O vídeo acima mostra bem o que é a tolerância dos portugueses nos dias que correm: um casal homossexual pode livremente passear por Lisboa de mãos dadas, mesmo pelas zonas mais degradadas, e raramente olham duas vezes para eles (um dos membros do casal tem quase dois metros de altura, e é bem mais provável que tenha chamado a atenção pela sua altura do que por estar a passear com o namorado). Na verdade, as experiências que temos tido relativamente ao crossdressing não são muito diferentes — são muito positivas, tal como este vídeo apresenta.
Na minha opinião, o problema principal com a receptividade à comunidade transgénero tem a ver com a percepção das motivações que a população em geral tem das pessoas transgénero, que pouco ou nada têm a ver com as suas motivações reais. A confusão é tanta que mesmo dentro dos grupos de pessoas transgénero esta confusão persiste!
Quando se diz que uma pessoa é homossexual ou bissexual, estamos a falar apenas de um de quatro aspectos: a atracção romântica e sexual por um parceiro. Uma pessoa que seja LGB não é «definida» pela escolha de parceiro sexual, embora muita gente pense que sim. Mas é ridículo: as pessoas que são heterossexuais não se definem apenas por serem heterossexuais, esse é apenas um dos seus quatro aspectos que tem a ver com a sua identidade…
Já referi os quatro aspectos noutro artigo, mas vale a pena repeti-los, visto que é uma fonte de imensa confusão para muita gente. Para isso vou-me servir de um gráfico interessante que os ilustra muito bem:
Quando se fala de género está-se, pois, a lidar com quatro aspectos distintos. Claro que podem estar relacionados entre si — mas podem também não o estar. O primeiro aspecto (a azul no gráfico) é o da identidade: este é o género com o qual a pessoa se identifica, independentemente do que constar no Cartão de Cidadão, ou do aspecto físico que esta tem. O segundo (a amarelo) é a expressão (ou manifestação): isto é o género com que se apresenta socialmente, e que inclui vestuário, comportamento, forma de falar, etc. O terceiro aspecto (a púrpura) tem a ver com o sexo biológico: o conjunto de características físicas, incluindo os cromossomas, a embriologia, os atributos sexuais primários e secundários, os níveis hormonais, etc. E finalmente temos a atracção (romântica e/ou sexual) por outras pessoas.
É muito importante perceber também que neste gráfico não se opõe «masculino» a «feminino»: não são duas coisas exclusivas, binárias, em que só se pode ser uma ou outra coisa. Assim, as pessoas são, isso sim, «mais/menos masculinas» e simultaneamente «mais/menos femininas» nos quatro aspectos. Já veremos isto melhor, mas o importante é perceber que «menos masculino» não quer dizer «mais feminino» (e vice-versa).
A título de exemplo, o estereótipo do homem cisgénero heterossexual identifica-se com o género masculino, veste-se e comporta-se de acordo com o género masculino, fisicamente possui cromossomas XY e tem um desenvolvimento normal das características físicas sexuais, primárias e secundárias, e sente-se atraído de forma romântica e sexual por pessoas do género feminino. Na prática, claro está, não existe ninguém que seja assim a 100%! Por exemplo, esse mesmo homem pode ter comportamentos e atitudes que associamos mais frequentemente ao género feminino: empatia e carinho, para pegar em dois esterótipos. Não deixa de ser «menos masculino» na escala anteriormente exposta: o que acontece é que no aspecto da expressão de género apresenta algumas características na escala de «mais feminino» — sem, no entanto, ser «menos masculino».
Uma pessoa intersexo, por exemplo, na escala do sexo biológico, apresentará percentagens de «masculinidade» e «feminilidade» baixas, consoante o desenvolvimento que tiver das características físicas sexuais primárias e/ou secundárias; enquanto que uma pessoa que não seja intersexo, provavelmente será 80-90% masculino e 10-20% feminino (ou vice-versa), uma pessoa intersexo poderá ser 50/50.
Já uma pessoa asexual terá na escala da atracção sexual um valor próximo do zero, mas na escala da atracção romântica terá valores próximos aos normais para qualquer outro tipo de pessoa.
Não sendo um gráfico perfeito, este diagrama procura mostrar que existe muito maior fluidez nos quatro aspectos do que normalmente assumimos, quando pensamos em «género binário». O que o gráfico não mostra, no entanto, é a distribuição da população pelos vários aspectos, mas apenas a potencialidade. Por exemplo, a esmagadora maioria da população (90% ou mais) é cisgénero, ou assume-se como cisgénero, mesmo que na realidade possa ter características nos restantes aspectos que possam dar a entender o contrário. A imagem estereotipada do «cromo informático» masculino, de óculos de fundo de garrafa, corpo franzino, quase sem pelos no corpo ou no rosto, fraco, odiando desportos violentos, altamente inteligente com capacidades cognitivas complexas, mas eventualmente auto-centrado nos seus problemas pessoais e com pouca empatia para as restantes pessoas, mostra bem como pode haver uma diversidade bastante ampla de parâmetros (por exemplo, as características físicas, o ódio a desportos violentos, o pouco interesse em actividades ligadas ao sexo, etc. terão uma forte componente feminina; mas a auto-absorção nos próprios problemas e falta de empatia são fortes características masculinas). E não são os parâmetros, por si só, que definem a identidade de género: no exemplo do «cromo informático», este provavelmente terá uma identidade de género masculina e poucas dúvidas quanto à sua identidade, mesmo que apresente características físicas e sociais que não sejam típicas do seu género.
A minha mãe, por exemplo, seria o exemplo contrário. Não tinha qualquer dúvida quanto à sua identidade de género, e do ponto de vista puramente biológico, também não haveria qualquer dúvida. No entanto, a sua mente era simultaneamente bastante masculina — independente, analítica, dominante — e feminina: sociável e empática. Quando era nova, gostava de actividades tipicamente masculinas (desportos de competição, por exemplo) e detestava as que considerava mais femininas (detestava cozinhar, por exemplo, e era na realidade uma péssima cozinheira); mais tarde, no entanto, decidiu abandonar muita da sua «rebeldia» da juventude e adoptar perfeitamente a expressão de género feminina; vestia-se com muito bom gosto e muito cuidado, e tinha a maior colecção de roupa que alguma vez conheci (guardava tudo e nunca deitava nada fora!).
Estou a dar estes exemplos para tentar explicar que nas questões de identidade não existe «preto e branco», mas sim complexíssimos «tons de cinzento», com muitíssimas combinações possíveis. No entanto, existe também uma distribuição normal — um termo matemático que descreve a análise de uma população — em que teremos que admitir que a esmagadora maioria das pessoas se identifica com um determinado género, e dentro de todas as variantes possíveis da forma como manifestam essa identidade, a maioria alinhar-se-á com determinado estereótipo.
Quando se usa a palavra normal geralmente está-se a misturar dois significados diferentes. O primeiro é o derivado da palavra norma: regra, preceito. Presume-se que quem é «normal» numa sociedade é quem «siga as regras» dessa sociedade. No entanto, existe também o significado matemático da palavra «normal», que, de uma forma muito simplista, quer dizer pouco mais do que «a esmagadora maioria». Podemos, no entanto, ligar os dois significados da palavra: a maioria das pessoas (numa distribuição normal, em termos científicos) irá elaborar regras e/ou preceitos — «normas» — para a sua própria conduta. Anormal, em termos matemáticos, apenas significa «fora da norma [matemática]», ou seja, fora da maioria: a minoria. Infelizmente usamos a palavra anormal, do ponto de vista social, de forma pejorativa, implicando que se trata de alguém que «não segue as normas [regras]». Do ponto de vista matemático, no entanto, tanto pessoas «normais» como «fora da norma» representam possibilidades dentro de um espectro — ambas as possibilidades são válidas, mas a «norma» é probabilisticamente muito mais elevada.
Vou pegar noutro exemplo completamente diferente. Consideremos uma das substâncias mais comuns no planeta Terra: H2O. Vulgarmente chamamos-lhe «água», mas a verdade é que o H2O pode existir no nosso planeta sob forma de água, gelo, ou vapor [de água]. As três possibilidades são sempre H2O. No entanto, a água em estado líquido é substancialmente mais comum que nos restantes estados; podemos dizer então que a distribuição do H2O pelas suas três fases, no nosso planeta, é uma distribuição normal, em que a fase mais comum é a fase líquida. Isto não quer dizer que as fases sólida e gasosa sejam «outra substância», ou uma substância «de qualidade inferior»; as três fases são igualmente válidas, são todas elas H2O. Agora há umas que são mais raras do que outras, mas isso não faz com que sejam «menos importantes». As três fases representam um espectro de possibilidades para o H2O, que na maioria dos casos é líquido, mas por vezes pode ser sólido ou gasoso (e transitar de uma fase para a outra dependendo da temperatura e da pressão atmosférica).
Devemos entender, pois, o diagrama do Genderbread Man como «espectros de possibilidade» para o género, e aquilo que é «normal» — aquilo a que os activistas chamam de sociedade heteronormativa (lá está a palavra «norma» de novo) — é apenas aquilo que é mais frequente, não havendo, no entanto, qualquer implicação que as excepções ou os grupos minoritários sejam «seres humanos inferiores» só porque não apresentam características heteronormativas.
O exemplo da água é interessante porque mostra muito bem como estamos a falar de um «espectro» e não de uma perspectiva binária: ou é água ou é gelo, ou é água ou é vapor. Na realidade, todos nós sabemos que se agarrarmos num cubo de gelo este apresenta-se-nos molhado. Porquê? Porque o mero contacto com a temperatura do nosso corpo é suficiente para fazer com que o H2O em forma sólida comece a mudar para a fase líquida. Da mesma forma, se tivermos um congelador com uma porta de vidro, podemos ver que o H2O líquido não se transforma magicamente num cubo de gelo sólido: vai acontecendo aos poucos. Quanto mais baixa for a temperatura, claro que isto acontece mais depressa, mas nunca é «instantâneo». E mesmo um cubo de gelo que pareça ser 100% sólido tem sempre alguns átomos de H2O que estão em fase líquida e gasosa; da mesma forma, não é só quando fervemos água que obtemos vapor de água; na realidade, a qualquer instante, há sempre partículas de H2O que se escapam sob forma de vapor de um copo de água, mesmo à temperatura ambiente. Sabemos instintivamente isso quando deixamos um copo ou jarro com água num quarto aquecido durante a noite; de manhã, parte dessa água já se evaporou, apesar de nunca se ter atingido uma temperatura próxima dos 100ºC.
Portanto, se tivermos um microscópio ao lado do copo de água, colocado à temperatura ambiente, vamos estar sempre a ver algumas partículas de H2O a passarem da fase líquida para a gasosa — e vice-versa. Justamente na «fronteira» entre a água líquida e o ar atmosférico é difícil de dizer exactamente onde termina a fase líquida do H2O e onde começa a fase gasosa do H2O. Ambas estão misturadas. O que podemos dizer, isso sim, é que à temperatura ambiente, a probabilidade do H2O estar maioritariamente na sua fase líquida é muito maior do que a probabilidade de estar na fase gasosa; à medida que a temperatura aumenta, o inverso se passa; acima dos 100ºC, a probabilidade de ainda encontrarmos H2O na fase líquida é muito baixa, mas tecnicamente não é nula.
Quando passamos aos seres humanos — que são mais complexos que a água! — o mesmo se passa. Podemos, de forma abstracta, tal como fizémos para o H2O, definir que existem fundamentalmente dois géneros, com determinadas características — de identidade, de expressão, biológicas, e de atracção — e simplificar a nossa análise dizendo que são dois extremos, ou dois pólos. Se olharmos para a distribuição da população, poderemos dizer que, grosso modo, 90% das pessoas estará muito perto desses dois pólos. No entanto, não existe ninguém que seja 100% masculino e 0% feminino; e da mesma forma não existe ninguém que seja 100% feminino e 0% masculino — e estou a falar dos quatro aspectos. Podemos, isso sim, dizer que a esmagadora maioria da população, para cada um dos quatro aspectos, apresentará 80-90% das características de um dos géneros, e 10-20% da do outro género.
Mais ou menos 10% da população, no entanto, não se enquadra nesta «maioria» e apresenta valores completamente diferentes daquilo que é a maioria. Mais uma vez repito: o facto de não se «encaixarem» numa heteronormatividade não quer dizer que sejam «seres humanos inferiores», ou que sejam «defeituosos» de alguma forma. São tão humanos como os restantes (nem mais, nem menos). Fazem parte da complexidade do espectro de género que é inerente à espécie humana. São é apenas muito menos, mais nada. Mas também não são tão poucos como isso, e é essa a aqui a grande questão.
Existe também um outro problema, que não é também fácil de explicar, e que mais uma vez só recorrendo a abstracções matemáticas é que conseguimos vislumbrar a problemática. Quando dizemos que 90% da população é heteronormativa, isto significa que há uma enorme e esmagadora maioria de pessoas que se identificam com os quatro aspectos da mesma forma. Isto dá a entender que os restantes 10% representam uma «alternativa», mas uma alternativa unificada. Ora isto evidentemente que não é verdade!
Dentro dos tais 10%, por exemplo, encontramos a comunidade LGB — que se identificam em todos os restantes pontos com a sociedade heteronormativa excepto no aspecto da atracção romântica e sexual. Mas isto também não é inteiramente correcto: dentro da comunidade LGB existem subculturas. Algumas subculturas, por exemplo, não se identificam com a expressão de género heteronormativa, e adoptam uma expressão de género diferente (que pode nem ser sequer masculina ou feminina). Outras, por oposição, adoptam uma expressão de género oposta ao género com que se identificam (como acontece com as lésbicas butch, por exemplo). Mas na realidade existem muitas outras variantes, e uma incrível variedade de subculturas, cada qual com números cada vez menores de elementos. Todos, no entanto, se identificam com a noção de que a sua atracção romântica e sexual é diferente da heteronormativa.
Se pegarmos na comunidade transgénero, então ainda vamos ter um número muito mais reduzido de pessoas (em Portugal, se tivermos percentagens semelhantes ao resto do mundo, talvez não sejam mais de umas 15.000 — comparado com quase um milhão de pessoas LGB, independentemente se já se tiverem assumido como tal ou não, pois a maioria poderá nunca se assumir). Mas também não se pode pegar no diagrama do Gingerbread Man e dizer: «uma pessoa transgénero é X% disto e Y% daquilo». Na realidade, no caso das pessoas transgénero, as percentagens podem variar loucamente em todos os quatro aspectos!
Assim, temos, por exemplo, pessoas que se identificam com o género masculino e, em 99,9% do seu tempo, exprimem-se de acordo com o género masculino, e do ponto de vista biológico, são fortemente masculinas (80-90%). Em 99,9% do tempo, são heterosexuais, ou seja, desenvolvem atracção romântica e sexual por parceiros do género feminino. Mas em 0,1% dos casos exprimem-se de acordo com o género feminino e desejam parceiros sexuais do género masculino (mesmo que não tenham uma atracção romântica por estes!). Este é o caso das crossdressers fetichistas. Das tais 15.000 pessoas que possam ser consideradas «transgénero», a esmagadora maioria está nesta classificação — provavelmente serão mais de 10.000.
Temos também pessoas que orientam a sua identidade de género de acordo com a expressão de género, e esta varia de acordo com a situação — nalguns casos, também mudando a sua orientação sexual, de acordo com a expressão de género do momento. Aqui encontramos pessoas com fluidez de género, muitas das quais apenas se identificam como «crossdressers», mas outras vão mais longe e admitem que não se sentem «completas» se não se puderem identificar com ambos os géneros. Regra geral, são pessoas bastante equilibradas e satisfeitas com a sua «dupla identificação» de género. De entre aquelas que se consideram «crossdressers» (porque nem todas se auto-designam dessa forma), este grupo é talvez o segundo maior.
Estes dois grupos, apesar de formarem a maioria das pessoas dentro desta classificação de «transgénero», raramente aparecem nos estudos científicos ou sequer nas discussões da comunidade LGBTI. A razão é simples: o primeiro caso, estando limitado essencialmente ao fetichismo, é feito em privado, e a última coisa que desejam é chamar atenção para si própri@s. O segundo grupo é mais «visível», mas como, regra geral, são pessoas equilibradas, raramente chegam aos consultórios dos médicos — e muito menos aos balcões dos grupos de activistas! — mas sim levam uma vida normal e pacata, conciliando a sua «dupla personalidade» (no sentido mais lato do termo) de forma pacífica.
Depois, sim, temos então o grupo de pessoas transexuais mais clássicas, em que a identificação é feita com o género oposto ao que lhes foi atribuído à nascença. Aqui temos duas variantes principais, pelo menos do ponto de vista histórico: no primeiro caso, temos pessoas cuja certeza de identidade foi adquirida muito cedo na vida (normalmente nos primeiros anos de infância), que se manifestam de acordo com essa identidade, independentemente do seu sexo biológico, e que frequentemente (mas não sempre) apresentam algumas características físicas mais ambíguas. A sua escolha de parceiro recai quase sempre (mais uma vez, em 90% dos casos) sobre pessoas do género oposto ao que se identificam.
A segunda variante (que já foram chamados de «transsexuais secundários», ou «transsexuais tardios») geralmente manifestam-se de acordo com a sua identidade de género muito mais tarde na vida, e raramente têm características físicas do sexo biológico com que se identificam. Também é mais frequente serem atraídos romântica e sexualmente por pessoas do mesmo género com que se identificam, mas isto nem sempre é o caso. Aqui existe também um largo espectro de pessoas bem diferentes: num dos extremos temos pessoas como a Caitlyn Jenner, que durante toda a sua vida reprimiram o seu lado feminino, mas que, aos 60 e tal anos, decidiram mesmo avançar com a transição. No outro extremo temos pessoas que ficam satisfeitas em apenas fazer crossdressing para «aliviarem» a tensão interna que sentem entre o género com que se identificam e o género que têm de exprimir todos os dias, para sustentar a sua família e manter as amizades e o local de trabalho. A diferença entre os dois tipos é pequena, e a transição propriamente dita depende de muitas circunstâncias, e pode ser feita de muitas formas diferentes — pode não envolver cirurgia ou terapia hormonal, ou, precisamente o oposto, a pessoa em questão pode realmente modificar o seu corpo para diminuir a ansiedade e depressão provocada pela disforia de género, mas continuar a manifestar-se de acordo com o género que lhe foi atribuído à nascença apenas por uma questão de facilidade social.
E finalmente temos ainda um grupo muito pequeno de pessoas que não se identificam com nenhum género, ou com ambos os géneros em simultâneo, ou que têm situações físicas ambíguas (pessoas intersexo) e que as pretendem corrigir, ou, pelo contrário, que desejam modificações físicas para ficarem com um aspecto físico deliberadamente ambíguo. Todas estas situações existem, em maior ou menor grau, e quanto mais pequena é a distribuição de população nestes extremos, maior é a diversidade!
Esta é, aliás, uma característica das distribuições normais (mais uma vez, falando do aspecto matemático da questão): se analisarmos a parte que tem a maioria da população, no centro da curva, veremos que as suas características são mais semelhantes entre si. Quanto mais nos afastarmos do centro e chegarmos aos extremos, maior é a variedade de características, e mais difícil é de encontrar uma classificação «genérica» para as pessoas que estão na «cauda» da curva. No limite temos muito poucas pessoas, mas cada caso é um caso completamente individual e distinto de todos os outros.
Em países como Portugal, que não têm muita população transgénero, quanto mais nos afastamos do centro da curva, vamos encontrar subgrupos de dimensão muito reduzida — que se contam às centenas ou mesmo às dezenas de pessoas. É essa a razão pela qual no nosso país não existem muitos «guetos» para subculturas muito específicas. Só recentemente (na última década, por exemplo) é que passou a ser rentável, aos proprietários de bares, abrir estabelecimentos só para a cultura bear ou butch — antes, todos tinham de frequentar os mesmos espaços LGBT, porque não era economicamente viável manter um espaço aberto se existiam apenas poucas centenas de pessoas que se identificavam com apenas uma das subculturas da comunidade gay. Em Lisboa, contaram-me que proliferam as saunas gay (apenas para homens biológicos), mas só existe uma, muito recentemente com nova gerência, que é mista — e como a dona é uma mulher transexual, ela está a considerar abrir o espaço também à população transgénero e não apenas à população gay. Entretanto, vão abrindo mais e mais saunas gay para a população masculina, porque — lá está! — talvez existam uns quinhentos mil homens homossexuais, muitos dos quais potencialmente interessados em frequentar esse tipo de espaços, enquanto que pessoas transgénero disponíveis para também os frequentar serão muito, muito poucas.
Assim, quando se vê em países de grande densidade populacional uma série de ofertas explicitamente desenhadas para certos subtipos de crossdressers (hotéis e cruzeiros com pacotes de férias só para crossdressers não-fetichistas, por exemplo), não há que olhar com inveja, mas apenas compreender que tem tudo a ver com a dimensão da população. Em Portugal, se se conseguissem juntar todas as crossdressers não-fetichistas no mesmo espaço (o que seria quase impossível por questões de logística!), estas não encheriam um único dos maiores paquetes; e seria um esforço descomunal de logística para as conseguir lá meter todas, já que a esmagadora maioria ainda está na «fase do armário» e não tem qualquer contacto com os restantes membros da comunidade. Já se se fizesse a mesma coisa para a comunidade transsexual, provavelmente bastava alugar um cacilheiro. É, pois, tudo uma questão de dimensão: a verdade é que as pessoas transgénero, na sua totalidade, e mesmo tendo em conta que eu estou a incluir as pessoas com transvestismo fetichista nesta classificação (o que tecnicamente pode não ser correcto), são mesmo muito, muito poucas — em comparação com a totalidade da população.
Isto evidentemente que cria dois problemas. Porque somos poucas, somos pouco visíveis, e isto significa que não é fácil explicar quem somos, o que somos, o que sentimos, o que fazemos. Mas o segundo problema é porventura muito mais complicado: como estamos no extremo da curva, a diversidade é muito grande, e cada uma de nós tem uma forma diferente de se definir enquanto pessoa transgénero. Vou tentar dar alguns exemplos.
Se formos a um fórum popular da comunidade de crossdressers e pessoas transgénero em língua inglesa, como é o caso do Susan’s Place, vamos encontrar dezenas de milhares de participantes activos. Como são tantos, e apesar da diversidade das pessoas transgénero, vão existir centenas ou mesmo milhares que se orientam de acordo com mais ou menos as mesmas características — têm, pois, muito em comum. É certo que mesmo este fórum tem imensas subdivisões para as várias subculturas. Mas cada uma delas tem centenas ou milhares de participantes que se identificam com determinadas características, e muitas vezes é surpreendente lermos relatos d@s participantes e dizer «ena, tanta gente que é igualzinha a mim!».
Eu gosto de dar o meu próprio exemplo. Sou crossdresser não-fetichista, identifico-me com o género feminino, mas tenho atracção física e romântica apenas por mulheres; não sei muito bem se tenho disforia de género ou não mas ando a tratar-me com psicólogos e psiquiatras para perceber-me melhor a mim mesma. Mas para além disso tudo, sou também fetichista da arte de fumar. Este tipo de fetiche é extremamente raro, e completamente incompreensível para a esmagadora maioria das pessoas, mesmo para aquelas que tenham um fetiche mais popular (BDSM, swing, fetiche dos pés, etc.), porque nem sequer se «parece» um fetiche. Em Portugal, conheço talvez uma ou duas pessoas que tenham o mesmo fetiche que eu. Mas se associarmos as duas coisas — o facto de pertencer ao espectro transgénero, embora num subgrupo muito pequenino, e o facto de ser fetichista da arte de fumar — então o número de pessoas diminui drasticamente, ao ponto de em Portugal ser, efectivamente, zero. Ou melhor, há uma pessoa: eu 🙂 — sou uma «anormalidade estatística» (do ponto de vista matemático, bem entendido). Mesmo a nível global o número de pessoas que combina estas duas características é pequeno. Já existiu um site apenas para fetichistas da arte de fumar, onde participavam várias pessoas no espectro transgénero — o site tinha apenas meia centena de pessoas, apesar de aceitar membros de todo o mundo. Na minha lista de amig@s, tenho talvez meia dúzia que são simultaneamente crossdressers e fetichistas da arte de fumar — quase todas americanas, canadianas ou inglesas. Volta e meia, de três em três anos, mais ou menos, lá encontro mais uma pessoa que ainda não conhecia e que combina as mesmas características que as minhas. Ou seja: esta combinação de factores está tão no extremo da «cauda» da curva de distribuição normal da população, que mesmo a nível mundial, assumindo que existem dois mil milhões de pessoas ligadas à Internet, o número total de pessoas do «meu» subgrupo é ridiculamente baixo. E mesmo assim, grande parte das minhas amig@s nem sequer é precisamente como eu: a maioria (mas não todas) é na realidade crossdresser fetichista. Tenho de parar um bocado para pensar se existe alguma que seja crossdresser não-fetichista mas que seja fetichista da arte de fumar. Eu penso que sim, que há uma ou duas. E ando à procura há uma década!
Se tiver de explicar a alguém o que é o crossdressing, ou, pior ainda, se tiver de explicar a vasta variedade dentro do espectro transgénero, já tenho enormes dificuldades para o fazer, especialmente se quiser ser inclusiva, ou seja, não deixar nenhum grupo de fora. Há imensos subgrupos com os quais nunca tive nenhum contacto; só conheço, por exemplo, uma pessoa com fluidez de género, e já conheci uma pessoa intersexo. Mas há muitos subgrupos dos quais conheço a existência, mas que nunca conversei com ninguém desse subgrupo, pelo que o que posso falar del@s é apenas o que leio na literatura científica sobre o assunto e nos blogs da comunidade — não tenho experiência pessoal, por assim dizer.
Se tiver ainda de explicar também o que é o fetiche da arte de fumar, então ainda terei uma maior dificuldade; especialmente no caso extremamente complicado que é «separar às águas», ou seja, explicar que uma pessoa pode ser fetichista da arte de fumar, mas ser praticamente asexual. Como estou tão no extremo da curva de distribuição normal, não conheço praticamente ninguém que combine as duas coisas. Explicá-las a terceiros, pois, é uma tarefa extremamente difícil.
Muitos dos activistas que conheço, alguns deles pessoalmente (em carne e osso), dirão que o melhor é abolir todas as classificações e assumir simplesmente que cada pessoa é um indivíduo: são as classificações que artificialmente nos impõem uma divisão, uma separação.
Essa é uma boa atitude da perspectiva legal, ou seja: é fundamental que existam direitos inalienáveis que se apliquem a todas as pessoas, independentemente das suas características pessoais. O princípio da não-discriminação deve ser aplicado a todas as pessoas, sem excepção — não interessa se estão na parte «mais gorda» da curva da distribuição normal, ou nos extremos. Todos somos seres humanos. Todos temos os mesmos direitos e deveres, entre os quais o direito a sermos respeitados tal como somos.
Esta é uma posição politicamente sólida, sustentável, e fundamental numa sociedade democrática.
No entanto, as «classificações» têm igualmente mérito. Do ponto de vista médico, é importante a um especialista saber fazer um diagnóstico, enquadrar o paciente num perfil, para saber como o tratar. Ao fazer essa classificação (clínica!) não está a «discriminar» ninguém, mas sim meramente a aplicar métodos científicos para isolar eventuais problemas e saber como os tratar. O objectivo aqui não é o de restringir, ou de forçar, a pessoa a estar «encaixada» numa classificação qualquer; mas sim o de identificar um conjunto de sintomas, fazer a perfilagem do paciente, e aplicar o tratamento (se houver) correcto.
Por exemplo, a orientação sexual não é uma «doença» ou uma patologia, mas meramente uma «condição». Se uma pessoa homossexual se apresentar junto de um médico, e dizer que sofre imenso por ser homossexual (por ser vítima de homofobia, por exemplo), o médico não o pode «tratar» da homossexualidade, porque isso é impossível. Mas pode, isso sim, aliviar os sintomas de depressão ou de ansiedade de uma vítima de homofobia, e ajudar a pessoa em questão a aceitar a homossexualidade e a ter relações afectivas e sexuais normais, sem medos, sem se sentir mal consigo própria, e ter uma vida perfeitamente normal como qualquer outra pessoa. Ou seja: é através da classificação que o médico distingue condições, daquelas que são tratáveis das que não as são, e que pode dar ajuda e apoio à pessoa. Neste exemplo concreto não é a homossexualidade propriamente dita que está a causar problemas à pessoa em questão; é a homofobia, é a imposição heteronormativa da sociedade, é a vergonha, etc.
Os problemas dos homossexuais são completamente diferentes dos das pessoas transgénero, e, por sua vez, dentro do espectro das pessoas transgénero, existe uma ainda maior diferença entre pessoas, ao ponto de «cada caso ser um caso». São as diversas classificações que orientam os médicos para um diagnóstico. Isto também quer dizer que não é fácil dizer apenas: «sou uma pessoa transgénero: identifico-me com um género que não está alinhado com o meu sexo biológico». Isto é verdade, claro, de forma genérica. Mas para um médico é preciso ir muito mais fundo. Sim, mas como se identifica com esse género? De que forma é que o manifesta? Como é que se relaciona afectivamente com as pessoas? E como é que essa situação o afecta psicologicamente (se é que afecta)? A cada pergunta sucessiva vamos criar mais e mais classificações, mas não com o objectivo de «discriminar» ninguém, mas meramente de encontrar um quadro clínico apropriado aos sintomas descritos, e procurar encontrar soluções para os problemas das pessoas em questão.
Do ponto de vista social e legal, claro que podemos afastar um pouco o zoom e ficar com uma visão mais abrangente. Por exemplo, todas as pessoas que sofram de disforia de género têm uma série de direitos legais — o direito ao tratamento, às cirurgias, à terapia hormonal, etc. — mas também o direito à não-discriminação no local de emprego, o direito a mudarem de nome e de género na documentação, etc. É irrelevante, por exemplo, se a pessoa é um «transsexual primário» ou «secundário» ou se é intersexo; a legislação deliberadamente não distingue nenhum desses casos, porque existem tantas diferenças lá pelo meio que cabe ao paciente e aos médicos decidir, de entre a panóplia de soluções que existem, o que é melhor para o seu caso particular. Da mesma forma, a legislação portuguesa nem sequer fala da orientação sexual das pessoas transgénero, evitando as «armadilhas legais» que existiram nos Estados Unidos antes dos anos 1990 em que as pessoas transsexuais eram excluídas dos tratamentos médicos se apresentassem uma orientação sexual «fora da norma» (ou seja, um transsexual MtF era «obrigado» a sentir-se atraído por mulheres para obter cirurgias, e vice-versa).
Em conclusão… Não é nada fácil explicar tudo isto, que me levou seis mil e tal palavras, numa conversa de dois minutos que tenhamos com alguém que nos pergunte, «olha lá, o que é isso de pessoas transgénero?» É muito fácil (hoje em dia) explicar às pessoas o que significa ter uma orientação sexual diferente da heteronormativa — podem rejeitar a ideia, mas pelo menos compreendem o que significa. Já a questão da identidade de género é um problema completamente diferente. Ainda por cima, porque existe tanta variação. Se me perguntarem «porque é que és homem e vestes roupas de mulher?» posso obviamente dar as minhas razões pessoais. Mas terei sempre de enfrentar a questão complicada que se segue de imediato: «se vestes roupas de mulher, porque é que não gostas de ter sexo com homens?» Tenho de explicar que sou ginefíliaca — um termo que ainda não está muito em voga e que quer apenas dizer «atracção romântica e sexual por mulheres». Tenho de explicar também que uma mulher lésbica não é «menos mulher» só porque só gosta de mulheres como parceiras românticas e sexuais. Mas tenho, principalmente, de ultrapassar a barreira muito complicada das pessoas que confundem os quatro aspectos, e que mesmo que consigam entender que esses aspectos existem, não percebem que são independentes uns dos outros. Seria a mesma coisa que dizer que uma pessoa tem de obrigatoriamente ser do Bloco de Esquerda, ser ateu, e gostar do Benfica. Ou ser do PP, ser católico, heterossexual, e gostar do Sporting. Essas coisas não estão, de todo, relacionadas entre si: são variáveis independentes. Mas a esmagadora maioria das pessoas foi condicionada para pensar que estão ligadas umas às outras.
A orientação sexual, para pegar num exemplo, é justamente o problema mais bicudo, e talvez aquele que seja mais difícil de explicar para as pessoas transgénero. O caso «clássico» da pessoa que tem o sexo biológico masculino, mas um corpo efeminado, e que desde a mais tenra idade sempre quis ser mulher e se sente fortemente atraíd@ por homens (mas que quer ter um corpo de mulher para ter sexo como uma mulher, não como um casal homossexual masculino), é aquele que é mais fácil de explicar, porque, no fundo, essa pessoa, após a transição, «encaixará» bem na sociedade heteronormativa: pode ter nascido com os genitais errados, mas uma vez transitando para o género feminino, terá o aspecto e comportamento habitual de uma mulher heteronormativa.
O problema é que a orientação sexual não é um binário, como já expliquei. Mesmo pessoas que se consideram heterossexuais podem ser bi-curiosas, mesmo que só em determinadas circunstâncias. Por exemplo, a maioria dos homens que conheço e que dizem ter interesse em sexo com crossdressers MtF, não considera que essa forma de sexo seja «homossexual». Tecnicamente — olhando estritamente para a questão biológica — trata-se realmente de um «acto homossexual». Mas na maior parte dos casos, o homem em questão está interessado é no género aparente da crossdresser; e esta, por sua vez, também se pode identificar fortemente com uma mulher andrófila (outro termo técnico para designar uma pessoa que é atraída romântica e sexualmente por homens). Assim, na cabeça de ambos, estão a ter uma relação heterossexual entre um homem e uma mulher — porque essa relação está a ser feita ao nível da identidade e expressão de género, e não ao nível genital ou biológico. A crossdresser em questão comporta-se e sente-se como uma mulher, mesmo que saiba que é uma «mulher diferente» por ter genitais que não são exactamente os habituais na maioria das mulheres. Mas esse aspecto biológico torna-se secundário na relação.
Da mesma forma, a maioria (e voltamos lá outra vez aos gráficos e diagramas da matemática…) dos homens homossexuais sentem-se fortemente atraídos por outros homens homossexuais, que se identifiquem claramente como homens, que se exprimam de forma masculina, que sejam biologicamente homens — mas que sejam andrófilos, ou seja, sintam atracção romântica e sexual por outros homens. Mas nem sempre é assim. Muitos homens homossexuais podem sentir-se atraídos por homens efeminados, ou mesmo por homens biológicos que se identifiquem com mulheres e que se apresentem e se comportem como mulheres. A interrogação que se coloca é se esses homens são realmente homossexuais, visto que aparentam mostrar atracção física e romântica por alguém que se parece com uma mulher. Mas neste caso, o inverso do anterior, para este tipo de pessoas o que interessa mesmo é o sexo biológico. Estes casos podem, por vezes, resultar em complicações — a pessoa na relação que se identifica com o género feminino pode acabar por entrar em transição, fazendo com que o parceiro, desiludido, perca o interesse sexual nela, pois esta deixará de ter as características sexuais primárias e secundárias de um homem.
Mais complicado ainda são os casos de fluidez de género e de orientação sexual. Essencialmente, estas pessoas até podem ser tecnicamente bissexuais, ou melhor, pansexuais (sentem-se atraídos por pessoas independentemente do género, e não apenas independentemente do sexo biológico que apresentam), mas exibem uma atracção sexual dependendo da apresentação do género. Isto não é nada fácil de explicar, mas este caso na realidade é mesmo bastante comum! É tão comum que até é difícil para a maioria das crossdressers que se encontram neste caso compreender que as restantes crossdressers não fazem parte do mesmo subgrupo…
Qual é a conclusão? Dada a extraordinária diversidade de indivíduos transgénero — efectivamente, cada caso é um caso — e a dificuldade de explicar que os aspectos de identidade e sexualidade são independentes um do outro, é mesmo muito, muito difícil explicar ao comum dos mortais o que quer dizer «transgénero». Mais difícil ainda é de explicar que as pessoas transgénero têm necessidades de direitos e de protecção diferentes das restantes pessoas. Estranhamos tudo o que seja novo e tudo o que seja diferente da «média» — da «norma», da normalidade. Ultrapassar a barreira da «estranheza» requer… familiaridade. Mas isto só é possível se as pessoas transgénero puderem, justamente, ter a liberdade de viverem a sua vida como qualquer comum mortal, no meio da sociedade, sem precisar de se esconderem ou de ocultarem a sua condição. As duas coisas são antagónicas: quando mais se esconderem, maior será o desconhecimento da sociedade quanto à sua existência; mas quanto mais se expuserem publicamente, maior é o risco de discriminação, ostracismo, ou mesmo violência. O equilíbrio não é fácil.
E para complicar ainda mais a situação, temos justamente as próprias associações LGBTI, que têm dificuldade de lidar com as pessoas transgénero (e ainda mais com as intersexo!). É que é fácil defender o direito a ser-se respeitado como pessoa independentemente da preferência sexual. É muito mais difícil defender os direitos das «pessoas transgénero» quando essa expressão aplica-se a uma vastidão complexíssima de indivíduos, cada qual com as suas necessidades bem distintas. E se nem mesmo as associações LGBTI conseguem «definir» a transgenderidade e defender as pessoas transgénero, quem o fará?
São coisas que me preocupam quando tenho de explicar a terceiros porque é que tenho cromossomas XY mas gosto de me vestir de mulher. Posso, evidentemente, explicar o meu caso individual. Posso até dizer que o meu caso não é muito diferente do de milhões de pessoas no mundo todo; no entanto, se for forçada a explicar-me com detalhe, terei de admitir que dentro do meu círculo de amig@s, a maioria delas não pensa como eu. Muitas, é certo, identificam-se com a minha maneira de estar e de ser. Mas a maioria não. Têm outras identidades de género, outras manifestações dessa identidade, outras preferências sexuais e românticas — e as minhas são diferentes e «estranhas» para el@s, tal como as del@s são estranhas para mim. É num grande espírito de tolerância mútua que nos compreendemos e aceitamos, mesmo sabendo que não coincidimos precisamente no mesmo espectro transgénero. Mas por vezes as nossas diferenças podem criar barreiras entre nós.
Talvez seja com uma certa ironia que o excesso de simplificação sobre a nossa condição conduza, na realidade, a uma melhor aceitação pela sociedade em geral. Sob sugestão de um@ amig@, quando apresento o nosso pequeno grupinho a pessoas cisgénero heteronormativas em espaços públicos, tudo o que digo é que somos um grupo essencialmente de homens que partilha um gosto comum: o de saír em público vestidos de mulher, comportando-nos de acordo com as normas sociais respeitantes ao género feminino. Digo que tal actividade é inocente — no sentido em que não tem mais nenhuma intenção senão a diversão — e que não é diferente de grupos de amigos que colocam barretes, cachecóis, e maquilhagem com as cores do clube de futebol de que gostam, e que vão ver os jogos em conjunto e depois vão jantar ou tomar um copo juntos. Ou seja, ser-se fã de um clube de futebol também implica roupa diferente, maquilhagem, e um comportamento e atitudes diferentes — e desde que não implique violência, tal actividade é socialmente aceitável em qualquer lado. Nós somos um pouco assim. Também usamos roupa diferente, também usamos maquilhagem, também adoptamos comportamentos e atitudes diferentes da que é vulgar na sociedade heteronormativa. E não queremos «provocar» ninguém, nem incomodar ninguém, apenas usufruir dos espaços públicos e conviver uns com os outros.
Explicando as coisas desta forma é notável o número de pessoas que nos aceita. Sim, talvez nos considerem excêntric@s, mas é uma excentricidade inocente, e, como tal, tolerável. Não precisamos de explicar pormenores complicados como os tais quatro aspectos. Se nos perguntarem, podemos dizer que algum@s de nós são casad@s com mulheres, têm filhos (e netos), e empregos vulgares. Na realidade, o nosso grupo inclui pessoas desde casais cisgénero heteronormativos, casais homossexuais, pessoas que são transsexuais (planeando ou não a transição), crossdressers fetichistas, pessoas com alguma fluidez de género… e crossdressers clássicas, não-fetichistas, que se sentem perfeitamente bem na sua identidade de género enquanto homens, mas que também adoram todas as oportunidades para se manifestarem de acordo com o género feminino, seja por divertimento puro, alívio do stress, ou qualquer outra razão.
Mas tudo isto é complicar a questão. A abordagem simplista pode ser tecnicamente incorrecta. Algum@s de nós podem sentir-se ofendid@s por serem chamad@s de «homens vestidos de mulheres». Mas se essa designação simplificada ajudar a explicar melhor a situação, e for capaz de despoletar maior tolerância e aceitação, então pessoalmente não vejo nada de mal em usá-la…