O meu amigo Libertino recentemente enviou no seu perfil do Facebook um relatório académico, da autoria de Júlia Mendes Pereira e Santiago D’Almeida Ferreira, chamado Esta é a minha identidade. Reconhecimento jurídico do género em Portugal. Como eu adoro estar a par destas coisas, li o documento com atenção (têm links mais abaixo para o mesmo). Todos sabemos como a Lei nº 7/2011 de 15 de Março (Diário da República, 1ª série — Nº 52) mudou drasticamente o panorama da comunidade transgénero em Portugal, ao tornar o processo de mudança de nome para as pessoas em transição de género um mero detalhe burocrático. A mesma lei também reconhece uma série de inovações que a tornou, na altura, a lei mais avançada do mundo. Em particular, permitia dissociar a «identidade de género» da necessidade de cirurgia e/ou terapia hormonal — por outras palavras, a identidade de género deixou de estar ligada ao corpo, ou, mais concretamente, às características sexuais primárias e secundárias.
Por outras palavras: em Portugal deixou de ser obrigatório ter um pénis para se ser homem, ou uma vagina para se ser mulher. Esses detalhes biológicos passaram a ser completamente irrelevantes à face da lei. O que conta, isso sim, é o género com que a pessoa se identifica.
Mas a lei ainda foi mais longe. Aboliu a necessidade de esterilização (que era uma pré-condição em muitos países, incluindo o nosso, para os transexuais FtM, por exemplo), por ser uma exigência degradante para o indivíduo (isto significa que em Portugal um transexual FtM pode dar à luz filhos de forma perfeitamente legal, apesar de ser legalmente homem). Também deixou de ser obrigatório o divórcio, como era frequente noutros países; dado que em Portugal está legitimado o casamento entre duas pessoas quaisquer, independentemente do género a que pertençam, isto passou a permitir que um casal heterossexual, caso um dos cônjuges transite de género, continuem legalmente casados à luz da lei, com todas as protecções que a lei concede aos casais (no caso de casais, no entanto, o cônjuge tem de dar autorização para a transição). Para a lei estar completa, faltou apenas ter sido aprovada a questão da co-adopção de crianças por parte do casal. Assim, se houver desejo de adopção, esta deverá ser feita antes do processo de transição dar início — nessa circunstância não há qualquer problema.
Também existem algumas particularidades interessantes que resultam da forma como esta lei foi aprovada. Assim, ao contrário do que existe noutros países, em Portugal não existem «transhomens» e «transmulheres». As pessoas que efectuam a sua transição de forma legal são pura e simplesmente designadas de acordo com o género com que se identificam. Tecnicamente, e do ponto de vista estritamente legal, não são «transexuais» após a transição, e muito menos pre-op antes da transição e post-op após a mesma, como fazem os americanos para distinguir entre os casos operados e não operados — nenhum desses casos existe em Portugal, pois não é nem a cirurgia, nem as hormonas, nem o DNA que definem a identidade de género. Assim, chamar a uma pessoa que terminou a sua transição de qualquer outra coisa que não seja «homem» ou «mulher» (assumindo que se identifiquem com o género binário) é na realidade discriminação.
Legalmente, uma pessoa só é «transexual» quando está em transição, ou, mais especificamente, a lei determina que são sinónimas a palavra «transexual» e a expressão «pessoa diagnosticada com perturbação de identidade de género». Assim, à luz da lei portuguesa, se alguém é diagnosticado com perturbação de identidade de género, é automaticamente classificada de «transexual» e goza da protecção que a lei lhe garante — independentemente se depois efectuar a transição ou não (e da escolha que fizer para a sua transição, com ou sem hormonas, com ou sem operação, com ou sem terapia de voz, etc.). Uma vez terminada a transição, são apagados dos registos e bases de dados quaisquer eventuais referências ao género que tinha antes de transitar. Só o novo género é reconhecido como legal.
Ora isto, em 2011, foi revolucionário, e estava mesmo na «crista da onda» do estado da arte da investigação médica, científica, e legal. Para grande azar nosso, um ano mais tarde, em 2012, as associações americanas de psicologia e psiquiatria, responsáveis pelas classificações de todo o tipo de perturbações mentais, eliminaram a expressão «perturbação de identidade de género». Houve várias razões para isso, mas a principal tem a ver com a noção de que uma pessoa identificar-se com outro género não é, por si só, um «problema». E nem sequer pode ser tratado ou curado, pelo menos não pela psiquiatria e pela psicologia. O que pode ser tratado, isso sim, é quando a pessoa sofre por não se identificar com o género que lhe foi atribuído à nascença, e esse sofrimento causa-lhe ansiedade, depressão, pensamentos suicidas, comportamentos obsessivo-compulsivos, ou outras perturbações mentais graves que impedem a sua vida quotidiana. É aqui que incide o trabalho dos médicos: diagnostica correctamente qual a condição da pessoa, e potencialmente indicar-lhe a transição como única cura conhecida para aquilo que passou a ser conhecido como disforia de género.
Mas se fosse só a questão da nomenclatura, isto era fácil de resolver: bastava fazer uma adenda à lei, indicando que «onde se lê perturbação de identidade de género leia-se disforia de género» e ficava assim o problema resolvido! O problema é que nos últimos quatro anos muito se investigou — e debateu — sobre o assunto, e a lei, tão revolucionária e liberal em 2011, já é um dinossauro obsoleto nos dias que correm.
Em particular, a lei é completamente omissa relativamente aos indivíduos intersexo. Trata-se de um conjunto de complicações, algumas genéticas, outras embriológicas, que fazem com que o sexo biológico à nascença não seja bem claro. Cito o relatório:
[…] pessoas cujas características sexuais [que] não são totalmente femininas nem totalmente masculinas; ou são uma combinação do feminino e do masculino; ou não são nem femininas, nem masculinas.
Ora tradicionalmente, pelo menos a partir dos anos 1980, era frequente o médico, à nascença, verificar que os genitais não estavam bem desenvolvidos, e realizar de imediato uma cirurgia tentando reconstruir os mesmos de acordo com aquilo que lhe parecia ser o mais indicado. Infelizmente, ao fazê-lo, muitas vezes apostava nos genitais «errados» e a pessoa em questão, mais tarde, passou a sofrer de disforia de género, não se identificando de todo com os genitais que lhe tinham sido «fabricados» à nascença.
Em países como o Reino Unido, a situação das pessoas intersexo é um caso especial: não requer sequer acompanhamento e avaliação psiquiátrica e psicológica. Assume-se que o género atribuído pelos médicos à nascença estava errado — se a pessoa intersexo assim o entender — e é o estado britânico que comparticipa integralmente a correcção cirúrgica e a burocracia legal associada à mudança legal de género. Conheço um caso assim (foi uma colaboradora minha em regime de freelancer), e o Governo de Sua Majestade até lhe atribuíu uma verba (não muito grande, mas sempre era alguma coisa) para poder mudar todo o seu guarda-roupa para o novo género…
Ora em Portugal esta situação ainda não está sequer contemplada: os indivíduos intersexo não têm qualquer protecção legal associada ao seu estatuto.
Mas podemos ir mais longe. Outro caso omisso na legislação portuguesa são os indivíduos que não se identificam com nenhum género — seja porque rejeitam totalmente a noção binária de género, seja porque exibem fluidez de género (apresentam-se como qualquer um dos géneros consoante o estado de espírito, ou exprimem-se de acordo com uma «fusão» dos dois géneros, ou ainda de uma forma que não é característica de nenhum dos géneros binários). Em Portugal, esses indivíduos são legalmente «forçados» a adoptar um dos géneros binários, contra a sua vontade, e também não gozam de nenhuma protecção legal especial. Consideremos o caso de uma pessoa que uns dias se veste de homem e se comporta como homem, mas outros dias veste-se de mulher e comporta-se como mulher, e só se sente bem consigo própri@ se puder ter a liberdade de mudar este comportamento de forma diária — mesmo no local de trabalho! Não existe nenhuma protecção jurídica que permita esta situação, ou que impeça que tal pessoa seja discriminada.
Neste caso existe ainda um problema adicional. A mudança de nome derivada a um processo de transição obriga a que uma pessoa escolha um novo nome de acordo com o género para que transitou, de acordo com a habitual lista «autorizada» de nomes (tal e qual como para o nascimento de uma criança). Desta lista constam muitos poucos nomes que sejam neutros em termos de género. Isto significa que uma pessoa que apresente fluidez de género, e que se identifica igualmente com um nome que seja neutro, dificilmente poderá escolher um nome desses. Um exemplo que me ocorre: «Alex» é um diminutivo corrente que pode ser de qualquer género. Mas em Portugal ninguém se pode registar com o nome «Alex». Terá de ser sempre «Alexandre» ou «Alexandra».
O que este relatório propõe, pois, é uma revisão muito mais vasta e abrangente da documentação (Cartão de Cidadão) e legislação adequada (informação/divulgação, protecção, combate à discriminação…). Em particular, sugere uma modificação drástica ao conceito em si, e, seguindo o exemplo de países como a Argentina (em 2012) ou Malta (em 2015), propõe que seja introduzida a noção do direito à identificação de género e à livre expressão do mesmo como um direito fundamental e inalienável.
Isto dito desta forma parece ser pacífico — afinal de contas, tal como é um direito inalienável identificarmo-nos com um país (a nossa nacionalidade), também faz sentido que tenhamos o direito a identificarmo-nos com um género ou outro (ou ambos, ou nenhum). Já que o processo de transição em Portugal é suficientemente liberal para desassociar as características sexuais da identidade de género — ninguém é obrigado a «mudar» as suas características sexuais, se assim não o entender — então faz sentido estender o âmbito desta « desassociação» de uma forma muito mais abrangente: concedendo o direito, a cada cidadão, de decidir a que género quer pertencer (ou o direito a não pertencer a nenhum dos dois géneros binários, se assim o entender).
O problema aqui está que essa «decisão», neste momento, não cabe ao cidadão. Cabe, isso sim, aos médicos que o acompanham na transição. E aqui o relatório aponta outras falhas: a lei de 2011 diz que a elaboração do relatório médico com o diagnóstico de disforia de género tem de ser elaborado por uma equipa multidisciplinar que inclua psiquiatras e psicólogos com a especialização em sexologia clínica. Até aqui tudo bem. Mas foi justamente no mesmo ano em que saíu a lei que foi criada a Ordem dos Psicólogos Portugueses, acabando assim com as várias organizações, associações profissionais, sociedades e afins pelas quais os psicólogos se distribuíam, e existindo finalmente uma entidade única que coordena todas as especialidades — no entanto, na altura em que o relatório foi escrito, a especialidade de «sexologia clínica» praticamente não existia (embora houvessem psicólogos que a tratassem); mesmo a nível da Ordem dos Médicos, só em 2014 é que a Ordem lançou os alicerces para a constituição de um colégio com esta especialidade, mas nos critérios de admissão a este colégio não é referida a necessidade de conhecimentos e experiência a lidar com pessoas transgénero.
É certo que em 2015 as coisas já estão um pouco mais sistematizadas (no Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa, antigo Hospital Júlio de Matos, onde eu ando a ser acompanhada, já existem equipas multidisciplinares de sexologia clínica — e disseram-me que o mesmo se passa, em Lisboa, no Hospital de Santa Maria e no Hospital Egas Moniz; em Coimbra, no Hospital Universitário; e no Porto, no Hospital de São João. Mas não posso confirmar isto!), mas o entendimento dos autores do relatório é no sentido de alertar a população em geral que a decisão última sobre a identidade de género das pessoas está actualmente nas mãos de uma classe médica que pode ou não ter a preparação adequada para tomar essa decisão. Se bem que evidentemente que o cidadão em si é consultado — e normalmente parte deste o desejo de optar por determinada identidade de género — o certo é que a decisão não está nas suas mãos.
Compreende-se o entendimento do legislador por optar por esta solução. A transição, em Portugal, é integralmente comparticipada com dinheiros públicos (até as consultas de sexologia clínica não pagam taxa moderadora!). É, pois, importante que este processo — bastante caro em termos de cirurgia, por exemplo — seja adequadamente acompanhado por quem se responsabilize de que se está a tomar uma boa decisão. Não se deseja, evidentemente, que uma pessoa gaste dinheiros públicos para obter uma série de tratamentos que, no final, não é nada do que se pretendia — deixando a pessoa numa situação pior que antes!
Mas é aqui que o relatório aponta a falha legislativa. Ninguém coloca em questão que devem ser as equipas médicas a autorizar os tratamentos clínicos. O que se questiona é o alargamento das competências dos médicos para áreas jurídico-burocráticas, do direito dos indivíduos: neste caso concreto, os médicos decidem não só sobre as cirurgias e a terapia hormonal (e de voz, etc.), mas também sobre a documentação burocrática que comprova o género de determinada pessoa.
Se quisermos olhar para um caso extremo, absurdo, a fim de ilustrar melhor a situação, isto é o equivalente a imaginar que seria a equipa médica que acompanha o nascimento de uma criança que decide se essa criança é um cidadão ou não — independentemente da criança, ao nascer, precisar ou não de tratamentos médicos.
Estamos, pois, a falar de duas esferas distintas, que na legislação de 2011 confluem numa só. Por um lado, há a decisão médica, feita por especialistas, que gastam dinheiros públicos para tratar um doente. Este caso é pacífico: é evidente que tais decisões devem, de facto, estar nas mãos daqueles que são tecnicamente mais competentes para as tomar, e que se podem igualmente responsabilizar (através dos seus códigos deontológicos) pela boa prática no emprego desses dinheiros para o tratamento.
Pelo outro lado, há o direito do cidadão a apresentar-se, perante a lei e os organismos públicos e privados, de acordo com o género com que se identifica. Isso nada tem a ver com uma decisão médica ou clínica. Tem a ver com um processo meramente burocrático. Tal como qualquer pessoa tem o direito de mudar de nome em Portugal — eu já o fiz; é um processo longo, mas está ao alcance de qualquer um — também deveria ter o direito de decidir a que género pertence. E, já agora, deveria obrigatoriamente estar contemplada a possibilidade de decidir não pertencer a nenhum género, se assim o entender.
Vejamos o que isto implica em casos práticos. Actualmente, uma pessoa que dê início ao processo de transição pode logo mudar de nome e de género, do ponto de vista burocrático. Isto é propositado, porque se considera, em Portugal, que as pessoas são excessivamente discriminadas enquanto fazem o «teste de vida real» por terem ainda documentação com o nome e o género que já abandonaram. A transição também pode levar mais ou menos tempo, e incluir mais ou menos tratamentos e cirurgias, e este aspecto clínico da transição diz apenas respeito aos médicos e aos seus pacientes, não à população em geral; esta apenas precisa de se certificar de que o nome e o género que constam dos documentos de identificação são aqueles com que a pessoa efectivamente se identifica, independentemente do «estágio» que estiver na sua transição.
No entanto, é sabido que muitas pessoas transgénero não pretendem uma transição clinicamente assistida, pelas mais diversas razões. Nalguns casos, pura e simplesmente a sua condição mental não se enquadra no perfil de «disforia de género». No entanto, a opção de viver a sua vida de acordo com um género com que se identificam deve ser uma liberdade garantida a todos os cidadãos. Por outras palavras: não deveria ser necessário ser-se diagnosticado com uma perturbação mental para se ter a liberdade de optar pelo nome e pelo género com que se identifica. Melhor ainda: o facto de alguém se identificar com determinado género e querer ser tratado/a por determinado nome não quer dizer, de todo, que tem uma «perturbação». Só a terá se de facto sofrer mentalmente de uma série de patologias como ansiedade, depressão, etc. Mas muitas pessoas não sofrem nada disto, e pretendem mesmo assim ser identificadas como pertencentes a outro género que não o que lhes foi atribuído à nascença. Ou seja, não configuram nenhum quadro clínico, mas também não têm nada que «estar doentes» para poderem decidir a que género pertencem! Pelo contrário, até se poderá considerar que justamente alguém que não sofra de nenhuma perturbação mental tenha maior capacidade para tomar uma decisão acertada quanto ao género com que desejam, efectivamente, ser identificados.
Esta é, pois, uma proposta de alteração não só da legislação específica sobre a mudança de sexo e de nome próprio no registo civil, como a Lei 7/2011 determina, mas uma mudança proposta muito mais abrangente, a nível de direitos individuais (e que requer mudanças constitucionais) e com implicações sociais muito mais vastas!
Vou dar o meu exemplo…
Suponhamos que ao fim de alguns meses de acompanhamento no Júlio de Matos os médicos concluem que eu na realidade não sofro nada de disforia de género, tenho apenas uma depressão atípica que se cura ao fim de uns anos com uns medicamentos e alguma terapia. De acordo com a legislação actualmente em vigor, termina assim o meu processo, uma vez curada a depressão. Note-se que esta é a situação mais provável!
Segundo a proposta dos autores deste relatório, no entanto, eu poderia decidir muito bem que, independentemente da decisão dos médicos quanto ao meu caso, queira continuar a viver o resto dos meus dias como mulher. Talvez não conseguisse obter as cirurgias e a terapia hormonal através do Estado, e teria de pagá-las do meu próprio bolso, mas isso é uma opção minha. O que queria era, mesmo assim, mudar o meu nome e género, e, portanto, apresentava-me no Registo Civil para tirar o meu novo Cartão de Cidadão, vestida de mulher, e que ficaria com este aspecto:
De acordo com esta proposta, ninguém me poderia impedir de fazer justamente isto, e a proposta até acrescenta que este serviço deveria ser gratuito (actualmente, mudar o nome e sexo no CC custa €200).
Mas podia ir mais longe. De acordo com esta proposta de legislação, nem sequer seria «obrigada» a andar vestida de mulher o tempo todo. Ou seja, podia não realizar nenhuma cirurgia; poderia não tomar nenhuma hormona; podia usar barba comprida e roupa de homem; e mesmo assim teria o direito inalienável de andar com aquele Cartão de Cidadão no bolso, a identificar-me como «Sandra M. Lopes», pertencendo ao género feminino — apenas porque seria o meu direito.
É evidente que estamos a muitos anos de distância para que tal situação fosse possível, e acredito que mesmo que este relatório seja discutido na Assembleia da República, e que até mereça um parecer favorável, tenho quase a certeza absoluta que, no mínimo, a questão iria ser referendada.
E é muito fácil, neste caso, usar argumentos contra esta proposta. Basta pensar na confusão que seria a nível do desporto, por exemplo; dado que ambos os sexos competem em competições separadas (excepto em raríssimos casos, como na vela…), seria um pouco estranho um corredor de 100m, nascido como homem, «identificar-se» com o género feminino, e exigir assim que passe a poder competir nas provas femininas — onde terá muito mais vantagens competitivas!
Da mesma forma, se for aprovada a lei que irá determinar que seja obrigatório a contratação de mais mulheres para os quadros superiores das empresas cotadas em bolsa (um princípio de discriminação positiva muito discutível, mas que está, justamente, a ser discutido…), uma «estratégia» curiosa para um potencial homem candidatar-se a uma vaga na administração da sua empresa seria mudar legalmente de género e beneficiar desta lei para passar à frente de outras pessoas… O mesmo se passa nas candidaturas a incentivos para criação de empresas «por parte de mulheres».
Já não falando de casos mais ridículos como certas mulheres, fartas de ficarem horas à espera para entrarem na casa de banho nos locais públicos — por exemplo, nos intervalos do cinema — pedirem a mudança de género para homens, tendo assim pleno direito de usar as casas de banho destes. Bem sei que em Portugal não temos tanta obsessão com esta questão das casas de banho como têm os americanos, mas a verdade é que dar plena liberdade aos indivíduos de escolherem o seu género pode ser «abusada» (e sê-lo-á de certeza), pelo que todos estes casos potenciais serão imediatamente referidos numa eventual discussão pública deste relatório…
Os autores do mesmo são omissos em relação a esta discussão, porque entendem que a esmagadora maioria da população já tem o registo civil do seu género de acordo com o género que se identificam e que não o iriam mudar por causa de eventuais benefícios que gozassem se fossem membros do género oposto. Julgam, talvez de forma inocente, que apenas as pessoas transgénero estariam potencialmente interessadas num processo burocrático simplificado para mudarem de género legalmente. No entanto, a partir do momento em que a mudança de género legal permite acesso a benefícios ou vantagens, é evidente que essa mudança será abusada.
Num Estado de Direito ideal, não existiriam discriminações entre os géneros, e, por consequência, também não seria necessário haver legislação distinta para equilibrar as assimetrias causadas por essa discriminação. Mas a discriminação das mulheres existe, pelo que o Estado as protege mais, pelo menos a nível legal. Ora a liberdade de escolha do género permitiria a homens genéticos a mesma protecção e o mesmo acesso a essa legislação de discriminação positiva, apenas mudando a letrinha «M» para «F» no Cartão de Cidadão.
É um problema complicado!
Poder-se-ia então admitir que, para prevenir o «prevaricanço», seria necessário constituir uma Alta Autoridade Para a Atribuição do Género — talvez envolvendo especialistas médicos, juristas, sociólogos, etc. — que dariam o seu aval a um eventual pedido de alteração de género nos documentos de identificação. Mas esta entidade não seria muito diferente das actuais equipas médicas multidisciplinares. Portanto, mais uma vez, para prevenir abusos, estar-se-ia a colocar o controlo de um direito presumivelmente inalienável nas mãos de terceiros, que é precisamente o que se pretende evitar com as propostas expressas neste relatório.
Também seria complicado determinar, do ponto de vista jurídico, em que é que consiste um «abuso». Suponhamos que um homem decide mudar de género (mas não de expressão de género, nem sequer de nome) apenas para poder candidatar a sua empresa a fundos europeus que são apenas atribuídos a empresas constituídas por mulheres. É crime? Há, evidentemente, uma intenção de iludir o sistema e tirar partido do mesmo. Um jurista poderá dizer que existe dolo: ao candidatar-se, e sabendo que os fundos não são ilimitados, este indivíduo pode estar a evitar que uma mulher genética se possa candidatar também.
Mas como distinguir este caso de um caso em tudo idêntico mas em que o «homem» em questão sempre se identificou com o género feminino, e que tal identificação pode ser atestada clinicamente? Nesse caso, será que a pessoa se pode candidatar aos mesmos fundos, apesar de não ter nascido mulher?
Não haverá depois o problema destas leis de discriminação positivas que favorecem um ou ou outro género levarem uma reformulação, em que passam a determinar que se aplicam não ao género legal, mas sim ao género biológico à nascença?
Mas isso seria perverter, uma vez mais, todo o conceito. Uma pessoa transexual não tem qualquer culpa de ter nascido com o género biológico errado. É moralmente injusto que essa pessoa seja discriminada porque teve o azar de ter nascido com os genes errados. Nas palavras de Kat Callahan, transexual e activista LGBT: «Não tenho (…) um corpo saudável. (…). A testosterona estava a prejudicar-me.» Ou seja: existe um entendimento (contemporâneo) que a condição transgénero é uma espécie de defeito genético ou doença endémica com que nascemos: devíamos ter nascido com determinado corpo de acordo com a nossa identidade de género, mas algo correu mal, e fisicamente somos deficientes — não temos o corpo que devíamos ter. A transição permite pelo menos corrigir alguns dos problemas piores (mas não todos) e dar-nos uma oportunidade de vivermos uma vida mais saudável.
De notar que Kat Callahan teve várias más experiências com a comunidade médica, e, tal como os autores do relatório, também é da opinião que a decisão relativamente à identidade de género não deve estar nas mãos dos médicos, mas apenas o próprio é que deveria poder tomar essa decisão. O papel dos médicos, segundo Callahan, deve estar limitado a «lidar com a burocracia» (nas suas palavras, no original em inglês: jump through the necessary hoops) para obter os procedimentos médicos e o tratamento adequado. Não deve existir um sentimento «paternalista» por parte da classe médica, que tenha o «direito» de decidir como queremos viver a nossa vida.
Ambos os lados do argumento são, obviamente, intrincados. Pessoalmente acho apenas que o relatório deveria ter contemplado o cenário em que a liberdade total de identificação de género conduzirá a abusos — e esses abusos podem incluir fraudes, processos em tribunal, etc. que também custam dinheiro aos contribuintes. Por outro lado, as pessoas transgénero não devem ser discriminadas ao ponto de lhes ser negada a identificação com o género que pretendem, só porque não cumprem determinados critérios (sobre os quais não têm qualquer influência); e para além dos casos das pessoas transgénero que se identificam com géneros binários, há todos os outros restantes casos que não se identificam com nenhum dos géneros ou com ambos, e que têm de ser obrigatoriamente contemplados pela legislação de acordo com o princípio de que nenhum cidadão pode ser discriminado.
Gostaria, talvez, de sugerir uma reflexão sobre este ponto da liberdade absoluta de identificação com um determinado género (ou nenhum, ou ambos):
Em países como Portugal (por oposição ao Brasil ou aos Estados Unidos), as pessoas não podem escolher qualquer nome, mas apenas um nome de entre uma lista oficialmente aprovada. Isto é de propósito, para evitar que as pessoas chamem aos seus filhos nomes como «Fodelícia dos Santos» ou coisas semelhantes (sim, existem imensos casos desses no Brasil ou nos Estados Unidos…), que depois irão traumatizar as crianças na infância, e que lhes poderá limitar o acesso ao mercado de trabalho, como mostram alguns estudos.
É verdade que isto, de certa forma, é uma «limitação» à liberdade de expressão dos cidadãos portugueses, pois não podem escolher exactamente o nome que querem, mas apenas um nome de entre os nomes «aprovados». Mas poder-se-á argumentar que esta restrição (não lhe chamemos limitação) tem como objectivo assegurar que, no futuro, a qualidade de vida dessa pessoa não seja prejudicada pela escolha de um nome absurdamente ridículo, e essa parece ser uma conclusão dos estudos que foram feitos em países onde há absoluta liberdade na escolha dos nomes das pessoas.
Ora aqui temos sempre de compreender que não existem liberdades absolutas; existe, sim, um maior ou menor grau de liberdade, de acordo com condicionamentos externos, de forma a que a sociedade funcione melhor.
Um exemplo típico: podemos fazer o que quisermos na privacidade das nossas casas, e ninguém tem o direito de interferir com as nossas actividades (desde que não sejam criminosas, claro está). No entanto, se colocarmos a música alto demais — mesmo que invoquemos o nosso direito à liberdade de expressão, manifestada em música tocada em altos berros — os vizinhos podem queixar-se e dizer à polícia que nos mande baixar o som. Isto porque a nossa liberdade de expressão não se pode sobrepor ao direito à privacidade de terceiros, ao direito que também têm de estar sossegados e em paz.
Quando entramos em campos mais polémicos, é importante ter em conta igualmente os efeitos económicos, em especial quando se trata de finanças públicas. Uma das principais razões para a descriminalização das drogas em Portugal é que o custo de manter brigadas anti-droga, que passavam o tempo a mandar cidadãos semi-inocentes para a cadeia só por snifarem um risco de cocaína, eram muito mais elevados do que os actuais custos de criação de redes de clínicas de desintoxicação. As polícias, em vez de se preocuparem com um charro fumado aqui ou ali às escondidas, dedicam os seus recursos e tempo a desmantelar redes de tráfego de droga. Isto poupa dinheiro ao erário público; aumenta a eficiência das polícias nas tarefas que são realmente preocupantes do ponto de vista social; e ainda sobra dinheiro para montar clínicas de desintoxicação. Talvez surpreendentemente, a descriminalização também reduziu drasticamente o número de toxicodependentes.
Da mesma forma, uma das razões para aprovar a lei do aborto nada tinha a ver com moral ou ética. É que enquanto era proibido realizar abortos (excepto nas raríssimas excepções previstas na lei), as pessoas iam abortar a clínicas «piratas» sem quaisquer condições, sendo-lhes extorquidas enormes quantias, e criando-lhes graves complicações médicas — que depois tinham de ser resolvidas nos hospitais públicos. Enquanto que a classe alta, com dinheiro para viajar para o estrangeiro, podia abortar nas melhores clínicas do mundo, com toda a confiança. Portanto existia aqui uma forte discriminação — os pobres eram sujeitos a problemas e complicações médicas por causa da lei — mas também um custo agravado para o Estado — pois os casos todos de complicações médicas com abortos feitos ilegalmente em clínicas sem condições tinham depois de ser tratados, a custos substancialmente mais elevados, nos hospitais públicos. A solução foi legalizar o aborto e praticá-lo nos hospitais públicos. Assim acaba-se com a discriminação segundo a classe social, mas praticar um aborto em ambiente clínico em condições é substancialmente mais barato do que resolver complicações criadas por abortos feitos ilegalmente em péssimas condições.
Se pensarmos desta forma — qual é o maior benefício para a sociedade e qual é a maior poupança para o Estado — podemos encarar a situação em torno da identidade de género de uma forma muito mais pragmática. Por exemplo, porque é que as cirurgias e os tratamentos hormonais são gratuitos para os transexuais clinicamente diagnosticados como tal? Porque o custo da transição, para o erário público, é muito inferior do que estar a tratar as pessoas a vida toda com depressões, ansiedade, e outras perturbações mentais devidas à sua disforia de género; uma transição feita com sucesso «elimina» a disforia de género, e passa a devolver qualidade de vida ao indivíduo, que (idealmente) voltará a ter uma vida normal, funcional, e a pagar impostos como qualquer outro cidadão. Em contraste com isto, negar uma cirurgia/tratamento por questões «morais» pode implicar ter de cuidar desta pessoa durante anos e anos, em que esta cada vez se sentirá pior com a sua situação e terá de recorrer mais a tratamentos psiquiátricos e terapia, a medicamentos para lidar com a depressão e ansiedade, etc.
Assim, a «cura» para a disforia de género — a transição — não só tem como objectivo tratar o «paciente», mas também, indirectamente, é a solução mais barata (para o Estado) que permite a um cidadão voltar a levar uma vida normal.
Usando este argumento ou linha condutora, parece-me a mim que o critério para a aceitação livre da identificação de género deveria ter por base o princípio que o Estado não iria desembolsar tanto dinheiro com esse cidadão. Nos casos de disforia de género clinicamente assistida, esse princípio está garantido; nos restantes casos, se o objectivo da mudança legal de género é apenas para ter acesso a fundos, subsídios, ou apoios financeiros (provenientes de dinheiros públicos) que doutra forma não seriam possíveis, então a alteração deveria ser negada.
Fica aqui a dificuldade, claro está, em determinar a priori estes casos! Pois obviamente que qualquer pessoa responderá «não» se tiver de preencher um formulário que lhe pergunte «após a mudança de género, vai pedir alguma forma de incentivo social ou de apoio financeiro?»
Há algumas possibilidades que me ocorrem. Uma delas é o de colocar uma data limite para esses pedidos, por exemplo, cinco anos após a mudança legal de género; isto evitaria logo que aparecessem os «oportunistas instantâneos» (embora não evitasse os oportunistas calculistas que pensam a longo prazo).
A outra poderia ser a exigência de apresentação periódica junto de um assistente social, que indagaria sobre a adaptação ao «novo género». Repare-se que, no caso do diagnóstico de disforia de género, este papel é representado por um médico ou psicólogo, e regulamentado segundo um protocolo clínico; portanto, neste aspecto, não haveria nada a mudar. Nos restantes casos, contudo, talvez faça sentido esta «exigência» de uma entrevista regular com um assistente social. Os «engraçadinhos» que resolvessem mudar de género «só por piada» depressa desistiriam da ideia de terem de passar umas horas todos os meses a falar com uma pessoa sobre a sua «nova vida» no género com que se identificam. Pelo contrário, aqueles que realmente se identificassem com esse novo género não veriam grande problema em ter este tipo de reuniões periódicas para lhes garantir o direito a terem o «F» ou «M» ou «O» («Outro») no Cartão de Cidadão. Também estas apresentações ou entrevistas poderiam ter uma duração limite no tempo, por exemplo também cinco anos.
Acredito que mesmo assim seja possível subverter o sistema! Mas também não estive a pensar longamente sobre o assunto, como fizeram os autores do relatório, que são especialistas na área e é essa a sua função.
Mas para manter o debate aceso, e sabendo que será inevitavelmente polémico, é importante ver as coisas dos dois lados do debate. Vão haver contestações à proposta legislativa, seja pela via ética/moral (onde é mais fácil de «desmontar» os argumentos), seja pela via da «aldrabice», característica inata de muitos portugueses que aproveitarão o pretexto para tirar benefícios de uma legislação mais liberal, à custa do Estado. Assim, é importante para quem defenda esta proposta (que é claramente o meu caso também!), estar ciente dos contra-argumentos que vão ser apresentados, e ter já de antemão preparada uma resposta satisfatória.
Como já existem pelo menos dois países que garantem aos seus cidadãos o direito a determinarem o seu género livremente (Argentina e Malta), é mais fácil debater este assunto em Portugal: basta considerar as estatísticas destes países e ver como lidaram com os problemas que foram aparecendo. Uma boa proposta legislativa para reformular o direito à auto-determinação do género de forma livre terá em conta as boas práticas de países que já colocaram esse direito em vigor e que já têm casos de estudo sobre o que correu bem — e sobre o que correu menos bem.
Para terminar, deixo-vos com o texto integral do relatório elaborado por Júlia Mendes Pereira e Santiago D’Almeida Ferreira; obrigada a ambos pelo excelente trabalho que fizeram, e obrigada ao Libertino e à Xaninha por me terem chamado a atenção para o mesmo!
Se não o conseguirem ver, também podem descarregar o PDF do artigo aqui: API_esta_e_a_minha_identidade