O bode expiatório para a crise

Desta vez vou mudar um pouco de assunto, e falar sobre o meu outro fetiche: a arte de fumar. Bem sei que não é do agrado de todos, mas espero que me perdoem…

Não é fácil explicar para a maioria da população como é que o acto de fumar pode ser um fetiche. Afinal de contas, para essa maioria, fumar é apenas um vício horrível: como pode ser sensualmente (e até sexualmente) estimulante?

Mas os fetiches não se «explicam»: têm-se. Para quem encare o crossdressing como um fetiche, não é fácil de explicar porque é que é excitante vestir roupa de mulher — especialmente a um homem, heterosexual ou não, que nunca sentiu tal desejo. Nem é obviamente uma questão de dizer: «se experimentasses, ias ver que gostavas». Não é assim que as coisas funcionam!

Cada um de nós constrói as suas próprias percepções sobre o que gosta e o que não gosta. As coisas, por si só, são neutras. Se as coisas tivessem um valor intrínseco, então toda a gente gostava das mesmas coisas e odiava as mesmas. Mas isso não é assim. Posso adorar gelado de limão, daquele bem ácido, e dizer que é a melhor coisa do mundo, e elogiar e defender o sabor do gelado de limão. Por melhor que argumente que o gelado de limão é o melhor gelado do mundo, por mais estatísticas que faça a painéis de consumidores que comprovam matematicamente de que a maioria das pessoas gostam de gelado de limão, vai sempre haver gente que não gosta. A culpa não é do gelado de limão. Esse é neutro. As pessoas é que têm percepções diferentes.

Mas os nossos «gostos» também mudam. Por exemplo, quando provei a minha primeira cerveja, achei que tinha um gosto horrível. É normal: quando somos crianças, temos uma tendência a gostar de coisas doces, e a cerveja é horrivelmente amarga (em compensação, gostava de vinho, porque não é tão amargo, mesmo que não fosse tão doce como sumo de laranja, por exemplo). Muita gente, depois dessa primeira experiência com um gosto desagradável, nunca mais voltará a provar uma cerveja, e torcerá o nariz a quem diga que não haja nada melhor do que uma cerveja fresquinha acompanhada com uns tremoços. Um grande número de pessoas, no entanto, mudará a sua percepção relativamente à cerveja. Realmente as primeiras vão-lhes saber mal; depois aprendem a apreciar o sabor amargo, e rapidamente se esquecem de que não «nasceram» a gostar de cerveja, foi simplesmente o gosto que mudou — na sua percepção. A cerveja, essa, não mudou. O que mudou foi a atitude em relação à cerveja.

Isto obviamente ainda se complica mais. Se estamos a comer a nossa coisa favorita, digamos, um gelado de limão, e de repente toca o telemóvel e nos dão uma notícia de que morreu um familiar, ou de que a nossa casa foi assaltada — imediatamente esquecemos o gelado de limão. Até o podemos acabar, mas já não nos «sabe» a nada. Temos a nossa mente preocupada com outra coisa. Então até mesmo aquilo de que adoramos mais, pelo menos temporariamente, deixa de nos interessar. Se temos uma crise de fígado ou de vesícula, iremos reparar imediatamente que só o cheiro de fritos nos causa náuseas. Mas passa a crise e continuamos a adorar uns deliciosos croquetes a estalar, acabados de fritar.

Isto tudo só para dizer que não se podem «explicar» gostos e sabores. Nem sequer se pode falar de «sabores que estatisticamente as pessoas gostam/desgostam». Sem querer ofender ninguém, até os nossos próprios excrementos nos são «neutrais», mas os das outras pessoas cheiram sempre horrivelmente mal. Muitas pessoas, por exemplo, habituaram-se de tal forma ao cheiro do seu próprio suor que nem percebem que o odor é insuportável a terceiros. Tudo, pois, está dentro das nossas cabecinhas.

Por isso não posso explicar o desejo, a atracção, a compulsão que tenho por crossdressing, excepto a alguém que tenha o mesmo desejo — aí temos uma experiência em comum que podemos partilhar. Podemos falar, por exemplo, de como nos arrepia a pele de prazer quando sentimos o toque da seda ou da rendinha no corpo. Todas nós que partilhamos essa mesma percepção vamos concordar que a experiência é intensamente agradável, sensual, e mesmo erótica. Alguém que não seja crossdresser dirá que somos completamente loucas, porque a roupa feminina, por si só, não é nem «agradável» nem «sensual»: é apenas roupa. Não há na roupa interior feminina nenhuma propriedade mágica que a torne intensamente sensual. O que há, isso sim, é uma série de condicionamentos sociais e culturais que ligam um objecto prazenteiro — o corpo de uma mulher — à roupa interior feminina. E algumas pessoas reagem fortemente à roupa, evocando o desejo de «ser feminina» (e isto acontece para ambos os géneros!). Mas isto não é uma «explicação». Um soutien rendado, apresentado numa tribo na Amazónia que nunca viu TV e onde não se lê a Vogue não perceberá sequer para que serve. É pois inútil tentar «explicar» ou «convencer» alguém que não tenha o fetiche da roupa feminina aquilo que esta representa para nós, crossdressers.

O melhor que podemos fazer é explicar por analogias. Como esta sensação de intensidade de desejo, de erotismo, de prazer está presente em todas as pessoas, o que facilita a analogia é encontrar um exemplo em que exista uma base comum de sensações, mesmo que o objecto do desejo não seja o mesmo. Alguém com uma mente aberta e capacidade de correlação compreenderá o que sentimos, mesmo que não perceba o porquê de determinado objecto nos evocar essas sensações.

É assim que obviamente que não posso transmitir porque é que o acto de fumar é, para mim, um fetiche tão intenso. Afinal de contas, ir-me-ão dizer, o fumo do tabaco cheira horrivelmente mal, empesta a casa toda, e, para além disso, faz mal à saúde de mil e tal maneiras conhecidas e desconhecidas. Como pode o acto de fumar ser erótico, sensual, e despertar prazer?

Não posso, obviamente, explicar o porquê. Posso, isso sim, dizer que os primeiros cigarros que fumei eram tão amargos e malcheirosos como as primeiras cervejas que bebi. Para muita gente, essa é a razão principal para nunca na vida voltar a fumar (ou beber cerveja). Mas tal como as pessoas que insistem em continuar a beber cerveja (ou café, acaba por ser o mesmo) e se habituam ao gosto, passando primeiro por o achar «neutro» e depois, mais tarde, verdadeiramente agradável, precisamente o mesmo se passa com o tabaco. Não quero com isto «convencer» ninguém, é claro! Como disse e volto a repetir, há muitas pessoas que, por mais cervejas que bebam, nunca irão apreciar o sabor, porque essa apreciação está na cabeça, não na cerveja. Da mesma forma, muitas pessoas nunca apreciarão o sabor do tabaco, porque pura e simplesmente na sua cabeça o sabor nunca será agradável. Isto, obviamente, não posso influenciar. Posso, isso sim, dizer que para uma fumadora como eu, o cheiro do tabaco é tão intensamente prazenteiro, sensual, e erótico como para outra pessoa o é o cheiro de um perfume caro no corpo de uma mulher. Não estou com isto a dizer que isto é sempre assim para todas as pessoas. Estou, isso sim, a dizer que o conceito de fetiche, que torna uma coisa aparentemente não relacionada em prazenteira e erótica, é o mesmo para quem tem o fetiche, seja este as roupas femininas, os pés, os sapatos, o sado-masoquismo, as bebidas alcoólicas ou o tabaco.

Sei que é difícil de acreditar, porque a maior parte de nós tem um ou outro fetiche e compreende quem tem o mesmo fetiche. Todos os restantes são «aberrações». Mas a verdade é que é assim que todos pensamos: os meus fetiches são aceitáveis, os fetiches dos outros são aberrações!

Poder-se-á argumentar que certas pessoas não sabem que têm um fetiche antes de o experimentar. É verdade, mas é bem mais raro do que se pensa! É certo que uma crossdresser potencial (aquilo que dantes se chamava autoginecofilia), se nunca experimentar roupa de mulher, nunca descobrirá o fetiche que tem: com o contacto com o objecto do fetiche, se existir potencial, então este desenvolve-se. Para quem não tenha em si esse potencial, nunca desenvolverá os aspectos ligados ao prazer do mesmo, e é inútil tentar «persuadir» alguém do contrário. A atitude que devemos ter, numa sociedade tolerante e igualitária, é aceitar que todas as pessoas são diferentes, mas reagem ao prazer e à aversão de forma semelhante, embora os objectos que lhes causem prazer e aversão sejam muito diferentes. Não vale a pena, aos fetichistas, tentarem «convencer» os outros, por proselitismo, de que «nunca saberás se gostas se não experimentares». Isso não é verdade, mas os proselitistas acusam imediatamente aqueles que se recusam a experimentar aquilo que não gostam de serem pessoas de mentes fechadas, tacanhas, sem abertura de espírito. Esta atitude também não é correcta e só induz aversão aos fetichistas mais proselitistas.

Não vou, pois, de todo afirmar o prazer que se pode obter a fumar um cigarro, porque pelo menos 2/3 da população achará o que estou a dizer uma aberração, e não será por argumentação filosófica que lá irei. O prazer que sinto é irracional e, como tal, só pode ser partilhado com quem tenha a mesma experiência. Posso, no entanto, explicar algumas coisas muito superficiais, que não servem realmente de «explicação». Por exemplo, posso explicar que, associado ao acto de fumar, existem uma série de gestos e costumes que são culturalmente condicionados, e que as mulheres fumam (ou fumavam) de forma diferente dos homens. Como a linguagem corporal é importante — há quem diga que é a coisa mais importante: lá está, outro tipo de coisa que não se pode «explicar», apenas partilhar com quem tenha a mesma experiência de prazer — então, para mim, e para todas as fetichistas da arte de fumar, o acto de fumar é igualmente carregado de forte conotação erótica por estar associado a gestos e comportamentos femininos. Podia ir mais longe na analogia e procurar identificar mais elementos na linguagem corporal feminina que a maioria dos homens, crossdressers ou não, irá apreciar, porque são social e culturalmente condicionados: por exemplo, a forma de andar sobre saltos altos, a forma de mexer no cabelo, a forma como os braços se mexem, a forma como se cruzam as pernas como se está sentada, e assim por diante. Por si só, esses «movimentos» não têm nenhuma carga erótica associada. Mas são culturalmente determinados e, na maioria dos casos, tendem a provocar respostas eróticas naqueles que apreciam esse tipo de linguagem corporal. Nalguns países do Oriente, por exemplo, uma mulher que timidamente recuse erguer o olhar para um homem e que mantenha os olhos fixos no chão e a cabeça baixa é considerado incrivelmente erótico. No Ocidente, regra geral, gostamos de olhares provocadores. São coisas culturalmente condicionadas, mas não é por isso que não nos causam prazer.

Posso, pois, argumentar que todos os gestos associados ao acto de fumar, executado por uma mulher, fazem igualmente parte daquilo que, nos fetichistas da arte de fumar, é considerado erótico e sensual. Quem odeie o tabaco e os seus fumadores claro que discordará. Mas talvez consiga pelo menos compreender que «gestos» e linguagem corporal, para a maioria das pessoas, fazem parte da experiência de sensualidade — embora evidentemente essa experiência seja despoletada de forma diferente (nem todos os gestos são sensuais para todas as pessoas, embora haja uma experiência comum, socialmente condicionada). E talvez também consiga compreender que o cheiro e o sabor do tabaco, que para a maioria das pessoas é intensamente desagradável, é tão prazenteiro para um fumador como a cerveja ou o café — essas bebidas incrivelmente amargas e de cheiro intenso — são para a maioria das pessoas.

Se se conseguisse estabelecer estes dois pontos de forma racional na mente da maioria das pessoas, não haveria tanto preconceito contra os fumadores.

Afinal de contas, há três linhas de preconceitos em torno do acto de fumar. O primeiro tem a ver justamente com o cheiro, desagradável para a maioria das pessoas. Isso, infelizmente, é difícil de evitar. Os cigarros electrónicos, como não queimam tabaco — apenas injectam gotículas minúsculas em aerosol em cima de vapor de água, que não tem cheiro — são a única solução para o problema do cheiro, e não é por acaso que começam a ser cada vez mais populares (especialmente por serem mais baratos; lá iremos). No entanto não é bem a mesma coisa. É a diferença de uma cerveja genuina de um panaché em que se dilui cerveja em gasosa, tirando-lhe o sabor e o álcool. Mas digamos que é algo em que não se pode esperar «tolerância» relativamente ao cheiro, já que este é uma experiência pessoal que não pode ser argumentada. Pode-se fazer o que se faz hoje em dia: separar os espaços dos fumadores dos não-fumadores, e é o melhor que se consegue.

A segunda linha de preconceitos foi muito habilmente manipulada pela propaganda anti-tabagista, e resume-se simplesmente a dizer que o tabaco faz mal à saúde e que os fumadores são um peso no Serviço Nacional de Saúde. Ambas as afirmações são completamente verdadeiras. É certo que o consumo de tabaco tem resultados diferentes em pessoas diferentes, mas, estatisticamente, está mais que comprovado que os fumadores adoecem mais depressa e com doenças mais graves do que os não-fumadores, pelo que, pelo prazer de fumarem, são um «peso» no SNS.

A manipulação nas mentes das pessoas está em fazê-las crer que, comparativamente, o tabaco é o «maior dos males» que pesa na saúde pública. Em certa medida, eu até gostava que isso fosse verdade: significava que poderíamos resolver o problema dos custos da saúde pública muito facilmente! Infelizmente, a realidade é que o tabagismo é apenas uma muito pequena parte dos problemas que as pessoas inflingem a si próprias e que têm um peso sobre os custos da saúde pública. Hoje em dia, a principal causa de morte em Portugal está correlacionada com o colesterol — mas apesar dos avisos, não há legislação que controle os produtos com elevado colesterol. O café e outros estimulantes socialmente aceitáveis (ao contrário do tabaco, que o deixou de ser) continuam a contribuir fortemente para o aumento da tensão cardíaca e dos problemas hepáticos, mas imaginem um país onde fosse proibido beber café excepto em zonas muito restritas, e onde o preço da bica tivesse impostos de 70-80% sobre o seu custo de produção para pagar as despesas que o Estado tem no tratamento das doenças dos cafeínodependentes. Imaginem impostos de 70-80% sobre todos os produtos com gordura — desde o McDonalds aos croquetes vendidos nos supermercados — só com o pretexto de que fazem muito mal à saúde e que o Estado tem um custo elevadíssimo pelo facto das pessoas consumirem esses produtos. Devo mesmo dizer que, por exemplo, para quem não goste de café ou de fritos, os respectivos cheiros são também altamente desagradáveis!

Já nem sequer falando no álcool, que merece um capítulo à parte, pois o Estado, para além de suportar os custos dos tratamentos de quem sofre doenças terminais devido ao excesso de consumo de álcool, ainda tem de suportar os custos das clínicas de desintoxicação alcoólica, para além da criminalidade e violência doméstica causada pelos alcoólatras. Ou seja, vendo bem as coisas, o tabaco é comparativamente inócuo. Ao contrário do álcool, que produz reacções diferentes em quem o consome, mas é normal surgir a supressão de certos mecanismos de auto-controlo (nomeadamente a possibilidade de ultrapassar as barreiras morais que nos auto-impomos), a nicotina é um moderador do comportamento — os fumadores, regra geral, são mais passivos e mais tolerantes, irritam-se menos, e são pessoas mais controladas. Isto não é para dizer que «fumar é bom» — claro que não é! Com a informação disponível sobre os malefícios do tabaco, só um louco é que afirmaria que fumar não é prejudicial à saúde! No entanto, é legítimo comparar os malefícios reais do tabaco com os malefícios «escondidos» de que «ninguém fala» (mas sobre os quais se publicam imensos estudos!) do álcool, das gorduras, dos fritos, do café, etc. De entre estes produtos todos, só o álcool — por ser o que apresenta também modificações substanciais ao comportamento que conduzem a um perigo para o próprio e para a sociedade — é que é taxado, a sua venda não é inteiramente livre, e a sua publicidade é restrita e controlada. Mesmo assim, é socialmente aceitável consumir álcool, e as taxas aplicadas são baixíssimas comparadas com o efeito pernicioso que tem sobre o indíviduo e a sociedade.

E finalmente há um terceiro argumento que é muito mais perverso e que é condicionado socialmente. É que os fumadores sentem prazer em fumar, e isto é inaceitável para uma sociedade ainda muito fortemente condicionada por uma moralidade assente numa religião que considera que o «prazer» é pecado e que deve ser suprimido para maior glória de Deus. É verdade que só 8 a 9% dos portugueses são católicos praticantes. Mas séculos de uma mentalidade de supressão do prazer produzem efeitos culturais que perduram bem para além da remoção da religiosidade. Serão necessárias incontáveis gerações de não-crentes para se abandonar a «crendice» de que o prazer é um Mal a abolir. Assim, uma grande maioria da população, mesmo que possa aceitar que hajam coisas que sejam mais prejudiciais à saúde do que o tabaco, e mesmo que concorde que hajam coisas que cheiram ainda pior, não conseguirão ultrapassar o preconceito de que há umas pessoas, os fumadores, que sentem genuino prazer no acto de fumar, enquanto que elas estão condenadas a ver «A Casa dos Segredos» ou a MTV, se quiserem ter algum prazer na vida. E isso é inaceitável para imensa gente, mesmo que não o admitam publicamente. Querem pura e simplesmente negar o prazer aos outros porque estão convencidas que o prazer é Mau, e, já que elas foram condicionadas socialmente a evitar o prazer, querem forçar todas as restantes a fazer o mesmo — pela via legislativa.

Ora este último ponto é para mim o mais importante, porque é o mais irracional de todos. É o único com o qual não se pode argumentar com estatísticas, medições e instrumentos científicos. Apesar de todos serem, em certa medida, condicionados social e culturalmente, a motivação de impedir que terceiros sintam prazer é muito mais profunda, vem de muito mais longe, e não é erradicável. Excepto, claro está, pela via legislativa, que proíba a discriminação de terceiros baseada em convicções morais e/ou religiosas — mesmo que os próprios não admitam que seja essa a verdadeira razão pela qual odeiam os fumadores. A saúde e o cheiro são só pretextos, pois são justificáveis cientificamente e, logo, não-refutáveis. A moralidade de supressão de prazer de terceiros não tem qualquer base racional ou lógica — baseia-se na inveja — e não é argumentável. Logo, usam-se pretextos racionais para explicar o que não é racional. E isto não vai mudar.

O problema é que recentemente se está a usar justamente este tipo de pretextos irracionais, usando uma lógica falaciosa assente em estatísticas, para começar uma nova ronda de discriminação contra os fumadores. O Governo parece querer aumentar em 30% o imposto do tabaco para ajudar a combater a crise. É importante ler aqui nas entrelinhas: depois das discussões em torno da TSU, que se seguiram à possibilidade de cortar os subsídios dos funcionários públicos, que foram declaradas de inconstitucionais por discriminarem uma minoria, o Governo andou a pensar onde encontrar um bode expiatório. E encontrou a «vítima» ideal. Tal como na Alemanha nazi, em que foi fácil montar uma máquina de propaganda contra uma minoria que, à partida, já toda a gente detestava — o anti-semitismo não foi uma «invenção» nazi, já estava muito bem enraizada na população da maior parte da Europa desde o final do século XIX — o Governo chegou à conclusão que os fumadores são o grupo ideal para discriminar. A esmagadora maioria dos cidadãos portugueses detesta os fumadores. É muito fácil argumentar que são um fardo para a sociedade. Logo, devem ser discriminados por serem umas criaturas horríveis, que ainda por cima andam por aí a sentir prazer no meio de uma crise que devia trazer mas é infelicidade e sofrimento para todos. Sabendo-se ainda por cima que os fumadores, devido aos efeitos moderadores de comportamento da nicotina, são o grupo que menos protesta, combina-se o útil ao agradável, e em vez de serem «os ricos a pagar a crise», passam a ser «os fumadores que paguem a crise»!

O ridículo é que a medida discriminatória — e é discriminação taxar apenas alguns portugueses, segundo o entendimento do Tribunal Constititucional, que, no entanto, tendo uma maioria de não-fumadores na sua composição, não verá problema nenhum com esta medida — nem sequer vai surtir efeito algum, excepto, pelo contrário, agravar a situação. Os economistas fizeram as contas e o aumento de impostos sobre o tabaco só vai reduzir mais o consumo, logo, vai diminuir a colecta de impostos — e, a curto prazo, nem sequer vai ter qualquer impacto nos custos do Serviço Nacional de Saúde.

Se isto é sabido a priori, então porque é que o Governo anuncia este tipo de medidas à mesma?

Porque é uma medida que tem grande impacto mediático. Dizer que Portugal está, aos poucos, a exterminar os fumadores, é bem visto em todo o mundo. Dizer que se encontrou uma medida para a crise, que é discriminar uma classe de portugueses odiada por todos, mas que nunca protesta, será louvado nos media de todo o mundo. Dizer que se está a acabar progressivamente com um peso sobre o Serviço Nacional de Saúde será elogiado por uma esmagadora maioria de pessoas. Se o Governo dissesse que iria esmagar com impostos toda a gente que fumasse para depois até diminuir o preço dos medicamentos e das taxas moderadoras, teria a população em peso na rua a aplaudir de pé.

Parece ridículo, mas não é. Hitler disse precisamente os mesmos em relação aos judeus, e foi realmente aplaudido de pé por uma população que não era, na realidade, assim tão «radical» como normalmente se julga. A esmagadora maioria dos alemães era pacífica, moderada, tolerante, até conservadora, e temia os nacionais-socialistas. Mas apresentaram-lhes argumentos muito convincentes para a progressiva eliminação dos judeus: primeiro, o dinheiro que seria roubado pelo Estado aos judeus poderia ser empregue para dar trabalho a todos. Depois, os próprios judeus, presos e forçados a trabalho não remunerado (escravatura), libertariam ainda mais empregos. Mas mais importante do que isso foi encontrar um bode expiatório conveniente, uma minoria da população que, à partida, já era odiada por todos, e que, ao discriminá-los, se apresentava como uma solução para a crise durante a Grande Depressão.

Ora é evidente que nem sequer este governo está a pensar em colocar os fumadores em campos de concentração e despojá-los dos seus bens. Não é preciso de ir a esses extremos! Mas basta subtilmente instilar o ódio contra os fumadores, dando a indicação que é por causa do seu vício horrível que estão a prejudicar a retoma económica e a manter os preços de acesso ao Serviço Nacional de Saúde elevados, que a população estará fortemente a favor deste tipo de medidas discriminatórias. Nem o Tribunal Constitucional irá mexer uma palha para defender os fumadores, nem mesmo apesar das medidas em estudo não terem qualquer fundamento lógico do ponto de vista económico.

Os fumadores, por definição, não têm direitos. Talvez tenham o direito a alguma compaixão, mas é só isso que «merecem», e, mesmo assim, a maioria da população prefere reservar o seu ódio para com os fumadores, e deixar a compaixão para aqueles que não fumam.

Parece que se encontrou finalmente um bode expiatório que conduza ao fim da crise. Infelizmente, dado o ódio generalizado da população contra os fumadores, e a atitude em geral passiva destes — porque são calmos e pacíficos e toleram tudo que lhes façam — esta medida irá de certeza passar, sem quaisquer protestos, sem ninguém que peça justiça. Os únicos que protestam, é óbvio, são as tabaqueiras e os comerciantes de tabaco: mas como estes «fazem parte do problema» são evidentemente descartados pela opinião pública, que pouco interesse tem sobre o que digam, independentemente da sua argumentação ser lógica ou não.

Ora eu não acho que os fumadores não devam também contribuir para acabar com a crise. Pelo contrário, somos cidadãos como os outros, e é legítimo que façamos a mesma contribuição que os outros. No entanto, por uma questão de justiça social, reclamo as mesmas medidas para os consumidores de produtos ricos em colestrol, de café, e, principalmente, de álcool. Duvido sinceramente que taxando apenas os fumadores se irá resolver a crise económica. Mas se os mesmos impostos que são aplicados sobre o tabaco (e a gasolina!) fossem aplicados a todos os produtos que fazem mal à saúde (e/ou que cheiram mal!), então sim, acredito que se pudesse fazer alguma diferença,

No pior dos casos, seria uma medida igualitária e justa, que afectaria toda a população — excepto talvez alguns vegans ou ascetas — e que, por uma questão de princípio e com respeito pela constituição portuguesa que proíbe a discriminação, seria um exemplo de democracia.

Mas mais justo ainda seria obviamente reconhecer que aplicar taxas àqueles que sentem prazer com o que fazem é meramente uma questão de inveja enraizada numa moralidade religiosa, mesmo que não seja formalmente assumida como tal. Isso, sim, seria um avanço social muito mais importante: o de reconhecer que as pessoas têm o direito a serem felizes, mesmo que temporariamente, através de pequenas coisas que lhes dão prazer, e que não devem ser prejudicadas ou discriminadas por isso.

Infelizmente, o caminho que esta nossa sociedade está a tomar é no sentido de mais discriminação e menos tolerância, mesmo que apregoe justamente o contrário…

%d