É uma característica da nossa sociedade, ainda a recuperar de meio século de intolerância, rigidez de costumes, formalismo, e todas essas coisas que associamos a uma certa inércia (ou mesmo estagnação!) social, de gostarmos de encaixar as pessoas em caixinhas pequeninas e colocarmos-lhes um nome em cima. E só temos duas caixas: a branca e a preta. Se não conseguimos encaixar uma coisinha que seja na caixa branca, vai logo para a preta. Não há meio-termo.
Nesse sentido, acho os portugueses socialmente imaturos. Fomos catapultados em 1974 para uma sociedade “livre” (no sentido em que obrigamos constitucionalmente a que todos nos toleremos uns aos outros), mas ainda não “aprendemos” a lidar com essa liberdade. Pensamos, erradamente, que esta se aplica apenas a nós, enquanto indivíduos. Mas não extrapolamos para o passo seguinte: que a graça que nos foi concedida dessa liberdade também tem de ser aceite no próximo. Não apenas em nós próprios!
Na minha vida pessoal e profissional, tenho a sorte de lidar diariamente com pessoas de todo o mundo, de muitas culturas, de muitos extractos sociais, de idades bem diferentes, e com educações distintas. É fácil para mim aceitá-los a todos; e também é fácil analisá-los, compreendê-los, e perceber como as suas sociedades funcionam e lidam com esta dádiva tão complicada que é aceitar que todos temos o direito de sermos como somos.
É fácil perceber quão avançados são os países anglo-saxónicos, ou os holandeses, ou os alemães. Pelo menos metade deles (não falo da outra metade!) partem do princípio que os seus interlocutores são, acima de tudo, seres humanos. Claro que são diferentes! Todos somos diferentes, pensamos de forma diferente, temos os nossos valores morais e éticos diferentes. Mas a diferença nas sociedades mais evoluídas, menos estagnadas, e que não passaram pelo “constrangimento social” que nós passámos, aprenderam o que quer dizertolerância. Não é pura e simplesmente dizer que somos todos iguais (com os mesmos direitos e oportunidades), mas sim aceitar que os outros são diferentes. E a palavra-chave aqui é o aceitar. Aceitar não implica “gostar”; também não implica colocar toda a gente na caixinha branca. Significa apenas que temos mais caixinhas, em vários tons de cinzento, e que temos muito mais opções para colocar as pessoas em tantas caixinhas, e de criar novas caixinhas se as que tivermos não servirem.
Aqui em Portugal, passámos da fase em que só estávamos autorizados a usar a caixinha branca, e agora temos duas: a branca e a preta. A caixa preta é “aceite”, mas é a única opção para quem não teve a sorte de ser colocado na caixinha branca.
Vou dar dois exemplos. O primeiro é o que se vê por esses sites fora das comunidades portuguesas. Agora que podemos livremente mostrar os nossos dotes sexuais, enchemos a Internet com fotos de pénises descomunais e decotes até ao umbigo. E dizemos claramente que estamos disponíveis; deixamos o contacto no perfil; mostramos imagens do que estamos dispostos a fazer, e pedimos contactos para quem o queira fazer connosco.
Muitos colocam estas pessoas nas caixinhas pretas; muitos nas brancas; mas em ambos os casos, aceitamos que existam. Podemos sentirmo-nos incomodados (ou seja, colocá-las nas caixinhas pretas), mas não os rejeitamos. Já fazem parte da nossa sociedade.
O outro tem sido frequentemente discutido — fumadores e não-fumadores, que mais uma vez ou se está numa caixinha, ou na outra. Os governos querem, por um lado, atirar os fumadores das caixinhas brancas para as pretas, mas sem perder os impostos que ganham à conta disso. É uma situação complicada — deixa de fora os que são viciados e consideram-se como tal (e, tal como os toxicodependentes e alcoólicos, deviam receber apoio do Estado para combater o vício); deixa de fora os que são indiferentes (não se importam se uma pessoa fuma ou não); e não dá espaço para o “fumador ocasional” ou “fumador social” (ao contrário do que se passa com os “bebedores sociais”, pois este se quiser fumar, não o pode fazer nos espaços públicos. Não há meios-termos; ou se é fumador, ou não se é.
Como temos poucas caixinhas, colocamos tudo (por simplificação) numa caixa apenas, a que for mais conveniente, e se for caso disso, vamos passando as pessoas de uma para a outra, dependendo do que nos convier mais. Alguém que goste de lingerie provocante? Bom, posso colocá-la na caixa branca para já. Gosta de noites loucas de sexo escaldante?… Bom, talvez a deixe na caixinha branca. É fumadora?…. Eh lá. Isso já não pode ser; toca a metê-la na preta! (E se calhar aproveito para lá meter todas as meninas em lingerie reveladora que gostem de sexo escaldante, porque se são fumadoras, devem ser umas perversas!). Mas não é preciso ir muito longe. Aos poucos e poucos, quanto mais e melhor conhecemos uma pessoa, mais vamos aprender sobre o que as motiva, e maior é a probabilidade de não as conseguir encaixar na caixinha branca e ter de a meter imediatamente na caixinha preta…
Na nossa mente — ainda “moldada” por uma mentalidade retrógrada que está a dar os seus primeiros passos numa sociedade mais tolerante (nem que seja por decreto governamental!) — pré-concebemos os atributos ideais de cada uma das caixinhas, preta ou branca. À medida que vamos conhecendo mais sobre as pessoas (ou mais pessoas!), vamos acrescentando novos atributos para essas caixas. Subitamente chegamos à conclusão que, a dada altura, não existe ninguém na caixa branca… toda a gente vai parar para a preta!
Esse é o estado em que está a nossa sociedade hoje. Ao invés de compreender que sempre que descobrimos uma nova característica de uma pessoa, deveríamos abrir uma caixinha só para ela e colocá-la lá — mas que essa pessoa não deixa de ser “menos humana” por isso! — preferimos, confortavelmente, de acordo com uma mentalidade pré-1974, continuar a aumentar os atributos das duas caixas, pretas e brancas. E invariavelmente vamos descobrir que o número de atributos da caixa preta está constantemente a aumentar…
Eu sei que estou na minha própria caixinha, de um belo tom de cinzento com toques de lilás, e que estou muito bem onde estou — e tenho milhentas caixinhas, uma para cada um dos meus amigos e conhecidos. O que não tenho é nem uma caixa preta, nem uma branca. Acabei com isso décadas atrás, ainda na minha adolescência.
As pessoas são como são, e aprendi a aceitá-las exactamente como são. E é só isso que vos peço. Antes de me acrescentarem aqui como “amiga”, pensem bem se querem mais alguém para a vossa caixinha branca (pois eu não vou lá encaixar-me!), ou se já aprenderam a meter-me numa caixinha própria. Se o conseguirem fazer, podem contar comigo!