A transfobia evidentemente que toma muitas formas, das mais ligeiras às mais violentas (que incluem violência física e assassínio). No meu caso, felizmente, não foi nada disso. Não deixou de ser uma experiência que me chocou um pouco.
Como muitas de vocês sabem — pelo menos as que me conhecem pessoalmente — não tenho problema algum em perguntar a todo o tipo de lojas e estabelecimentos se têm algum problema que os frequentemos. Faço-o por uma questão de polidez, de educação, de cortesia; mesmo sabendo que, à partida, não necessito de «pedir autorização» (pois os direitos, liberdades e garantias da Constituição Portuguesa dão-me o direito de me vestir como muito bem quiser). No entanto, alguns espaços são privados (por exemplo, lojas, centros comerciais, restaurantes, cinemas…) e podem haver regras a restringir o acesso aos mesmos. Por exemplo, até recentemente, nos casinos os homens tinham pelo menos de levar casaco e gravata. Hoje em dia já ninguém se preocupa muito com isso, mas mesmo assim ainda se vêem restaurantes junto às praias onde o público é informado que não pode entrar de pés descalços e em fato de banho ou biquini. Não se trata de um acto discriminatório: trata-se de um direito que também é concedido aos espaços privados que podem seleccionar o tipo de público que os frequentam. O que têm é de afixar as normas da casa em local bem visível junto à porta.
Mas vamos à minha história de hoje. Estou a precisar de uns soutiens novos. É normal: estou mais gorda 🙂 Mas também há algum aumento de tamanho que é resultado de um misto de idade, massagem, e alguns cremes com fitohormonas que também contribuiram, de uma certa forma, para que os meus soutiens tenham encolhido — ou melhor, para que eu tenha aumentado de tamanho 😛
Normalmente compro os soutiens no mesmo sítio que as próteses mamárias, ou seja, na Amoena Portugal. Mas ultimamente tenho reparado que não me servem lá muito bem. Tem a ver com os formatos, os tamanhos, enfim, estou também à espera de novas colecções a ver se alguma coisa me fica melhor…
Entretanto, pensei que se calhar o que eu precisava mesmo era de uma consultoria em bra fitting, porque infelizmente quando se usam próteses mamárias, a maior parte dos modelos não servem — nunca cobrem completamente o topo das próteses — e são precisos soutiens de copa cheia, coisa que é cada vez mais raro de ser ver, pelo menos nas lojas dos chineses, na Primark, na H&M ou na C&A — ou seja, nas lojas baratuchas. Isto quer dizer que não há muito como escapar a triste realidade, que é ir às lojas mais caras…
Há uns quatro anos atrás, no fórum Espartilho, a Susaninha Barros fez um extensíssimo relato sobre a maravilhosa experiência que teve na Dama de Copas, provavelmente a loja de lingerie mais fantástica de Lisboa e Porto (e quiçá mesmo de Madrid!). A Dama de Copas também trabalha com próteses da Amoena, pelo que estão muito habituadas a fazer bra fitting a quem use próteses. E, claro está, havia esta recomendação fabulosa da Susaninha. Ora é verdade que a Dama de Copas não é barata, mas a Amoena também não é, e a Dama de Copas tem (pelo menos no site!) muito mais variedade. Finalmente, eles também organizam workshops de bra fitting — uma ideia gira, em que se juntam 3 a 5 amigas no espaço deles, e durante uma hora e meia recebem conselhos e podem, obviamente, adquirir as peças que experimentaram.
Por isso lá lhes telefonei hoje. Os horários deles são muito bons, e eu hoje, amanhã e sábado tinha hipótese de marcar uma sessão de fitting. Atendeu-me uma empregada extraordinariamente simpática e prestativa (fica o nome dela para referência: Rita), falámos um pouco sobre o que eu pretendia, e ela marcou-me para as 18h30, avisando-me no entanto que às vezes podiam haver alguns atrasos — as sessões de fitting levam mais ou menos 30-40 minutos, mas há sempre quem se entusiasme e que atrase… Eu não tinha problema algum, pois tinha grande parte da tarde/noite livre. A loja fecha às 20h e fica na Baixa, na Rua de Santa Justa, pelo que a localização também não era um problema (há sempre Metro 🙂 ). No final a Rita pediu desculpa se estava a ser mal educada, mas que estava com curiosidade porque nunca tinha tido uma cliente que não tivesse nascido mulher… eu comentei que não seria de certeza a primeira, mencionando-lhe justamente que há uns anos atrás já tinham ido algumas crossdressers à Dama de Copas, e que era daí que tinha excelentes recomendações da casa. Ela disse que não estava na casa desde o início, daí talvez nunca ter tido ocasião de fazer o bra fitting a alguém da comunidade transgénero, mas acrescentou que provavelmente estaria também na loja a essa hora e que talvez até fosse ela a fazer-me o bra fitting.
Até aqui tudo bem, fiquei toda contente, e após ter dado o meu contacto, lá fui à minha vida (no meu caso infelizmente isso quis dizer tratar de assuntos relacionados com o meu pai, que está no hospital… outra vez), mas meia hora depois, mais ou menos, estavam-me a ligar… da Dama de Copas!
Intrigada, lá atendi o telefone. Desta vez falei com alguém que se identificava como Teresa, visivelmente perturbada, que me pedia imensa desculpa mas não podiam aceitar a marcação para hoje. Eu disse que tudo bem, não havia problema, podia ser para amanhã à mesma hora, ou então no sábado — ou se preferissem, na semana que vem.
Houve um momento de hesitação, depois a dita Teresa pediu mais uma vez desculpa, mas não podiam aceitar nenhuma marcação minha em nenhuma hora.
Isto baralhou-me um pouco, e apenas me ocorreu dizer que a loja me tinha sido recomendada por pessoas transgénero que tinham sido extremamente bem atendidas e que estavam muito satisfeitas com os serviços prestados, pelo que não percebia muito bem qual era o problema…
Aí a Teresa explicou que, de facto, a início, quando a loja abriu, tinham uma política inclusiva e realmente tinham feito muitos bra fittings a crossdressers e outras pessoas transgénero. Mas entretanto a política da casa mudou e agora não aceitavam mais pessoas transgénero. Ainda afirmou que se tratava de «um espaço muito feminino» — e depois, compreendendo o lapso, rapidamente acrescentou que obviamente eu estaria a par disso, já que naturalmente sabia o que pretendia, enfim, mas seja como for, pedimos imensa desculpa, mas a política da casa não nos permite atender-lhe.
Terminei dizendo que estava muito espantada — era, de facto, uma situação inédita para mim, já que até agora nunca houve nenhum estabelecimento em Lisboa que nos recusasse ter como clientes — e que até tinha já recebido recomendações deles da própria Amoena Portugal, da qual sou cliente há seis anos, e com os quais a Dama de Copas trabalha desde que abriu as portas… evidentemente teria de avisar então a Amoena Portugal para não encaminhar mais clientes para a Dama de Copas, e que lamentava imenso essa alteração de política. Mas também achei que não valia a pena insistir no assunto.
Acredito que, no passado, tenham tido algum problema com alguém da comunidade transgénero — alguém que tenha causado distúrbios, ou que tenha feito uma encomenda (eles também enviam lingerie por correio, desde que já se seja cliente) e não tenha pago, enfim, ou que tenha havido uma cena desagradável ou embaraçosa qualquer… poderia especular durante horas, mas o certo é que não sei quais as razões para esta «alteração de políticas».
E note-se que essa alteração da política da casa nem sequer foi comunicada a todas as funcionárias da Dama de Copas. A referida Rita, que me atendeu primeiro ao telefone, claramente desconhecia essa alteração das regras da casa — e foi educada, cordial, simpática. Repare-se que a Teresa também foi extremamente cortês comigo; e, como disse, percebia-se que estava embaraçada com a situação. Mas… regras são regras, e as funcionárias só têm que as cumprir e não questioná-las…
Mas pronto, eis a minha primeira experiência de transfobia. Ao fim de tantos exemplos positivos — centros comerciais, lojas, boutiques, cabeleireiros e todo o tipo de esteticistas, maquilhadoras profissionais, bares, cinemas, teatros, até o Casino Lisboa… — em que nunca nos recusaram acesso (e quando perguntava antecipadamente por email se podíamos frequentar o espaço, nunca tive uma resposta negativa!), esta recusa da Dama de Copas foi uma real surpresa. Ainda esta semana tinha estado com uma amiga a passear no Centro Comercial Vasco da Gama, fomos à C&A e H&M, e ninguém nos incomodou ou comentou o que quer que fosse — pelo contrário, somos clientes como todas as outras, e não estamos ali para fazer cenas ou criar problemas, tudo o que queremos é adquirir os produtos e serviços do espaço onde vamos, mais nada.
Esta experiência mostrou-me que, afinal de contas, o meu optimismo desenfreado relativamente à ausência de transfobia no comércio lisboeta era uma ilusão — esta ainda continua a existir. Apenas tive sorte até agora.
Conclusão: risquem a Dama de Copas da vossa lista de espaços a visitar, pois pelos vistos só lá entram se tiverem um comprovativo de como vos foi atribuído o género feminino à nascença.
Entretanto vou experimentar a Bra & Company, que é uma concorrente mais recente da Dama de Copas. O conceito deles é um pouco diferente, e claro que não tem o mesmo aspecto (a loja é num edifício de escritórios entre o Saldanha e as Picoas, que conheço muito bem), mas vamos a ver o que me dizem…