No passado dia 6 de Janeiro, Sua Excelência o Presidente da República Aníbal Cavaco Silva achou por bem vetar a lei de alteração simplificada do se_xo e nome dos cidadãos transgénero. Tinha referido esta lei quando ela foi discutida na Assembleia da República, sendo aprovada por maioria pouco depois — uma maioria que reuniu a esquerda mas também alguns deputados do PSD que tiveram liberdade de voto. Na altura confesso que estava muito contente por ver este país, aos poucos, a modernizar-se e até a dar o exemplo a outros países com sociedades muito mais tolerantes que a nossa neste aspecto: o de garantir o direito à identidade dos cidadãos.
Numa sociedade laica que protege os direitos dos cidadãos, independentemente das suas opções pessoais, género, religião, ideologia, etnia, cor da pele, e demais conceitos discriminatórios, é uma anomalia histórica existir ainda tanta dificuldade em deixar que os cidadãos adoptem a identidade que preferem. Podemos ser laicos, modernos, e democráticos, mas continuamos a levar às costas a nossa bagagem católica — mesmo que entre amigos a rejeitemos — que implica sempre gostarmos de dizer aos outros o que pensamos deles e impor-lhes normas e valores que não têm qualquer fundamento ou base racional. É difícil largar dois mil anos de costumes, valores, tradições, regras e normas sociais, impostas por sociedades históricas que nada têm a ver com a nossa. Cavaco Silva não conseguiu largar-se desse conjunto de normas e seguiu, mesmo que inconsciente, aquilo que o Vaticano lhe dita: o género é algo criado por Deus e que o Homem não tem o direito a mudar.
A argumentação do Presidente da República é um bocadinho mais sofisticada : alega irregularidades técnicas e um excesso de simplificação do processo, fazendo notar que quem toma no fundo a decisão de classificar um indivíduo transgénero é a comunidade médica, mas sem enquadramento jurídico existente e sem uma definição clara e objectiva do que é perturbação de género.
Do ponto de vista jurídico-constitucional, penso não haver dúvidas que o veto do PR está assente em boas bases teóricas. No entanto, o que Cavaco Silva parece dar a entender é que não confia na classe médica, e que sugere à AR que legisle sobre o que é que os médicos podem ou não fazer.
Ora isso é, no mínimo, insultuoso para os médicos. A intenção do legislador foi justamente de se preocupar em aligeirar o processo burocrático — porque é de facto de um processo burocrático que se trata — não interferindo no diagnóstico, avaliação, e acompanhamento feito pelos clínicos especialistas. O PR também alega que a especialidade de «sexologia clínica», referida no diploma vetado, não existe; a lista de colégios da Ordem dos Médicos efectivamente não reconhece essa especialidade como sendo distinta, por exemplo, da psiquiatria. Os psicólogos, por sua vez, não têm (ainda) uma ordem; estão representados pelo Sindicato Nacional dos Psicólogos, a Sociedade Portuguesa de Psicologia Clínica (que só reconhece duas especialidades), ou a Associação Portuguesa de Psicologia. Mas no entanto, a especialidade de Sexologia Clínica encontra-se representada pela Sociedade Portuguesa de Sexologia Clínica (SPSC)! É uma entidade com mais de 25 anos de existência, que confere formação e um título aos especialistas em terapeutas de sexologia clínica, mas que não se encontra regulamentada em Portugal — ou seja, não tem o mesmo «peso» que a Ordem dos Médicos em termos legislativos.
A meu ver, pois, é óbvio que existe uma leitura política a fazer da decisão do veto desta lei por parte do PR, já que o candidato à presidência Cavaco Silva se encontra em pré-campanha, e já tinha afastado os votos da direita com a promulgação do casamento civil entre indivíduos do mesmo se_xo biológico. Esta nova legislação, embora de índole diferente, é vista pela direita moralizadora como sendo um atentado aos seus valores morais que insistem em impor a todos, independentemente do sofrimento que lhes causam; para conquistar alguns votos dos conservadores moralistas, Cavaco Silva tirou este trunfo da manga, anunciando o veto na altura apropriada.
Mas a justificação realmente tem alguma validade: se o legislador entende que a decisão administrativa de mudar o nome de uma pessoa e o seu género deve passar por uma avaliação clínica (à semelhança do que se passa no resto do mundo), então essa avaliação clínica deve ser feita por quem esteja acreditado (pelo Estado) para o fazer. A sexologia clínica ainda não está regulamentada em Portugal. Logo, a lei não é inteiramente válida. Faz sentido, independentemente da questão política e moral.
Espero que os proponentes da legislação sejam então mais ousados e proponham a regulamentação da carreira de terapeuta de sexologia clínica em diploma próprio, dando assim resposta a um pedido que a SPSC tem feito no último quarto de século. Com esta legislação em vigor, a proposta de lei de simplificação do processo de alteração de nome e género deixa de ter ambiguidades legais: pode relegar simplesmente o enquadramento clínico do indivíduo segundo o critério de especialistas da área, tal como acontece em todas as outras áreas. Não é preciso ser o legislador a definir os critérios; para isso é que há especialistas. Só que estes têm de ser certificados e acreditados! Para isso, basta reconhecer o estatuto da SPSC como certificadora de terapeutas de sexologia clínica.
Eu iria obviamente mais longe… ao contrário do que se passa noutros países, características discriminatórias dos indivíduos não são colocadas nos documentos de identificação. Por exemplo, nos Estados Unidos da América, a etnia é registada. Em Portugal nunca foi. Noutros países regista-se a religião. Cá essa informação só existe a nível dos censos, mas estes são processados anonimamente. A filiação política também não é registada. Tudo isto é deliberado: ao não registar estas características discriminatórias, não é possível discriminar um indivíduo apenas olhando para os seus documentos. E isto é justo e deve ser assim mesmo; o Estado deve dar o exemplo!
No entanto, essa discriminação existe quanto ao se_xo biológico. Porquê? Podemos alegar «por questões históricas». Por exemplo, no início do século, as mulheres podiam tirar o passaporte, mas não podiam votar; identificar um cidadão pelo seu se_xo biológico era, pois, uma forma de garantir que não pudessem apresentar qualquer documento na tentativa de poderem votar. A legislação tratava as mulheres de forma diferente dos homens, pelo que discriminá-las a nível da documentação era justificável.
Mas no século XXI, não só as leis se aplicam indiscriminadamente aos indivíduos de ambos os se_xos, como é proibido legislar qualquer coisa que os discrimine! (O que depois acontece na prática é muito diferente; mas o Estado deve dar o exemplo) O pretexto «histórico» de que o cartão de identificação «tem» de ter o registo do se_xo biológico é pouco válido à luz da Declaração Universal dos Direitos do Homem e da Constituição Portuguesa; no entanto, nenhum legislador alguma vez pensou em aplicar isso à documentação…
É verdade que é preciso salvaguardar alguns direitos da mulher: por exemplo, o direito a uma licença de parto. No entanto, esse direito não requer que as pessoas sejam obrigadas a terem uma cruzinha no F no cartão de cidadão! Em primeiro lugar, só as cidadãs que efectivamente tenham um filho é que gozam desse direito; era como se sempre que tivessem um filho tinham de mudar o cartão de cidadão para meter lá uma observação: «mãe em licença de parto». Não é preciso tal coisa para fazer valer o direito à licença de parto!
Em segundo lugar, imensos cidadãos têm direitos especiais, protegendo os indivíduos, quando sofrem de qualquer tipo de doença ou incapacidade, física ou mental. No entanto, essa informação não aparece no cartão de cidadão. Alguém que tenha uma visão reduzida, por exemplo, tem um desconto substancial no IRS — mas o cartão de cidadão desses indivíduos não diz «amblíope»! Ou seja: o pretexto da discriminação positiva — a concessão de direitos especiais a indivíduos que têm impedimentos comparativamente à norma — não é um pretexto para os «identificar» documentalmente; são apenas procedimentos administrativos. Um amblíope só precisa de ter um relatório médico validando a sua situação, que é enviado à DGCI, para poder gozar dos seus direitos; não precisa de ir mudar o seu cartão de cidadão por causa disso.
Proponho, pois, que seja eliminada a classificação «se_xo» dos documentos dos cidadãos, e que seja emitida legislação a proibir a exigência dessa classificação, seja pelos organismos do Estado, seja pelas empresas particulares. Essa «exigência» só deve ser voluntária e opcional. Tal como não sou obrigada a dizer qual a minha religião ou filiação partidária quando abro uma conta bancária ou me inscrevo como sócia do Benfica, não devia ser legalmente permitido exigir que indique qual o meu se_xo biológico (ou o meu género). Devia ser uma classificação voluntária e opcional que não pudesse ser exigida.
Isto já contribuiria imenso para resolver o problema dos indíviduos transgénero.
O segundo problema a resolver é a questão do nome. Em Portugal é muito difícil mudar de nome, e a razão é apenas de ordem obsessiva com o «controle» dos cidadãos, herança histórica do Estado Novo. Do ponto de vista do Estado, basta haver um registo central do número do cidadão (para efeitos fiscais e jurídicos). O nome é opcional. Já viram os editais de suspensão da actividade dos advogados? Referem sempre o nome «de trabalho» do advogado (a designação pela qual são vulgarmente conhecidos) e o seu nome completo. «José Sócrates» é o Primeiro Ministro de Portugal, mas na realidade chama-se José Sócrates Carvalho Pinto de Sousa. «Sócrates» é apenas o seu segundo nome próprio, não é sequer nenhum dos apelidos. Isto não faz qualquer confusão a nenhum dos cidadãos, nem ao Estado. O contribuinte José Sousa está bem identificado.
Defendo, pois, o direito a qualquer cidadão de usar o nome que muito bem lhe apetecer (aliás, está previsto na Constituição), mas que o processo de mudança de nome seja meramente um procedimento administrativo simples. Já mudei de nome quando tinha 13 anos (para ostentar também um apelido de um dos avôs) e lembro-me das dificuldades e controvérsias em torno desse processo, que foi muito longo, e já na altura bastante caro.
Com a introdução do cartão de cidadão, este processo é totalmente informatizado e actualizado em várias bases de dados que o Estado necessita para «controlar» os cidadãos. Leva pouco tempo, é simples, e relativamente pouco incómodo, pelo menos quando comparado com o método antigo. Não faz, pois, sentido «complicá-lo». Nem sequer é justificável: mudar de morada — que é muito mais importante para o Estado em termos de notificações! — é relativamente simples, e o «trabalho» para mudar uma morada (em termos do tempo que leva um funcionário a digitar a morada nova no computador) é o mesmo que para mudar um nome.
Portanto, caríssimos legisladores, sejam criativos e ousados:
1) Certifiquem a especialidade de sexologia clínica, através da acreditação da SPSC.
2) Proíbam que se exija aos cidadãos que declarem o seu se_xo biológico ou ou seu género para fins de identificação; ressalvando o direito aos cidadãos de reclamarem direitos específicos associados ao se_xo biológico como a licença de parto tal como em todas as outras situações de discriminação positiva.
3) Permitam que o processo de alteração de nome seja igualmente simplificado, um mero procedimento burocrático nos registos centrais, sem impor «normas».
Com isso pode ser que nos comecemos a libertar das amarras a valores morais inventados há dois mil anos atrás… sem, claro, impedir que quem se queira apegar a esses valores morais não o possa fazer. Não devem é ter o direito a impô-los a terceiros; a Constituição já nem sequer o permite, embora seja muito fácil esquecermo-nos disso…