero, podem não se encontrar muitas pessoas com fluidez de género ou multigénero, mas dentro do grupo de pessoas que se auto-identifica como «meras crossdressers», na realidade a esmagadora maioria é, pelo menos, bi-género, e esse é até o caso mais frequente, fora do grupo de pessoas que praticam crossdressing como mero fetiche de objecto (ou seja, é a sensação de usar roupas femininas que provoca desejo sexual, isolado ou com um parceiro). O que acontece é que esta noção de se ser homem um dia e mulher noutro (ou homem durante o dia e mulher durante a noite) não é socialmente aceitável — muito menos do que ser-se transexual! — e, como tal, esta condição de bi-género (ou multigénero…) é reprimida e suprimida.
De notar que estamos a falar de pessoas que necessitam também do seu género «original» (ou seja, aquele que lhes foi atribuído à nascença). Mesmo que se empenhem em modificações corporais, estas normalmente são no sentido da androginia, que permite com mais liberdade adoptar qualquer um dos papéis de género com maior facilidade. Ora aqui nem a ciência médica, nem a sociedade podem dar qualquer ajuda. Não existirão (pelo menos em Portugal) muitos cirurgiões plásticos que estejam disponíveis para ajudar a pessoa a tornar-se mais andrógina — ou seja, reduzir a masculinidade em pessoas que lhes foi atribuído género masculino à nascença; reduzir a feminilidade no caso oposto — porque este tipo de cirurgia está reservado apenas a quem seja «diagnosticado» como transexual.
Na realidade, pelo menos no Serviço Nacional de Saúde, estas pessoas são correctamente identificadas como sofrendo de disforia de género (sofrem porque lhes é recusada a possibilidade de se manifestarem como determinado género em certas circunstâncias) — ou pelo menos tem sido essa a minha (curta) experiência — mas depois não têm argumentação clínica para as poder ajudar com terapia hormonal e/ou cirurgia, se tal for desejado.
Mas mesmo que não o seja (o que acontece com frequência em pessoas naturalmente andróginas, por exemplo), não basta o apoio médico. É preciso também que a sociedade toda aceite que certas pessoas por vezes aparecem manifestando um género um dia, e outro género diferente noutro. Isto, para já, pode acontecer em espaços LGBT-friendly e/ou no Serviço Nacional de Saúde, mas, regra geral, não é tolerado no ambiente de trabalho. A discriminação das pessoas com fluidez de género ou multigénero (ou com ausência de género!) é, pois, ainda maior — em certa medida — que a das pessoas transgénero, que se sentem mais «protegidas» pela lei em caso de conflicto. Por exemplo, se uma pessoa for despedida por um dia chegar ao trabalho vestido de mulher, e no outro por estar vestido de homem, não é claro se foi violada alguma regra — o empregador pode declarar que, no espaço privado de acesso privado que é o seu escritório, tem o direito de «impôr» certas regras, e se a pessoa não estiver de acordo com as regras da empresa, é despedida. Este argumento é válido, e não sei como é que em Portugal poderia ser argumentado (em tribunal) que a pessoa sofreu de discriminação transfóbica antes de violar as regras da empresa. É um caso complicado. Já as pessoas transexuais, em transição, estão protegidas pela lei — pois podem mudar o seu nome e género legais enquanto prosseguem com a transição — e se forem despedidas porque estão a «usar roupa não adequada», então esse é um caso claro de discriminação contra o género legal da pessoa, pelo que isto está contemplado na lei…
Se este caso das pessoas com fluidez de género e multigénero já é complicado por si só — mas alegadamente poderia ser resolvido se a legislação portuguesa explicitamente proibisse a discriminação contra todos os tipos de identidade de género e não apenas «género» como actualmente consta das leis anti-discriminação — o caso seguinte, esse, tem consequências devastadoras para a sociedade e duvido sinceramente que seja resolvido na minha geração (e muito menos em Portugal!).
Estou a falar dos casos que uma amiga minha chamou em tempos de «dupla heterosexualidade» e que tem sido usado por outras pessoas, embora não seja um termo comum na literatura (pelo menos não o encontrei!). Especificamente, este termo designa uma pessoa bi- ou multigénero, que apresenta duas personalidades distintas consoante o género com que se apresenta (o meu amigo Libertino compara estas «personalidades» à heteronímia de Fernando Pessoa); em cada um dos géneros, a pessoa em questão mostra preferências sexuais por pessoas de género diferente do seu. Ou seja, e pegando no caso binário clássico, quando a pessoa se apresenta como «homem», é sexual e romanticamente atraído por mulheres; quando se apresenta como «mulher», é sexual e romanticamente atraído por homens. Os dois casos são exclusivos — nestas pessoas, os géneros jamais coexistem no tempo e no espaço, mas apenas no corpo da mesma pessoa. Estas preferências de parceiros sexuais são «reais» (no sentido da realidade dos heterónimos de Pessoa) enquanto há manifestação de um dos géneros — a pessoa em questão não pode ser «convencida» ou «persuadida» com argumentação filosófica e lógica de que é tecnicamente bisexual do ponto de vista externo, e que pode, ou não, ter as preferências que quiser, independentemente do género com que se apresenta. Na realidade, no entanto, não é assim que essas pessoas percepcionam a realidade: ou estão num género, ou noutro, e cada género tem a sua personalidade bem distinta, assim como as suas preferências afectivas, românticas, amorosas, sexuais. Não existe «partilha» das personalidades entre si, e todas as personalidades evidentemente partilham de todas as memórias em comum e podem aceder livremente às mesmas. Não se trata aqui de nenhuma condição do foro psicológico. Fernando Pessoa, quandoe escrevia como Álvaro de Campos (para dar um exemplo), era Álvaro de Campos, com a sua própria personalidade, que se reflectia inclusivé na forma diferente de escrever. O ortónimo «Fernando Pessoa» naturalmente tem consciência das memórias de Álvaro de Campos, e vice-versa; ambos sabem perfeitamente que partilham o mesmo corpo físico. Mas quando é a personalidade «Álvaro de Campos» que se está a manifestar, a sua escrita é feita de acordo com a realidade dessa personalidade; quando «regressa» a personalidade de «Fernando Pessoa», é esta que então se encontra dominante. O caso de Fernando Pessoa é particularmente elucidativo porque cada um dos diversos heterónimos deixou a sua escrita para que possa ser analisada. Nos casos de pessoas que manifestam claramente uma «heteronomia» mas que esta não tem produção artística, é difícil a sua análise a posteriori, porque, embora as memórias das várias personalidades sejam as mesmas, uma conversa com uma das personalidades, ao recordar essas memórias, vai transmiti-las ao interlocutor filtradas pela percepção de uma outra personalidade. Por exemplo, a pessoa, na sua personalidade masculina, pode evidentemente recordar-se de ter ido comprar um vestido durante a fase em que estava dominada pela personalidade feminina. Essa memória estará obviamente intacta; no entanto, poderá haver um certo «desprezo», uma certa noção de «futilidade» na aquisição do vestido, que a personalidade masculina irá transmitir a um interlocutor — enquanto que a personalidade feminina pode, pelo contrário, a partir da mesma memória, transmitir uma ideia de euforia enquanto estava a fazer a compra do vestido!
Isto são, evidentemente, casos limites. Mas eu penso que todas as pessoas transgénero que são «obrigadas» socialmente a apresentarem um género diferente daquele que apresentam em situações de lazer são um pouco assim — mesmo que não haja uma real «mudança de personalidade» (na maior parte das pessoas que conheço isso de facto não acontece) há evidentemente uma alteração do prisma pelo qual se experimenta o mundo, e, como consequência, e para pegar num exemplo, as memórias da última vez em que se praticou crossdressing e se vestiu um vestido poderão estar bem presentes durante uma apresentação de género masculina, mas são vistas ou como uma fantasia/desejo que se pretende voltar a repetir, ou talvez mesmo com um certo nojo ou medo da experiência. Há, pois, uma certa dose de discrepância entre os focos e os pontos de vista em todas as pessoas transgénero que são «obrigadas» a apresentarem-se de acordo com géneros diferentes por questões sociais.
No entanto, as pessoas que são «duplamente heterosexuais» têm um problema maior, que é o da sua sexualidade, em ambas as personalidades, ser geralmente saudável e requerer uma determinada atenção. Ora dado que estas sexualidades são opostas — no caso de uma pessoa bigénero que é sempre atraída pelo género oposto ao como que se apresenta — isto cria uma complicação grave, que é a impossibilidade da existência de uma pessoa que as possa satisfazer completamente (em ambas, ou todas, as manifestações de género). Não só o desejo sexual é atraído para pessoas de géneros diferentes, como também, no caso de pessoas com fortes alterações à personalidade quando oscilam entre os géneros, o tipo de pessoa pela qual são atraídas também depende da sua personalidade no momento. Isto é particularmente complexo nas pessoas com vários «heterónimos», de diversos géneros diferentes, cada qual também com «heterónimos» com características diferentes (o caso de Fernando Pessoa seria um caso extremo, dada a proliferação de heterónimos «criados» por Pessoa; no entanto, é aparentemente frequente certas pessoas terem 3 ou 4 heterónimos, cada qual com as suas preferências e gostos, para além das suas personalidades distintas).
Não me cabe aqui pronunciar-me sobre as questões psicológicas que levam a este tipo de situações (a linha freudiana provavelmente explicaria esta «criação» de pseudónimos como um mecanismo de defesa surgido com um trauma qualquer de infância, em que determinada pessoa acaba por «criar» — talvez de forma inconsciente — uma segunda, terceira, quarta personalidade, que lhe serve de «refúgio» quando a personalidade ortonímica não consegue, ou não conseguiu, lidar com determinada situação; mas isto é apenas uma conjectura e haverão outras com certeza, eventualmente nem sequer lidando com questões do foro psicológico, que possivelmente expliquem isto bem melhor) e muito menos sobre as filosóficas; o assunto é tão interessante que merece vários capítulos de um livro para ser devidamente tratado 😀
No entanto, faço uma consideração ético-moral — ou melhor, reproduzo a consideração efectuada pelo meu amigo Libertino — e tentarei tirar algumas ilações desta.
Assumindo um caso de uma pessoa bi-género com duas personalidades distintas, ambas heterosexuais da perspectiva de cada uma das apresentações de género, e assumindo igualmente que ambas as personalidades apresentem uma líbido normal, um desejo normal de criar laços de afecto, de procurar um parceiro regular para a actividade sexual, então existe obviamente um problema social complexo — pois, excepto nos raríssimos casos de pessoas que tenham encontrado parceiros completamente liberais, o comportamento da busca de «mais de um parceiro simultâneo» vai contra todas as normas da sociedade monógama em que nos encontramos.
Não quero sequer entrar na discussão filosófica sobre a imposição moral — e depois legal — da monogamia. Há muitos estudos sobre o assunto, e a visão e perspectiva variam consoante o desejo de provar que a espécie humana é monógama ou polígama — há argumentos para ambos os lados. O certo é que a maioria das sociedades contemporâneas impôem a monogamia como única solução, e ninguém, nessas sociedades, tenciona abolir a proibição da poligamia, por mais laicos que os Estados sejam.
O problema essencial, a meu ver, está na figura do contrato de casamento. O papel principal desse contrato, da perspectiva legal, pouco ou nada tem a ver com «direitos e deveres» dos cônjuges, mas essencialmente com questões financeiras: quem herda o quê (caso um dos cônjuges sobreviva ao outro; ou caso um dos cônjuges receba uma herança de um familiar do «seu» lado da família); quais as responsabilidades sociais e económicas perante os filhos do casal (se os houver); e quais são os direitos e deveres dos cônjuges após separação e divórcio (e, mais uma vez, fala-se em direitos e deveres ligados à partilha dos bens comuns; às pensões a pagar; à forma como serão educados os filhos do casal e quem paga pela sua educação; etc.). Isto é o que é importante do ponto de vista do Estado.
É por isso que (felizmente) foi muito fácil alterar a lei dos casamentos para que contemplasse casamentos de pessoas do mesmo sexo; em vez de definir o casamento como um contrato entre «um homem e uma mulher», a lei diz apenas que é «um contrato entre dois cidadãos adultos», sem especificar o seu sexo ou género. Os restantes direitos e deveres são precisamente os mesmos.
Infelizmente, por considerações morais, a dissolução do casamento enquanto contrato — e em especial nos casos litigiosos! — permite a utilização de argumentos subjectivos que estão intrinsecamente ligados a uma certa moralidade religiosa. Nomeadamente, o adultério pode ser justa causa para a quebra do contrato de casamento (e, em comarcas mais retrógradas, acredito que se possa usar a prática de crossdressing, ou uma alegada bisexualidade da qual o cônjuge não tinha qualquer conhecimento no momento da celebração do contrato de casamento, alegando-se, pois, má fé com a intenção de iludir o cônjuge). E, embora não tenha conhecimento de nenhum caso real onde isto tenha acontecido, é-me fácil imaginar que, num divórcio litigioso, a parte ofendida apresente provas de «comportamento sexual desviante» — ainda por cima com outros parceiros — como argumentação para agravar ainda mais a situação do divórcio.
Ora da perspectiva de uma pessoa bi-género como no exemplo anterior, o casamento foi celebrado entre uma das personalidades e o respectivo cônjuge; a outra personalidade, tendo preferências afectuosas e sexuais completamente distintas, não se «considera» moralmente afectada pelo casamento contraído pela outra personalidade. É certo que ambas as personalidades têm consciência de que esteve presente um corpo físico no cartório (ou na igreja), e que o contrato de casamento foi assinado pela personalidade que estava nesse corpo físico, logo, tendo efeitos legais sobre a pessoa que habita esse corpo físico. No entanto, da perspectiva da pessoa bi-género, existem também efeitos morais, que se aplicam apenas a uma das personalidades, nomeadamente, aquela que assinou o contrato de casamento…
Naturalmente, nem o sistema jurídico português, nem sequer a sociedade portuguesa, encaram as coisas desta maneira!
Mesmo sem ir ao caso extremo das pessoas bi-género com personalidades diferentes, podemos igualmente argumentar que, para muitas pessoas transgénero, a manifestação do género com que se identificam (seja esta manifestação temporária, oscilatória, ou permanente) pode implicar naturalmente uma atracção romântica e/ou uma preferência sexual que só pode ser satisfeita por uma pessoa diferente da com que se estabeleceram as relações durante uma fase em que manifestavam um género com que não se identificavam, ou com o qual se identificam apenas temporariamente.
Esta situação é particularmente complicada, e é uma razão pela qual (pelo menos em Portugal) se dá preferência, no processo de transição, às pessoas solteiras que habitem sós. É que há sempre o receio que, após a transição, se «manifeste» uma atracção romântica/afectiva/sexual diferente da pré-transição, deixando, pois, o cônjuge numa situação extremamente complicada. Estatisticamente, no entanto, a esmagadora maioria dos casamentos não «resiste» a uma transição — mesmo que o objecto de atracção não mude após a transição — pelo que o papel dos médicos é apenas aguardar para ver como a situação matrimonial evolue…
Mas fora das questões da transexualidade «clássica», e regressando aos casos de uma transgenderidade oscilante ou fluida, existe, pois, um problema social: independentemente de quão «forte» é a personalidade que «domina» o corpo durante determinada manifestação de género, numa sociedade monógama, não é possível a mesma pessoa ter dois parceiros diferentes em relações conjugais. E mesmo que estas não sejam formalizadas contratualmente, não deixa de haver um repúdio social por tal situação (até mesmo pelos parceiros sexuais!).
Por outro lado, mesmo no cenário das «crossdressers verdadeiras», existe um forte encorajamento para que as «novatas» rapidamente encontrem «um namorado» que as inicie na arte de «sentir prazer como uma mulher» (essencialmente sexo anal e oral, numa posição submissiva), dizendo que só assim é que a «verdadeira crossdresser» se sente «completa». Por outras palavras: mesmo que a pessoa em questão seja casada, existe aqui um claro incentivo a «cometer adultério», que é fortemente encorajado, e até mesmo apresentado como sendo «a coisa mais natural do mundo para uma crossdresser se sentir uma mulher completa».
Com certeza que nem todos os grupos de apoio a pessoas transgénero (incluindo a crossdressers) advogam a cessação do casamento ou da relação que tenham com um(a) companheir(a) e que, em vez disso, procurem companheiros(as) alternativos(as) que estejam mais de acordo com o género com que se identificam; não devemos generalizar a situação! No entanto, é de ter em conta que esta corrente de pensamento desafia a posição «moralizadora» de um Estado pretensamente laico que impõe a noção de que a monogamia é a única forma das pessoas se relacionarem entre si — quando, na realidade, todos sabemos que isso não é, de todo, verdade, nem entre as pessoas cisgénero, nem entre as transgénero.
A única forma, pois, de garantir às pessoas bi-género que possam ter relações «normais» de acordo com o género que manifestam no momento é abolir a noção de «adultério» do ponto de vista social — já que o adultério enquanto crime foi abolido em Portugal em 1973. Isso não impede, claro, de que exista condenação social ao adultério, assim como este continue a ser usado como argumento num divórcio litigioso. Poder-se-ia, pois, sugerir que se alterasse o Artº 1672º do Código Civil, que refere, nos Deveres dos Cônjuges,
Os cônjuges estão reciprocamente vinculados pelos deveres de respeito, fidelidade, coabitação, cooperação e assistência. (ênfase minha)
para suprimir a palavra «fidelidade», que, ademais, pelo que consegui depreender, não se encontra definida no Código Civil, mas poderá fazer parte da jurisprudência; para isso seria preciso o parecer de um advogado ou jurista; no entanto, encontrei algumas referências num acórdão do Supremo Tribunal de Justiça:
O dever de respeito corresponde à obrigação de cada um dos cônjuges respeitar os direitos individuais do outro, os direitos conjugais que a lei lhe atribui e os seus interesses legítimos, desde logo a sua integridade física e moral – cf. Abel Pereira Delgado, Divórcio, pág. 48.
O dever de fidelidade corresponde não só à exclusividade de relações de sexo entre os cônjuges mas tem por objecto a dedicação exclusiva e sincera de cada cônjuge ao outro – cf. Antunes Varela, Família, 2ª ed., 1987, pág. 328.
Logo, devo concluir que existe efectivamente uma «moralidade implícita» no contrato de casamento civil, ainda muito inspirado no matrimónio católico, onde, para além da noção (humanista) do respeito mútuo, é ainda imposta a «exclusividade de relações sexuais» (um com o outro), assim como a «dedicação exclusiva» um ao outro.
Ora parece-me que tais requisitos são, nos dias que correm, excessivos — para além de não representarem a realidade, claro está. Sempre existiram relações extra-conjugais, desde os tempos bíblicos. A diferença, claro está, tem a ver com a forma como lidamos com a situação; até bem recentemente, em Portugal, era permitido ao marido matar a esposa se fosse encontrada a cometer adultério. Pessoalmente, tal situação choca-me pelo absurdo: se por um lado abolimos a pena de morte, até mesmo para terroristas e psicopatas assassinos em série, como é possível que, até ao final do século XX, fosse permitido assassinar brutalmente a própria esposa, só porque esta esteve abraçada a outra pessoa que não o marido?
A justiça (que herdámos do direito romano; mas já o direito de Hammurabi ia mais ou menos na mesma direcção) baseia-se no princípio que a pena jamais pode ser maior do que a ofensa cometida. Por exemplo, se alguém roubou €500 a outra pessoa, terá de restituir os mesmos €500 ou o equivalente (em bens, serviços, etc.). Não se lhe pode aplicar uma pena «maior» do que €500. Esse é um princípio fundamental em justiça, e por isso é que por vezes muita gente fica decepcionada porque, em tribunal, as penas parecem ser sempre muito ligeiras (para os outros) mas excessivamente pesadas para nós… alegadamente, o papel do juíz é ser neutro e imparcial, compreender como uma das partes prejudicou a outra, em que forma esse «prejuízo» pode ser avaliado, e aplicar a multa/pena adequada.
Nos tempos em que os casamentos eram pouco mais do que alianças de conveniência, em que os noivos pouco tinham a dizer nas escolhas que eram feitas, em que haviam contratos antenupciais, pagamento de dotes, etc. havia muita coisa em jogo: principalmente dinheiro, claro está, mas também honra e reputação, coisa que hoje em dia valorizamos muito pouco, mas não era assim há 200 ou 250 anos atrás.
Nesta situação, as penas pesadas aplicadas ao adultério poderiam, eventualmente, ainda fazer sentido — contextualizando, bem entendido, no pensamento da época. Como haviam realmente fortunas que poderiam ser destruídas dessa forma — com o fim do casamento — fazia sentido, pois, haver penas «pesadas» na medida em que a aliança entre famílias, representada como tendo sido selada com casamentos entre filhos de ambas, podia ter sido destruída, ou pelo menos seriamente colocada em questão. Ora nessas circunstâncias era importante compreender quão o casamento realmente representava muito mais um contrato — entre duas pessoas, sim, mas também entre duas famílias — e que tinha um valor realmente muito considerável, pelo menos em certas classes sociais.
Nos dias que correm, porém, a essência do contrato de casamento é salvaguardar direitos aos cônjuges e aos respectivos filhos quando existe separação e divórcio. Do ponto de vista de um estado secular e laico, não faz sentido «impôr» mais nada. Haverão, claro, alguns deveres que são apropriados à constituição de uma família: por exemplo, a forma como são asseguradas as despesas conjuntas da família, em termos de rendas, luz, gás água, Internet, etc. E depois, se houverem crianças, os novos deveres incluem o seu cuidado e a sua educação até à maioridade. Ora regular e regulamentar esta actividade, garantindo os direitos, e salvaguardando os interesses de todas as partes quando o contrato de casamento é anulado (divórcio), faz todo o sentido.
O que já não faz sentido nenhum é a noção de que um divórcio litigioso é «vencido» por uma das partes (ou por vezes por nenhuma…) dependendo essencialmente de uma ética retrógrada e desadequada à nossa sociedade moderna. Estamos a «julgar» pessoas e a admitir a sua «culpa» (um sentimento judaico-cristão) apenas com o objectivo de ter uma resolução mais favorável no caso de um divórcio. Por outras palavras: quando as coisas correm mal numa relação, a primeira coisa em que se pensa é como se vai lixar o ex-cônjuge para se ficar com mais dinheiro no bolso…
E todas estas regras de uma «moralidade» da Idade Média, que em nada corresponde à nossa, são usadas como pretexto para poder «sacar» mais dinheiro ao ex-cônjuge… digamos que é uma espécie de vingança! «Lixaste-me a vida, agora fico com o teu dinheiro» Não admira, pois, que em países calmos e pacíficos como Portugal, a quase totalidade dos homicídios provenham sempre dos chamados «crimes de paixão» — sejam cônjuges a matarem-se uns aos outros, ou a matar os «amantes» do cônjuge, ou, após divórcio, «vingar-se» de decisões em tribunal que não foram bem aceites por uma das partes, ou filhos que cometem patricídio (ou matam os amantes dos pais…)… enfim, a lista é longa, sim, mas a verdade é que essa é uma das principais razões para os homicídios em Portugal.
Isto tudo, a meu ver, porque se está a tentar «impôr» demasiado a uma relação, que deveria ser pura e simplesmente o reconhecimento legal de co-habitação, com direitos e deveres não moralistas mas sim funcionais de acordo com a necessidade de manutenção (essencialmente financeira) da «família», e regras para gerir o património comum após dissolução do contrato.
Ocorrem-me aqui duas ideias. A primeira vem de um livro qualquer de ficção científica que li já não sei quando, e que propunha uma solução curiosa: os contratos de casamento duravam um número fixo de anos, normalmente dez, ao fim dos quais se dissolviam automaticamente, e os contratos aplicavam-se a um número indeterminado de pessoas, independentemente do seu género. As partes, se assim o entendessem, poderiam sempre renovar o contrato por mais X anos (todas as partes teriam de estar de acordo)
A ideia da «dissolução automática» do casamento ao fim de X anos tinha essencialmente a ver com a noção de que o casamento, hoje em dia, não é para a vida — porque simplesmente a ética, a moralidade, os valores mudaram completamente. No livro, o autor assumia que, ao fim de X anos, as pessoas já se conhecem muito bem, e ou estão cansadas umas da outras (e nesse caso basta esperarem pelo término do contrato para estarem livres de celebrar contrato com outras pessoas), ou então acham que podem facilmente viver juntas mais X anos, ou ainda estão dispostas a continuar a celebrar o contrato de casamento com algumas, mas não com todas as partes — havendo sempre aquela noção que «nada é permanente». Todos os cônjuges, pois, naturalmente tomam previdências para a sua sobrevivência pessoal após o término automático do casamento.
Era uma ideia interessante 🙂 Mas mais curiosa que isso — e que é uma situação real, não ficcionada — é a noção do casamento budista. Nos países onde o budismo é a religião/filosofia principal, tecnicamente não existe «casamento», da forma como é entendido por outras religiões. Os cônjuges pura e simplesmente trocam votos auspiciosos entre si. Mas mesmo isto não é nada de especial, porque os budistas, regra geral, estão constantemente a trocar votos auspiciosos com outras pessoas — faz parte do treino. Isto foi particularmente curioso quando o meu professor de meditação foi abordado por um antigo aluno, que lhe pediu se não podia «celebrar um casamento budista» entre ele e a futura esposa. O professor ficou um pouco confuso, pois tal coisa não existe. Explicou-lhe, pois, que os budistas apenas trocam votos entre si; claro que podiam fazer isso de uma forma mais formal, frente a um professor de meditação, que por sua vez também lhes fará votos auspiciosos, mas… enfim, no fundo, não passou mais do que uma «encenação» frente aos familiares. Não deixou de ser uma cerimónia, no sentido de haver alguma ritualização (há sempre formas visualmente mais ou menos atraentes de fazer certas práticas budistas), mas não no sentido das outras religiões, onde é suposto haver um envolvimento maior entre os noivos que é supervisionado por uma autoridade «superior» (que pode ser um deus, ou, nos casos laicos, as leis de um Estado…).
No budismo tradicional não existe nada disso. No entanto, é claro que nos países tradicionalmente budistas também existem situações de resolução de partilhas, de problemas com o património, com a educação das crianças, com o abandono do lar, etc. Para isso existe, para todos os efeitos, uma espécie de contrato entre as partes, que determina os direitos e deveres de ambos. Do que sei, esse «contrato» é uma introdução recente nessas sociedades; dantes era tudo resolvido dentro da própria comunidade, eventualmente com alguma arbitragem, mas basicamente o que existia era tradição — e não propriamente legislação.
Nalgumas tradições budistas (mas não todas!) até seria estranha a noção de que a moralidade fosse, de alguma forma, decretada. Os budistas, é certo, são encorajados a não cometerem o que no Ocidente seria chamado de adultério. Mas não o fazem porque há alguma «autoridade» que decrete que o adultério é proibido. Nem é porque tenham medo do karma, ou de um renascimento menos auspicioso, ou porque tenham receio que apareçam budas e bodhisattvas à sua frente a castigá-lo de alguma forma (nada disto é na realidade possível no budismo, claro está, mas as pessoas são supersticiosas em todo o mundo…). Não, essencialmente, um budista não comete adultério porque sabe que isso vai tornar infeliz o cônjuge. Em casos excepcionais, claro está, um cônjuge que tenha uma mente muito aberta, e não ligue grandemente com quem o/a parceiro/a tenha relações, então não existe absolutamente nenhuma regra a «proibir» as relações extra-conjugais — se ninguém ficar infeliz com a situação, então não há problema algum! É por isso (e não só…) que não faz sentido colocar uma «regra» de proibição de adultério num contrato de casamento — para um budista da tradição Mahayana, este fará já um voto para si mesmo (e não para terceiros, ou para deuses, ou budas, ou professores, ou quem quer que seja) de não cometer actos sexuais impróprios. Um acto sexual impróprio é simplesmente um acto sexual que faça alguém infeliz. Inclui-se aqui, pois, tudo, desde a pedofilia, passando pelo bestialismo (os animais de certeza que não ficam contentes por estarem a ser penetrados por humanos…), até, claro, o sexo extra-conjugal. Agora o reverso do voto também é verdade: todas as relações sexuais que façam todas as partes felizes e satisfeitas são próprias e devem ser encorajadas. Se cada um dos cônjuges quiser manter um harém, e ambos estão satisfeitos com essa situação, então não há problema algum. O equivalente à palavra adultério é apenas mencionado na doutrina para explicar que, na maioria das situações, as pessoas que tenham muito apego aos seus companheiros(as), se estes tiverem relações com terceiros, vão-se sentir muito infelizes, ou ficar com ciúmes, ou serem mesmo acometidos de ataques de raiva. Para evitar que isto aconteça, claro — ou seja, para evitar que o sexo extra-conjugal seja uma forma de prazer que apenas favoreça umas pessoas, mas que prejudique terceiros — é que se menciona o assunto. A esmagadora maioria das pessoas têm, de facto, muito apego aos seus companheiros(as), daí ser legítimo esta advertência; de qualquer das formas, o treino de um budista é livrar-se do apego, coisa que faz sempre muita confusão quando ouvida por um casal que gosta muito um do outro — então para se ser budista têm de deixar de gostar um do outro? Pacientemente, um bom professor de meditação explicará que obviamente que não, se o budismo é uma filosofia de vida que promove a felicidade e o bem-estar, como poderá criticar que duas pessoas gostem uma da outra? A diferença está entre gostar e ter apego. Talvez o melhor exemplo de apego sejam as relações co-dependentes, em que ambas as partes se sujeitam a situações desagradáveis, de forma perfeitamente voluntária, apenas porque estar fora da relação é algo que, para elas, ainda é pior. Ora este tipo de relações é doentio e anormal, no sentido que devemos estar em relações com o objectivo de tornar a outra pessoa feliz; ambas, obviamente, deverão partilhar o mesmo sentimento, que no budismo se chama amor — o desejo de fazer a outra pessoa feliz! Não tem nada a ver com paixão… Obviamente que se é através da paixão que fazemos a outra pessoa feliz, então claro que isso é bem-vindo! O acto de viver em conjunto deve proporcionar, a ambos, todo o tipo de actividades e situações em que possam fazer a outra pessoa feliz; e evidentemente que, na cama, existem muitas oportunidades também para a felicidade mútua.
De notar que o budismo também não impõe nenhuma noção formal de que o casamento tem de ser entre duas pessoas de género oposto; na realidade, ao não «criar» nenhum casamento formal (do ponto de vista de rito, de cerimónia, de orientação moral…), essas indicações são omissas. Houve sociedades matriarcais onde se praticava a poliandria que eram budistas (hoje em dia, penso que restem poucos exemplos). Não há nenhuma «contradição» com a doutrina, porque esta não diz como deve ser feito o «casamento», excepto, claro está, que todos os cônjuges devem trocar votos auspiciosos entre si…
Enfim, mas divago… queria apenas dar dois exemplos, um da ficção científica (que poderemos criticar por ser apenas uma ideia mirabolante), e outro de uma tradição com 2500 anos que tem um sucesso considerável a criar sociedades mais ou menos estáveis (ou pelo menos tão estáveis como as restantes sociedades!). Em ambos os casos, há uma completa ruptura entre «as pessoas gostarem umas das outras» e «um contrato que regula a moralidade para além do património e demais questões financeiras». Da minha perspectiva, pois (e talvez influenciada também pelo facto de ser budista…), há uma quantidade enorme de regras e leis relativamente ao casamento civil que deviam, pura e simplesmente, ser cortadas. Aliás, a meu ver, essas leis só existem com o único propósito de ter os cônjuges à coca, vigiando-se um ao outro, para ver se não «quebram» uma das leis e depois… zás, divórcio em cima, e passa para cá todo o teu dinheiro!
Se todas essas leis (as que impôem «moralidade») fossem pura e simplesmente revogadas, teríamos um contrato de casamento civil bastante mais simples, e com o foco essencialmente apenas no que interessa ao Estado: regular e regulamentar os direitos e deveres civis (e não morais!) perante o Estado de uma unidade familiar que administra um património comum, e que tem (eventualmente) a seu cargo pessoas menores. São essas as únicas leis e regras que faz sentido regulamentar.
Colocar-se-á então a questão do divórcio neste modelo de casamento civil simplificado. É evidente que uma série de regras seriam possíveis para o litígio, como o caso de uma das partes não cumprir com os seus deveres (por exemplo, os deveres de sustentação da unidade económica familiar; ou o abandono unilateral, sem esclarecimento prévio, dessa unidade familiar, sem mais contribuir para a sua sustentação económica) ou com a lei geral (por exemplo, agredir fisicamente uma das outras partes), no caso em que esse não-cumprimento seja configurado como crime de acordo com o código penal. De resto, não faz sentido que o divórcio litigioso seja julgado como um crime (em que uma das partes, ou mesmo ambas, têm «culpa» formada, em especial nas questões relacionadas com comportamentos morais, e, como consequência, exista obrigação a compensação financeira à outra parte), mas sim como uma quebra de contrato de acordo com o código civil, que prefigura situações completamente diferentes. Para quem esteja a ler estas linhas e entre em pânico porque teme que isso significa não receber pensão de alimentos por causa de um marido que abandonou o lar, descansem: tais compensações financeiras estão naturalmente cobertas igualmente pelos regimes gerais de contratação — quando uma empresa não respeita um contrato com outra empresa, obviamente que existem compensações financeiras por uma das partes ter violado o contrato.
Além do mais, não se impede, de forma alguma, que as partes possam recorrer, também em tribunais cíveis, para pedir indemnizações adicionais relativamente à forma como foram tratadas. Vou tentar dar um exemplo de como isto funciona hoje em dia, e como eu proponho que as coisas passassem a funcionar.
Vejamos o caso mais simples: brigas em casa, mas que não passam de conversas mais ou menos agressivas, com a consequente disrupção da vida familiar. Os cônjuges insultam-se um ao outro, até que, por fim, um deles decide-se pelo divórcio.
Obviamente que isto vai depender muito dos advogados e testemunhas que cada parte tenha, mas, regra geral, poderão invocar a disrupção de vida familiar, o não dormirem juntos, não tomarem as refeições juntos, o stress criado pelas constantes zaragatas, as más influências sobre as crianças, etc. como pretexto para um divórcio litigioso, cabendo o ónus da prova a quem pede o divórcio, e acusando a outra parte de toda a culpa. Se a outra parte conseguir, por sua vez, fazer prova de que quem começa as discussões é a parte que está a pedir o divórcio, então este caso pode arrastar-se em tribunal, passar por várias instâncias, etc. — com os consequentes custos. De notar que isto decorre em tribunal de família, o que pode ser mais rápido, mas não devemos esquecer-nos que, enquanto o processo decorre, existe a questão das crianças, de quem paga o quê na casa, e assim por diante.
Com a minha proposta, este caso seria muito mais simples. Não havendo nenhum crime — nenhuma das partes agrediu a outra — não há nenhuma forma de fazer um divórcio litigioso; ambas as partes terão de concordar em dissolver o contrato de casamento de mútuo acordo, um processo que é muito rápido e comparativamente muito menos oneroso, e onde, obviamente, não existe a noção de «culpa». Pura e simplesmente ambas as partes pretendem cessar o contrato de casamento, entrando imediatamente em vigor os processos relativos à partilha de bens, divisão das eventuais dívidas, direitos de acesso às crianças, e assim por diante. Depois poderão processar-se mutuamente — mas agora noutro tribunal, o cível — para obter potenciais indeminizações por ofensas pessoais, criação de stress por mau comportamento em casa, má influência sobre as crianças, e assim por diante. Este processo poderá levar anos e anos, e terá muito menos prioridade que os processos em tribunal de família. Ou seja: apesar da semelhança dos dois casos, no primeiro, através de considerações morais, há razão para anular um contrato de casamento, mas se este for litigioso, significa que pode levar mais tempo até estar a situação resolvida. Com a minha proposta, a questão relativa ao contrato de casamento propriamente dito fica instantaneamente resolvida. Tratando-se de um contrato que não especifica qualquer «moralidade» — e assumindo que ambas as partes têm cumprido com a sua parte de sustentação económica da unidade familiar — quaisquer questões morais estão fora do âmbito da discussão. Regra geral, pois, nestes casos todos, o casal não terá outro remédio senão anular o contrato de casamento por mútuo acordo (com efeitos imediatos) e depois, opcionalmente, continuar pela via do litígio a infernizarem-se mutuamente, se assim o entenderem. Mas a questão do casamento fica resolvida, ambas as partes podem celebrar novo contrato de casamento com terceiros, e fazer a sua vida «normal» sem o ónus de terem de estar «agarrados» a um casamento que já não pretendem.
Evidentemente que há um senão, que é quando uma das partes se quer divorciar mas a outra não. Aqui, como em qualquer outro contrato, quando há uma quebra unilateral de contrato, existem penalizações — uma compensação financeira, por exemplo. Da mesma forma, como anteriormente, pode continuar a haver processos em tribunal para pedido de indemnizações. No entanto, poder-se-á dizer que nesta situação podem criar-se situações injustas: por exemplo, um caso clássico em que o marido faz a vida negra à mulher (mas sem nunca lhe bater), e esta deseja o divórcio, mas o marido não; segundo a minha proposta, a mulher poderia realmente quebrar unilateralmente o contrato de casamento (e repare-se que isto não obrigaria, como hoje em dia, a um processo em tribunal, mas podia ser apenas uma questão administrativa), mas seria obrigada a cumprir com as cláusulas indemnizatórias previstas no contrato. Depois, em processo a decorrer no cível, poderia expôr o seu caso e pedir ao tribunal a restituição de eventuais pagamentos e uma quantia a título de indemnização por ter sido sujeita a abusos verbais durante anos, etc. Ou seja: neste caso, a vítima teria de pagar primeiro, e só depois de um processo complicado é que veria (eventualmente) a restituição do dinheiro.
Daí a tal ideia dos «contratos de casamento a prazo». Pessoalmente acho que dez anos até é tempo demais! Eu propunha justamente um contrato de casamento a apenas um ano, sendo automaticamente revalidado por mais um ano, a não ser que uma das partes denuncie o contrato. Esta situação é um meio-termo: significa isto que, no pior dos casos, se uma das partes se sentir prejudicada, pode simplesmente não revalidar o contrato de casamento, e este fica imediatamente sem efeito na próxima renovação. Ou seja: no pior dos casos, terá de esperar um ano, para poder abandonar o casamento sem pagar quaisquer cláusulas indemnizatórias; e para além disso, claro está, pode sempre continuar a processar o ex-cônjuge por abusos à integridade moral, por stress, etc.
A ideia de «contrato de casamento a prazo» (especialmente se o prazo for muito curto!) é engraçada, especialmente porque também significa que ambas as partes terão de se esforçar por «portar bem» — caso contrário, uma das partes poderá não revalidar o contrato 🙂 Acho que isto obrigaria muita gente a pensar duas vezes antes de começar uma enorme zaragata em casa… Por outro lado, também significa uma certa dose de alívio, porque se alguma coisa correr mesmo mal, no pior do pior dos casos, ao fim de 365 dias, o contrato de casamento fica sem efeito — e isto tudo por processos administrativos, não jurídicos, pelo que podem ser bastante expeditos.
Penso que a maior objecção aqui que se coloca é esta questão do «procedimento administrativo expedito». Então e a trabalheira toda que é listar os bens do casal, saber a quem se atribui o quê, e quem indemniza quem, quem fica a pagar alimentos, quem sustenta as crianças?… Com divórcios assim tão a curto prazo, isto não se tornaria completamente impossível de gerir?
Pasmem-se. Em Portugal, por cada 100 casamentos anuais, há 70 divórcios. E isto melhorou um bocadinho: no pico da crise financeira, em 2011, chegou aos 74. Em termos de comparação, em 1960, por cada 100 casamentos, havia apenas um divórcio. Os tempos mudaram completamente — mesmo tendo em conta que o Estado Novo limitava imenso a forma como ocorriam os divórcios, a verdade é que por volta de 1980, em plena democracia, os divórcios não atingiam os 10% de casamentos. E, em média, um casamento em Portugal não dura mais do que 14 anos e meio (no Reino Unido, apenas 11), havendo porém alguma flutuação deste valor durante os períodos de crise.
Lembro-me perfeitamente de ter assitido a várias conversas e debates online na viragem do milénio, em que se falava que «em breve» metade dos casamentos terminariam em divórcio, e que eram sinais bem claros de uma mudança total de mentalidade. Pouco tempo depois — uma década — chegavam-se aos ¾ de casos, não apenas metade… e se é certo que o número de divórcios diminui ligeiramente, também os casamentos têm estado em queda livre, o que contribui para esta tendência de haver cada vez menos casamentos e cada vez mais divórcios (é só nos casamentos entre pessoas do mesmo sexo que o número tem aumentado progressivamente, mas representam, para já, apenas 1% dos casamentos em Portugal). Curiosamente, ou talvez não, a taxa de divórcios, desde que a nova constituição entrou em vigor em 1976, tem sido sempre superior em matrimónios celebrados pela Igreja Católica do que em casamentos feitos no registo civil…
O que quer isto dizer? Essencialmente que temos que aceitar que a probabilidade de um casamento terminar em divórcio é, hoje em dia, extremamente elevada — e que, ao contrário do que se poderia eventualmente pensar, o facto do matrimónio religioso celebrado pela Igreja Católica impôr um «parceiro para a vida», assim como regras vastas de moralidade, não impede, de todo, que se divorciem mais católicos do que não-católicos. Deve-se, pois, entender que o divórcio é a regra e não a excepção, ao contrário do que acontecia na sociedade até recentemente. De nada serve a imposição da religião, porque os Portugueses já não são religiosos (excepto por «tradição» — eventualmente podem ser «simpatizantes» da Igreja Católica, mas são muito, muito poucos os que acreditam convictamente nos preceitos católicos e que os seguem escrupulosamente de acordo com a sua fé). Mas também de pouco servem as imposições morais ou moralizantes colocadas no Código Civil em relação aos casamentos e divórcios, porque as estatísticas mostram bem claramente que as pessoas pura e simplesmente não as seguem — na sua esmagadora maioria. Se não tivessemos estatísticas tão claras, poder-se-ia ainda sugerir que o facto de existir uma postura moralizante na lei evita que as pessoas se divorciem com tanta facilidade; mas claramente não é esse o caso. Não há, pois, nenhuma razão lógica e racional, baseada em factos (neste caso estatísticos) que indiquem que é a «moralidade imposta pelo Estado» (já não falando sequer na Igreja…) que contribua para uma redução da taxa de divórcio e para um aumento do tempo dos casamentos. Os números desmentem esta hipótese completamente.
Logo, o que faz sentido é «limpar» completamente de toda a «moralidade» o casamento civil.
Evidentemente que o matrimónio religioso é outra conversa. Quem se quiser submeter aos preceitos da Igreja Católica (só para dar um exemplo) para ter direito a uma cerimónia bonita numa igreja, terá naturalmente de se sujeitar ao que esses preceitos ditam, a nível do Código Canônico. São trade-offs — casar pela Igreja tem cerimónias mais bonitas, em locais mais agradáveis, e depois do casamento vêm os baptizados, as confirmações, e assim por diante. É tudo muito bonito e tradicional, mas vem com um preço: as regras são outras. E há que respeitá-las, senão perde-se o «direito» a frequentar estes espaços bonitos e agradáveis. Mas a escolha é naturalmente de cada um: ou têm uma moralidade «imposta», que é ditada por terceiros, mas que trazem consigo uma série de contrapartidas e vantagens; ou a moralidade é algo que desenvolvemos interiormente, com a convicção que certos comportamentos são preferíveis a outros não porque nos dizem que assim é, mas porque fazemos pessoas felizes ou infelizes dependendo dos comportamentos que adoptamos — e, sendo assim, não precisamos que nos digam o que fazer, pois aprendemos nós próprios a fazer o que é correcto, e, nesse caso, não faz sentido ser-nos «imposta» uma moralidade básica a nível do Estado, quando o único objectivo é de levar uma vida a dois.
Ora esta longuíssima dissertação sobre o casamento só tem um objectivo, que é «encaixar» isto na questão da sexualidade de certas pessoas transgénero. E aqui tenho só a agradecer ao meu amigo Libertino, que me fez olhar para esta questão de uma forma completamente diferente. Deva-se dizer, a título de disclaimer, que o Libertino é poliamoroso, orientação essa que, infelizmente, sofre de enorme discriminação em Portugal pelo simples facto de que é confundido, por um lado, com a poligamia; e por outro lado, confundido com o adultério, que, embora não seja um crime (como já expliquei), ainda é causa para quebrar um casamento civil. Talvez seja bom ler um pouco sobre o assunto antes de comentar!
Infelizmente a lei portuguesa (e a maior parte das leis dos países ocidentais) não é compatível com relações poliamorosas (pois determina que o casamento civil só possa ser entre duas pessoas), o que significa que as relações poliamorosas têm de ser sempre feitas à margem da lei. Isto por si só não é grave — nada impede que essas relações existam — mas se houver questões de heranças, crianças que nascem fora do casamento legal, pensões de alimentos, etc. tudo se complica desnecessariamente.
No artigo em inglês que referi há dois parágrafos há uma imagem bastante clara que exemplifica porque é que as nossas leis estão todas erradas — mas que, ainda por cima, são hipócritas. O exemplo que dão é de um homem legalmente casado, que todas as semanas vai ter relações com outras pessoas, eventualmente até com o conhecimento da mulher (pouco interessa do ponto de vista legal), e que tem filhos de várias mulheres. Esta situação está perfeitamente regulamentada na lei — se lhe acontecer alguma coisa, as heranças são feitas de acordo com os filhos que teve, etc. Mas se todas estas pessoas se conhecerem mutuamente e quiserem viver juntas, educando as crianças em conjunto, submetendo o IRS em conjunto, dividindo entre si os abonos de família relativas à totalidade das crianças… não o podem fazer. Pelo menos não legalmente. E, ainda por cima, se houverem pessoas casadas no meio do grupo, estas podem alegar adultério para romper litigiosamente o casamento, criando todos os problemas associados que são conhecidos.
Não me vou estender mais nestas complexas relações entre legalidade, costumes, tradições, moral, ética — e a prática corrente. O que interessa, no fundo, é abolir completamente a noção de que uma pessoa bi-género (para pegar num exemplo mais clássico) esteja impedida, moral e até legalmente, de estabelecer relações amorosas com duas pessoas, uma de acordo com a preferência de cada um dos géneros; mas mesmo as crossdressers MtF que não se identificam como sendo bi-género, e que se assumem como «maioritariamente heterosexuais», podem igualmente desejar ter um «namorado» que as faça sentir «completas» enquanto mulheres — algo que desesperadamente necessitam para manter o seu equilíbrio mental de uma forma saudável. Ora este tipo de relações infelizmente não é compatível com a sociedade que temos hoje em dia; e isto significa que todas estas pessoas não têm outro remédio senão estabelecer estas relações em segredo, escondidas da sociedade em geral, procurando jamais aparecer num local público onde possam ser «identificadas», pois tal poderia conduzir a um processo de divórcio litigioso contra elas, que seria profundamente oneroso.
Note-se que neste aspecto particular — o divórcio — a lei permite, de certa forma, que o juíz imponha uma moralidade às pessoas no processo. Não a sua própria moralidade — o acórdão do Supremo Tribunal, ao menos, deixou isto bem claro — mas sim a moralidade das pessoas do local onde ocorreram as relações extra-matrimoniais. Isto significa também que essa «moralidade» é diferente consoante o ponto do país onde se vive. Presumivelmente em certas cidades, por exemplo, as relações extra-conjugais podem ser mais toleradas do que noutros locais do país. Há uma certa tradição entre os empresários do Porto em terem as suas amantes em Braga — uma tradição que, hoje em dia, provavelmente a maior parte das pessoas dessas zonas negará veementemente. Mas será que pelo facto disto ser «tradição» permite uma maior «tolerância» por parte da justiça? Por outro lado, a zona do Príncipe Real é conhecida pela sua liberalidade (em termos de relações amorosas), pela sua simpatia pelas causas LGBT. Quer isto dizer que as pessoas poliamorosas podem estar umas com as outras sem temerem que um juíz as force a divorciarem-se por manterem relações extra-conjugais?
Há, pois, que rever toda esta legislação em torno do casamento civil. E mantenho a minha proposta — que o casamento civil esteja, a nível da legislação, completamente isento de «moralidade». Essa pode (ou não) fazer parte dos contratos pré-nupciais; ou pode fazer parte do matrimónio religioso contraído ao mesmo tempo que o casamento civil; mas do ponto de vista legal, vivendo nós num estado laico e secular, não deveria haver moralidade imposta pelo Estado.
Sendo o casamento «meramente um contrato» — apesar de ser um contrato complexo! — deveria igualmente ser permitido às partes contratualizarem as suas relações (para efeitos de pensões, heranças, responsabilidade muita, economia caseira, etc. etc. etc.) como muito bem entenderem. Limitar a unidade familiar a apenas «duas pessoas», como a lei o determina, é uma forma de discriminação: a monogamia, seja ela homosexual ou heterosexual, deveria ser uma opção e não uma imposição. Tal como o Estado não tem nada que impôr uma religião, uma filosofia, uma política, ou um clube de futebol aos seus cidadãos, também não devia impôr uma forma única e inflexível de constituição de uma unidade familiar. É preciso maior flexibilidade nesse aspecto.
E isto, claro, não se aplica apenas às pessoas transgénero; apesar desta medida as poder beneficiar directamente, o certo é que irá afectar — e beneficiar — toda a população. E, como tal, duvido que tal questão seja alguma vez abordada sem um referendo nacional, pois, em matéria de «moralidade» (e infelizmente «mexer» no casamento é sempre visto como «moralidade»…), os portugueses podem realmente ser chamados a dar a sua opinião num referendo. E, neste caso, duvido muito seriamente que alguma vez tal referendo consiga ter uma maioria de pessoas a votar a favor da substituição do casamento monógamo em favor de um contrato de casamento muito mais flexível. Serão precisas décadas de explicações ao público e de debate para alguma vez mudar as mentalidades. Por isso, de todas as propostas que aqui apresentei, penso que esta será a mais difícil de alguma vez vir a ser concretizada.
Quanto às restantes, quero apenas voltar a reafirmar que não são só as pessoas transexuais «clássicas» que necessitam de fazer valer os seus direitos a uma protecção e apoio «especiais» por parte do Estado. Também as restantes pessoas transgénero, de todos os tipos, merecem ter mais alguns direitos, ou pelo menos que estes, se existirem, devam ser melhor clarificados. Todas as pessoas trans, ou melhor, toda a gente no espectro LGBTQI+, precisa, claro, de ter muito maior divulgação pública, para que se explique o que é que está em jogo; mas é preciso igualmente que dentro do activismo trans seja reconhecido que existem muito mais pessoas para além das pessoas transexuais «clássicas» e que actualmente são colocadas à margem da defesa dos seus direitos, que também gostariam de reclamar.
Poder-se-á argumentar que a «culpa» é, na realidade, das próprias pessoas transgénero, pois não se organizam para reclamar os seus direitos. É verdade: se essas reivindicações não são tornadas públicas, mas se mantém ao nível da conversa de café, então será pouco provável que alguma vez sejam escutadas. É difícil esperar que sejam terceiros (as organizações LGBTQI+) a defender os direitos das pessoas transgénero — que nem sequer conhecem, pois, regra geral, raramente dão o rosto.
Mas infelizmente as pessoas transgénero estão demasiado divididas para se organizarem para reivindicar o que quer que seja — e por isso continuam condenadas ao esquecimento.