Uma das coisas que «confunde» imenso quem se começa a interrogar sobre a sua identidade de género é a dificuldade de compreender «que raio de bicho sou?».
Devido à falta de informação sobre o assunto nos meios de comunicação social e/ou na escola, onde é suposto também aprendermos qualquer coisa sobre a variedade da nossa sociedade, é difícil lutar contra a vastidão de preconceitos e ideias erradas que por aí andam. As coisas não se simplificam quando o próprio meio científico — e as comunidades transgénero — também alimentam essa confusão, com estudos contraditórios que têm de ser revistos todas as décadas, ou com discussões intermináveis e expulsões de grupos de pessoas transgénero que consideram que a «sua» forma de estar na vida é a correcta, e que todas as restantes estão erradas.
Recentemente estava a ler um artigo de uma amiga minha, em que ela se lamentava do mau tratamento que teve dentro de uma comunidade BSDM a que pertencia, e que se auto-denominavam «pessoas de mente muito aberta», mas que depois a criticaram — e gozaram em público! — quando souberam que era crossdresser. Ou seja, por um lado, falavam da sua abertura de espírito; pelo outro, infelizmente, mostravam por actos que as suas palavras não passavam de mera hipocrisia.
O mesmo se passa no seio das comunidades transgénero; exactamente da mesma forma que manifestam «abertura de espírito» e que «exigem» que a sociedade as tolere e aceite, são depois as primeiras a criticar X ou Y porque X não é uma «verdadeira crossdresser» ou porque «BDSM não tem nada a ver com isto» ou ainda, «se gostas de te vestir de mulher mas não gostas de sexo com homens, para que te dás a esse trabalho todo??»
Em Portugal, se seguirmos as mesmas estatísticas dos países ocidentais, deveremos ter entre mil a dez mil pessoas transgénero — entre todo o espectro, desde as pessoas que apenas imaginam que são um membro do género oposto, e que isso as excita/satisfaz, às que de facto terminaram o seu processo de transição (e que, pois, por definição, deixam de ser transgénero!). Estas estatísticas são, no entanto, muito difíceis de estabelecer. A esmagadora maioria da população transgénero não quer, de todo, responder a inquéritos, por mais anónimos que sejam, ou por mais «disfarçados» que estejam — desconfiamos sempre de que nos querem descobrir os segredos mais íntimos. Por exemplo, imaginem um inquérito disfarçado sobre a nossa preferência em refrigerantes, e que algures lá pelo meio venham perguntas do género: «Imagine que é uma mulher. Gostaria de beber Coca-Cola em vez da sua bebida habitual?» ou coisa parecida. O que se tem mostrado nos estudos é que mesmo este tipo de perguntas «disfarçadas» acabam por dar pouco resultado em termos de tentar descobrir a extensão da população transgénero, porque esta é muito desconfiada (por razões óbvias de estigma social). No extremo oposto, nos anos recentes, parece que subitamente há homossexuais por todo o lado, coisa que tem preocupado imenso certos heterossexuais homofóbicos, porque consideram que esta «moda» está a alastrar, e querem acabar com isso (vejam-se as leis recentes na Rússia e agora até na Índia…). Na realidade não há «mais» homossexuais do que dantes; o que há, isso sim, uma maior tolerância e aceitação, uma diminuição do estigma social de se ser homossexual, o que leva a população homossexual — que sempre existiu mais ou menos na mesma proporção ao longo da história da humanidade! — a ter menos medo de se assumir… e a responder a mais inquéritos. Por isso parecem tantos!
Mesmo assim não são mais porque uma grande maioria da população homossexual não se identifica, de todo, com a «cultura gay», e a rejeita — e prefere manter-se no silêncio, revelando-se apenas a potenciais parceiros e/ou amizades muito íntimas. Porque realmente continua a haver um forte preconceito contra a «cultura gay», e quem é homossexual mas não se identifica com esta cultura, prefere ficar calad@ a revelar-se (ou a responder a inquéritos!).
No caso da população transgénero, que ainda por cima é ainda mais diversificada, com dezenas de grupos e tipos e centenas de subgrupos e subtipos, ainda há maior dificuldade em «aceitar-se» como transgénero, porque ao assumirmos determinado «rótulo», imediatamente vamos excluir todos os restantes. E vamos também «herdar» todos os atributos do rótulo com que nos assumimos, independentemente de aceitarmos ou não como nos descrevendo.
Vou dar um exemplo típico. No final dos anos noventa, as coisas pareciam mais fáceis: ou uma pessoa queria física e legalmente passar a ser do género oposto a tempo inteiro — e era transsexual — ou não queria/não podia, e então era pura e simplesmente crossdresser. Parecia fácil! O critério de diferenciação era pura e simplesmente tempo inteiro/tempo parcial. Daí a velha piada, também datada dessa altura:
— Qual é a diferença entre um crossdresser e um transsexual?
— Cinco anos.
… que vinha na sequência (estereotipada!) da ideia de que quem começa a assumir-se como crossdresser (a si própri@!), vai querer passar mais e mais tempo na persona do género oposto, até um dia chegar à conclusão de que só quando o fizer a tempo inteiro é que se sentirá satisfeit@ consig@ própri@.
Obviamente que isto é uma enorme simplificação, mas era típica da documentação (não científica) da altura.
Ainda nos anos oitenta já havia uma grande diferenciação entre os dois grupos. Falava-se então na altura em «transsexuais primários» — aqueles que desde nascença sempre rejeitaram o seu género e que passaram toda a sua vida a desejar com todas as suas forças pertencer ao género oposto — e os «secundários», na altura inexplicáveis (e discriminados…), que eram indivíduos que tinham passado a maior parte da sua vida externamente satisfeitos com o seu papel de género na sociedade (casavam, tinham filhos, tinham um emprego de sucesso, etc…) mas que «subitamente» desejavam pertencer ao género oposto. Estes casos não eram vistos como sinceros e a sua transição era normalmente rejeitada; quanto muito, eram tolerados como uma espécie de crossdressers obsessivos e tratados como tal.
O problema aí é que o critério simplificado já tinha mais a ver com a orientação sexual. No caso dos transsexuais primários que se conheciam na altura, a esmagadora maioria queria, entre todas as outras razões, mudar o seu género físico para poderem ter sexo satisfatório com parceiros da orientação sexual apropriada para o seu novo papel. Ou seja, se eram geneticamente homens, mas queriam ser mulheres, pois queriam (também) estabelecer relações sexuais com homens, pelos quais se sentiam fisicamente atraídos. Isto levou justamente a uma enorme confusão (na altura!) entre homossexuais e transsexuais, que perdura até aos nossos dias no público em geral, e que será muito, muito difícil de combater.
Também por essa altura se tentava explicar algum do comportamento crossdresser da mesma forma. Já então se achava que alguém que tinha um comportamento homossexual muito ocasional, mas que o próprio não se considerava como sendo homossexual, então não faria sentido rotular essa pessoa de homossexual. A pergunta, no fundo, era de quantas relações homossexuais seriam necessárias para que a pessoa fosse rotulada de homossexual — vinte? trinta? apenas uma? E então alguém que fosse homossexual assumido, de nascença (ou pelo menos desde a puberdade), mas que ainda era virgem? Era homossexual em potência mas nunca tinha concretizado porque não tinha tido a sorte de encontrar um parceiro — então que rótulo lhe deveríamos dar? (Hoje em dia, felizmente, esta questão não se coloca: essa pessoa seria obviamente homossexual e goza plenamente dos direitos de protecção à não-discriminação como qualquer outro homossexual).
No caso das crossdressers MtF, então a explicação, um pouco rebuscada, era que certos homens, para «esconder» as suas tendências homossexuais, vestiam-se de mulheres, porque assim — de um ponto de vista psicológico — não «sentiam» que estavam a ter uma relação homossexual com outro homem, mas sim apenas a «exprimir a sua femininidade», e a máxima expressão dessa femininidade era justamente terem relações com homens. Ainda hoje, volvidos trinta e tal anos, esta ideia ainda perdura na mente de muitos membros da comunidade. Inclusive é fonte de forte crítica por parte de algumas que se consideram «verdadeiras crossdressers» porque têm (regularmente) sexo com homens, «como verdadeiras mulheres», ironizando e desprezando «as outras», que não desejam ter sexo com homens, e, logo, «não são verdadeiras mulheres».
Esquecendo, obviamente, que há verdadeiras mulheres genéticas… que são lésbicas.
Felizmente, os estudos a partir dos anos noventa — e «enterrando» de vez o Blanchard — começam a separar bem claramente a questão do género (um papel social), do corpo e da orientação sexual, e a admitir (pelo menos a nível científico) que as três coisas não são a mesma, embora claro que exista uma correlação entre elas. É justamente nesta altura em que se «reclassificam» os pobres transsexuais «secundários» em «tardios», que não tem a mesma carga pejorativa, para explicar um tipo diferente de transsexualidade que se revela de forma muito mais tardia do que classicamente se conhecia. Muitos transsexuais tardios, que constituiram famílias estáveis, mantêm-nas depois da transição; outros podem não conseguir fazer a relação sobreviver à transição, mas, quando escolhem novos parceiros, mantêm a sua orientação sexual anterior à da transição, independentemente da terapia hormonal e da cirurgia a que se submeteram. Outros — e são também frequentes! — podem não desejar uma terapia hormonal completa e/ou a cirurgia de reatribuição de género, optando por um subconjunto menor de intervenções clínicas. Tudo isto era muito estranho nos anos oitenta. Hoje em dia, em países com legislação moderna como Portugal, todos estes casos são admissíveis perante a lei — ou seja, o género deixou de estar (legalmente) condicionado pelo aspecto físico, pela roupa, pelo papel social, e pela orientação sexual, mas apenas pela confirmação clínica de que o indivíduo deseja realmente pertencer ao género oposto ao com que foi registado à nascença.
Do lado dos crossdressers, não há legislação «protectora» (nem sequer uma legislação de incentivo à educação do público e da sua aceitação social). Evidentemente que, em países como Portugal, não se pode impedir ninguém de se vestir como se quer. Também qualquer pessoa de ambos os géneros se pode submeter a cirurgia cosmética, desde a mais simples (depilação!) à mais complicada, embora acredite que, sem um diagnóstico clínico de perturbação de identidade de género, não seja muito fácil ter um cirurgião (mesmo no privado!) a aceitar fazer implantes mamários ou nos glúteos, por mais ganancioso que o cirurgião estético seja. Mas noutros países isso não é um «problema» — desde que se pague, pode-se fazer tudo! A terapia hormonal, essa, está bastante mais condicionada.
Há, no entanto, uma divisão bem clara entre a população crossdresser, e isto é comum a todos os países sobre os quais li alguma coisa sobre o assunto. É bem evidente que a esmagadora maioria das crossdressers MtF são essencialmente fetichistas – a única razão para se vestirem como mulheres é para encontrarem parceiros sexuais que estão interessados nesse tipo de fetiche. A hipersexualidade é praticamente omnipresente neste grupo. Depois a forma como este tipo de crossdressing se manifesta é que pode ser muito diferente de caso para caso, e vai desde simplesmente vestir uma cuequinha feminina e comprar um vibrador para o ânus, até à obsessão com uma auto-imagem feminina, levada à perfeição, que seja assim mais atractiva para os potenciais parceiros.
Como este é, de longe, o maior grupo, é fácil de estudá-lo. Para mim o que imediatamente salta à vista no seu comportamento psicológico é que este é profundamente masculino, em termos mentais. A escolha de roupas, cores, ou mesmo de certos maneirismos e expressões é pouco relevante: a sua abordagem à conquista de um parceiro sexual é fortemente masculina, por vezes até mais do que num homem heterossexual sem qualquer fetiche (se é que isso existe!). O que não seria de estranhar, dada a prevalência da hipersexualidade neste grupo. Há, obviamente, excepções. Certos crossdressers fetichistas são excepcionalmente dotados da capacidade de desenvolverem um comportamento feminino, por vezes exageradamente feminino (para padrões de 2013!), conseguindo assim despertar o interesse de parceiros masculinos — uma vez angariando esse interesse, então a forma de manter o interesse já se reverte de características tipicamente masculinas, mas habilmente «mescladas» dessa imagem feminina. E é também verdade que neste grupo existem muitos que se acabam por auto-rotular de transsexuais (tardios ou não), ao descobrirem que a experiência sexual enquanto travestidos lhes é muito mais satisfatória (e, em muitos casos, pode até ser a única forma como se satisfazem), acabando então por desejarem a transição apenas para prolongarem (e facilitarem!) a experiência sexual enquanto mulheres no seu dia-a-dia. Em tempos idos, sei que a autorização para as transições, quando era feita unicamente com base no desejo sexual, era rejeitada (uma das razões tinha a ver com a modificação da líbido devido à terapia hormonal; a outra, obviamente, devido às inevitáveis consequências do funcionamento totalmente diferente dos órgãos genitais — que, neste grupo, normalmente tende a conduzir a enormes decepções); mas não sei como isto está hoje em dia.
Uma variante deste grupo, também ainda fetichista, tem a ver com a sissyfication. Neste caso, e restringindo-me aos crossdressers MtF, normalmente o indivíduo já tem uma parceira, que tem o fetiche de ver o seu companheiro vestido de mulher e (eventualmente) assumir um comportamento submissivo. Seja ou não uma relação BDSM — porque pode não ser! — trata-se de um caso em que os parceiros estão a participar numa fantasia sexual, satisfatória para ambos. Pode reverter-se de maior ou menor intensidade, com a própria parceira a exigir «mais femininidade» no seu companheiro, o que pode até levar à terapia hormonal (legalmente administrada ou não). Neste caso, a meu ver, o que existe é uma relação em que a parceira tem pelo menos um certo potencial (ou interesse) em explorar a sa própria bissexualidade, mas com o seu companheiro favorito (em vez de recorrer a terceiros); este, por sua vez, tem o interesse complementar. Mesmo que a relação termine, se a sissyfication for agradável enquanto experiência para o companheiro, este muito provavelmente continuará a procurar parceiras que tenham o fetiche complementar. Ou seja, a origem deste desejo de crossdressing continua a ser a experiência sexual; mas, ao contrário do caso anterior, aqui o crossdresser MtF pretende principalmente obter parceiras do género feminino — mas que tenham esta tendência, seja via BDSM, seja via bissexualidade latente, de lhes ser agradável ter um companheiro masculino que esteja travestido.
O segundo grupo é mais difícil de estudar, porque não há muitos exemplos, e porque os indivíduos neste grupo podem, na realidade, a pertencer a qualquer outro. Tratam-se dos transformistas (ou travestis, como antigamente lhes chamavam) cuja profissão os leva a encarnar personagens do género oposto como forma de entertenimento. Ao contrário do cliché que lhes é socialmente atribuído, de que «todos os transformistas são homossexuais», isso obviamente que é tudo menos verdade. Podem ser de qualquer tipo, e podem nem sequer ser tecnicamente «crossdressers», mas meramente artistas a desempenhar um papel. Não é fácil de determinar se são realmente «um tipo de crossdressers»; apenas é legítimo mencioná-los porque, para muitas pessoas que estejam a ler este blogue pela primeira vez, acho que faz sentido explicar que nem todas as pessoas transgénero MtF querem ser transformistas ou que se identifiquem com estes; tal como nem todos os homens homossexuais se identificam com a cultura gay (pelo contrário!). É apenas uma forma de expressão do crossdressing entre muitas outras.
O terceiro grupo é psicologicamente complexo, porque, desde já, o seu incentivo não é a escolha de parceiros sexuais, e, só por isso, tendem imediatamente a ser ostracizados pelos restantes grupos. Neste momento, com tantos rótulos a aparecerem e a desaparecerem de moda, é difícil de usar uma classificação que os abranja a todos, pelo que vou deixar isso para depois.
Classicamente (ou seja, nos estudos dos anos oitenta), este grupo apresentava-se como sentindo o forte desejo de exprimir o seu lado feminino, especialmente em situações de stress, ansiedade e depressão, mas sem abandonar o seu papel social masculino. Mais uma vez, a expressão desse «lado feminino» pode tomar imensas formas, e, num dos extremos, pode não tomar forma nenhuma — pode limitar-se à expressão escrita, por exemplo (a adopção de um pseudónimo feminino e da publicação artística de obras que sejam identificadas como tendo sido criadas por uma mulher — mesmo que estejamos a falar de coisas tão simples como a participação em chat groups ou páginas no Facebook!). Noutros casos, e muitas vezes por receio de descoberta, a expressão pode limitar-se a envergar algumas roupas tipicamente femininas, usar saltos altos, etc. e pouco mais. A «meio da tabela» está a utilização de indumentária feminina completa (desde o cabelo, à maquilhagem, passando pela roupa interior, o vestido, os acessórios…), seja na sua variante deliberadamente exagerada (drag queens), seja na sua expressão ficcionada ou fantástica (Lolitas, as várias formas de cosplay, etc.), seja de forma e aparência contemporânea (talvez o maior grupo). Finalmente, no outro extremo, não basta o aspecto físico, mas igualmente a adopção do comportamento e da psique feminina. É aqui que as coisas se tornam de novo muito complicadas, e já vamos saber porquê. Vou chamar temporariamente a este último subgrupo crossdressers comportamentais para os conseguir identificar mais à frente.
Em todo este grupo, é importante referir que, ao contrário dos fetichistas, o objectivo não é a satisfação sexual com um parceiro. Mas isto não quer dizer que esta função esteja ausente; quer apenas dizer que não é o motivo principal. Na realidade, tal como os fetichistas, o mero acto de vestir roupas femininas — ou mesmo de adoptar comportamentos e uma mentalidade femininas — pode ser altamente excitante (e é-o na maioria dos casos) e muitas vezes pode também conduzir à procura de um parceiro sexual que seja tolerante para com este tipo de crossdressers. No entanto, mais uma vez repito, não é esse o objectivo principal. O objectivo principal passa pela auto-satisfação pela auto-imagem feminina construída (seja ela meramente imaginada, parcial, ou completa), que pode ou não servir de alívio ao stress/ansiedade/depressão — mas pode também não ser o stress/ansiedade/depressão a motivação principal, apenas uma consequência positiva. Para muitos crossdressers deste tipo, ser-se aceite como uma mulher pode ser importante, e essa aceitação pode obviamente levar à escolha de um parceiro, ocasional ou regular, dentro ou fora de uma relação conjugal, que ajude e estimule a preservação e aperfeiçoamento da auto-imagem feminina. Evito usar a expressão «autoginecofilia» introduzida por Blanchard, porque está fora de moda, é considerada altamente ofensiva na comunidade transsexual, e as publicações académicas de Blanchard têm sido continuamente refutadas por colegas, ao longo dos últimos 15 anos. No entanto há uma sobreposição de conceitos: no caso deste tipo de crossdressers, é de facto a obsessão pela auto-imagem feminina que os leva ao crossdressing. Não quero, no entanto, dizer que em todos os casos esta expressão da auto-imagem feminina é automaticamente propiciadora de uma forma de masturbação narcisista (que nem sequer requer actividade física, mas basta a actividade mental). Na verdade — e isto era onde eu queria chegar! — aproxima-se muito mais do mesmo tipo de prazer sentido por uma mulher genética que se arranja, não necessariamente para agradar a um companheiro potencial, mas porque se auto-satisfaz (e não necessariamente do ponto de vista puramente sexual) ao arranjar-se, coisa que, indirectamente, também lhe gera diminuição do stress, da ansiedade, ou da depressão. Faço ainda notar que este «arranjar-se» é fortemente condicionado pelo aspecto social, que cria a imagem normativa do aspecto que uma mulher deve ter em determinada época e ocasião.
Este último ponto deve então associar-se à questão de género enquanto papel social, e é o factor que distingue este tipo de crossdressers dos fetichistas: enquanto que os primeiros usam o crossdressing como forma de expressão de género (do papel social que aspiram desempenhar temporariamente, independentemente da forma como o expressam), os fetichistas usam o crossdressing como fazendo parte da sua sexualidade. Obviamente que os dois grupos não são estanques, mas aqui interessa-me a mim separar claramente a questão do género da sexualidade.
Da mesma forma, uma mulher genética heterossexual, e que adopta livremente os condicionalismos sociais da imagem apropriada do contexto em que vive, tende também a ter este tipo de diferenciação. Pode realmente arranjar-se com a intenção exclusiva de encontrar um parceiro que a considere mais atraente se usar determinado tipo de roupa, acessórios, e comportamento (estamos então também a falar da sua experiência sexual); ou arranjar-se com o objectivo de se identificar melhor enquanto expressão do género a que pertence, coisa que lhe pode dar uma certa satisfação cuja origem não é necessariamente sexual (sense of belonging — a sensação de que faz parte de um grupo) mas que pode ser intensa. Claro que neste último aspecto também existem as considerações estéticas — «fico bonita vestida assim!» — mas estas também seguem padrões sociais e modas contextualizadas no tempo e espaço e que são uma função da expressão do género.
Ora quando consideramos este subgrupo a que chamei crossdressers comportamentais vemos que aqui existe um pequeno problema. Estes almejam a manifestação de uma auto-imagem feminina, que inclui o comportamento, mas também a expressão da mente enquanto personalidade femininas, e é isto que é a sua principal motivação. Se por um lado reportam que este assumir da expressão da sua femininidade lhes alivia o stress, a ansiedade e a depressão, também não é menos verdade que, ao serem impedidos de o fazer, vão justamente aumentar o stress, a ansiedade, e a depressão! As razões para serem impedidos de manifestarem a sua femininidade são obviamente múltiplas: podem ser condicionalismos familiares, de tempo, de vergonha, de medo, puramente sociais, por falta de capacidade financeira para adquirir roupas e acessórios, etc. Mas seja qual for a razão (ou razões), a verdade é que estão numa situação semelhante à dos transsexuais clinicamente diagnosticados com perturbação de identidade de género — o facto de não poderem ser membros do género com que se identificam causa-lhes justamente stress, ansiedade, e depressão; e justamente o processo de transição, à medida que vai sendo mais eficaz, cria-lhes menos stress, diminui-lhes a ansiedade, combate a depressão, etc. até poderem eficazmente (e com apoio de especialistas) transitarem não só fisicamente como socialmente para o género com que se identificam.
Nos crossdressers comportamentais todos esses elementos estão presentes, mas há uma diferença de grau. Nos casos diagnosticados de transsexuais, é frequente (se não mesmo obrigatório) que o indivíduo esteja numa posição «entre a vida e a morte», ou seja, se não transitar para o género com que se identifica, só lhe resta o suicídio. Mesmo a vida numa sociedade transfóbica que os irá ostracizar e a condenação ao desemprego e isolamento de amigos e familiares é menos aterradora do que continuar a viver num corpo que não corresponde à sua identidade de género. Isto, na gíria, é o que é designado por «ter a certeza» do que se está a fazer; para um indivíduo nesta situação, quaisquer «horrores» da transição são infinitamente mais suportáveis do que o «horror» de viver um papel de género com o qual não se identificam e que rejeitam profundamente.
Os crossdressers comportamentais já não pensam assim (pelo menos na sua maioria — justamente os que pensam assim acabam por ser diagnosticados como sofrendo de perturbação de identidade de género!). Colocam na balança, de forma racional, o que é mais preferível: uma vida «oculta» onde ocasionalmente poderão exprimir a sua femininidade, seja esta inteiramente satisfatória ou não, mas em que poderão manter o emprego, a casa, a família, e os amigos… tendo como única desvantagem associada o stress, a ansiedade e a depressão associadas à impossibilidade de exprimir o género com que se identificam durante todo o tempo que gostariam… ou um «salto no escuro», em que abandonam emprego, casa, família, amigos e que dão largas a essa manifestação do género com que se identificam — e sofrem os horrores do ostracismo e da transfobia? Como normalmente os crossdressers comportamentais não fazem parte do grupo clínico dos depressivos com tendências suicidas, normalmente nunca optam por «ir mais longe». Preferem ficar numa situação de desespero relativamente à sua expressão de género, mas mantendo os laços com toda a sociedade, do que resolver esse desespero, mas adquirir agora toda uma quantidade de problemas novos associados à transição.
Em certa medida é o «dilema do emigrante» — a partir de que ponto vale a pena abandonar um país para ir viver para outro? É evidente que quando se está já a morrer de fome e a viver por baixo de uma ponte, emigrar deixa de ser uma coisa tão horrível, porque nada pode ser pior do que fome e frio constantes. Mas quando se vive abaixo do limiar da pobreza, mas ainda com um tecto por cima da cabeça e comida no frigorífico, valerá mesmo a pena «largar tudo» e partir para o desconhecido?
Como o ostracismo dos emigrantes é (pelo menos na maioria das sociedades ocidentais) consideravelmente muito menor do que a discriminação contra os transsexuais, é evidente que este exemplo é muito forçado.
Ora a meu ver — mas sei que isto não tem eco na comunidade transgénero — há uma linha muito fina que separa estes crossdressers comportamentais dos transsexuais tardios. Na realidade, é muito fácil passar de um grupo para o outro. Nalguns casos que conheço, por exemplo, é justamente quando o crossdresser comportamental rompe a relação familiar e perde o emprego que, vendo já «não haver mais nada a perder», toma finalmente a decisão de efectuar a transição (se tem sucesso ou não, já depende primeiro de tudo da avaliação clínica). Há evidentemente os casos de crossdressers comportamentais altamente racionais que trabalham grande parte da sua vida a preparar-se para o dia em que chega para se juntarem às hostes de transsexuais tardios. E entre os dois extremos há obviamente muitos exemplos intermédios.
É por isso que gosto de chamar a estes crossdressers comportamentais transsexuais falhados. São indivíduos que, por alguma razão, nunca entrarão em transição, apesar de, noutras circunstâncias e noutras situações, considerassem essa hipótese. Mas para ser mais precisa, deveria ser sincera e acrescentar que estes transsexuais falhados são na realidade um subgrupo dos crossdressers comportamentais, pois, entre estes, existe uma enorme fatia (senão mesmo a maior!) que rejeita a ideia de pertencer exclusivamente a um género, preferindo optar pelos dois, consoante a disponibilidade. Ou seja: são indivíduos que não têm qualquer problema com o seu género, mas que também têm a necessidade, periódica ou não, de manifestarem o comportamento e o aspecto do género oposto. Aceitam ambos sem dar exclusividade a apenas um deles.
Este grupo é justamente aquele que, há décadas, tem promovido a abolição de rótulos, proclamando com clareza a afirmação de que a questão dos géneros e dos rótulos é um condicionalismo conceptual, que cria mais stress e ansiedade quando uma pessoa já só sofre porque não sabe em que classificação se inserir, e que propõem como alternativa «aceitar que somos como somos, sem rótulos ou classificações».
Aprendi com um dos meus professores que o excesso de tolerância por vezes também cria intolerância! 🙂 Embora seja evidentemente verdade que a eterna procura do «rótulo perfeito» para a nossa condição ser uma actividade stressante — o medo de termos o rótulo «errado», a expectativa de um dia obtermos o rótulo «correcto» se fizermos X ou Y — a verdade é que estes «rótulos», mesmo que imperfeitos, servem para estabelecer patamares em que podemos, se for o caso, obter auxílio e apoio. Este é o processo do ponto de vista científico. Por exemplo, entre dizer ao médico «estou doente, sinto-me mal» ou dizer-lhe «estou constipado», qual é o que auxilia melhor a encontrar o diagnóstico correcto que conduza a um processo de cura? É para mim evidente que alguns rótulos nos podem auxiliar a exprimir melhor o que se passa na nossa mente, desde que não nos agarremos muito aos rótulos, e que passemos a considerar os rótulos mais importantes do que aquilo que efectivamente somos. Ou seja, se eu me assumir como crossdresser, posso pelo menos obter ajuda e apoio na expressão do meu lado feminino, porque outras pessoas que se assumiram também da mesma forma poderão reconhecer-me como um dos seus pares, e estarem dispostas a partilharem a sua experiência. Mas não devo é «agarrar-me» à ideia de que, agora que me auto-denominei «crossdresser», tenho de fazer X, comportar-me como Y, e passar a gostar de Z. Isso é o que está errado nesta «rotulação».
A consequência da rejeição de todos os rótulos é a incapacidade de obter apoio de quem quer que seja. Posso afirmar, por exemplo, «o género é uma ilusão, socialmente determinada, que varia com o tempo e o espaço; por isso rejeito todo e qualquer género, sou como sou». Claro que é verdade que a palavra «género» não existe por si só, e que é ilusória por não ter nada de «concreto» (até porque significa coisas diferentes para pessoas diferentes); mas se, no estado em que estou, me apercebo de que existem dois géneros, um dos quais com que me identifico, e o outro que rejeito, então não devo rejeitar ainda o rótulo «género», porque na realidade ainda não o vejo como ilusório: ainda há um género de que gosto, outro de que não gosto; ainda há parceiros dum género que me atraem sexualmente, e parceiros doutro género pelos quais não sinto qualquer atracção. Sendo assim, o rótulo ainda não é descartável. É um guia, uma orientação, um auxiliar para a conversação e a busca de apoio.
Por outro lado, a consequência da adopção de um rótulo significa enfrentar os preconceitos da comunidade transgénero (já nem falando da sociedade em geral que desconhece tudo, e, pior que isso, tem concepções completamente erradas). Por exemplo, dado que a maioria dos crossdressers é fetichista, quem assuma o rótulo de crossdresser, vai ser considerada como «não sendo uma verdadeira crossdresser» se não quiser ter sexo com homens. Mas mesmo um sissy, que não é menos fetichista, pode não ter o menor interesse em sexo com homens — e não é «menos crossdresser» por causa disso, embora o que lhe leve ao crossdressing seja justamente a actividade sexual. Da mesma forma, um transsexual que deseje tornar-se mulher, mas que continue a querer ter sexo com mulheres, não é «menos transsexual» que os que desejam parceiros do género masculino. É, pura e simplesmente, lésbica — e não há mal nenhum em ser-se lésbica. As mulheres genéticas não são «menos mulheres» por gostarem de mulheres; tal como os homens genéticos não são «menos homens» por gostarem de homens: esta afirmação de que para se ser crossdresser ou transsexual tem de se gostar de ter sexo com o género X é, pura e simplesmente, homofóbica. Grande abertura de espírito então!
Mas também acontecem mais divergências dentro da comunidade transgénero — e embora isto tenha sido estudado muito no passado, acredito que actualmente ainda perdure. Em muitos estudos de comunidades transgénero, foi visto que existia uma forte discriminação entre os membros do grupo que pretendiam a cirurgia de reatribuição de género, e os que não queriam, ao ponto de serem inventados muitos rótulos como pre-op, pre-op com cirurgia marcada, post-op, etc. Isto para distinguir alguém em determinado grupo que já tomou a decisão de fazer a cirurgia, mas que teve azar de ainda não a ter marcado, e que se via agora discriminada pelas «mulheres verdadeiras» que tiveram a sorte de ter uma lista de espera mais curta. Não indo a casos extremos, é visível em grupos online transgénero — que reunem crossdressers e transsexuais, normalmente pre-op — que existe uma forte desconfiança dos segundos em relação aos primeiros. Na realidade, e isto é muito visível, um transsexual post-op que consegue estabelecer uma família e arranjar emprego, normalmente desaparece das comunidades transgénero, e terá uma tendência em «cortar com o passado» o mais rapidamente possível, e nunca mais aparecer. A ideia é que agora passou para o género com que se identifica e não quer que ninguém mais @ associe ao género anterior — daí o corte radical. Em contraste, os crossdressers, especialmente os comportamentais (mas não só), tendem a manter-se fiéis aos mesmos grupos durante toda a sua vida, independentemente do seu grau de «progresso» a nível de desenvolvimento pessoal.
Mais uma vez ressalvo que existem excepções em todos os casos, e que é injusto olhar para uma «média» de comportamentos, quando existem tantos e significativos exemplos pelo meio. Aliás, mesmo no caso português, é notório que as grandes activistas da comunidade transsexual, que lutaram pelas leis que actualmente temos, nunca «desapareceram do mapa», apesar de algumas já terem terminado o seu processo de transição. Continuam a lutar, dando apoio às novas gerações.
Termino pois este longo artigo com uma recomendação e um apelo.
A recomendação é para quem descobriu este artigo, e que anda à procura de mais informação sobre a sua situação actual, encontrando-se provavelmente confusa e sem saber muito bem em que grupo se encaixar. O objectivo é justamente mostrar que este processo de «encaixar» é penoso e complicado, porque infelizmente há demasiadas classificações, já que há inúmeros casos distintos. Mas pelo menos é possível dar uma ideia geral. Assim, alguém que seja fetichista, não terá provavelmente problema algum em encontrar dezenas de forums e sites de encontros — mesmo em Portugal! — se é apenas isso que pretende: encontrar novos parceiros sexuais que partilhem o mesmo fetiche. Para as poucas que não sejam fetichistas… não se preocupem, não há nada de «errado» convosco, e, felizmente, também existe espaço para o crossdressing não-fetichista em Portugal. Finalmente, para quem sofra de perturbação da identidade de género, as boas notícias é que o apoio existe de forma institucional, e talvez por isso não existam grupos online e forums de discussão de «transsexuais portugueses» — principalmente porque, uma vez completado o processo de transição, legalmente as pessoas deixam de ser «transsexuais», e são homens e mulheres legais, como qualquer outro cidadão.
O apelo fica para fazerem alguma introspecção quanto à «abertura de mente» que afirmam proferir. Isto vale para todos os lados. Transsexuais que olham com desprezo para crossdressers que não querem fazer operações cirúrgicas estão a ter pouca compaixão; muitos crossdressers comportamentais não passam de transsexuais falhados, que não podem progredir na sua transição por qualquer razão. Crossdressers fetichistas que ridicularizam os comportamentais porque não querem ter sexo estão a mostrar a mesma falta de abertura de mente que as pessoas transfóbicas (ou homofóbicas!) — são hipócritas. Da mesma forma, crossdressers comportamentais que desprezam as fetichistas porque estas só pensam em sexo estão a ser pouco tolerantes — como se achassem que os seus próprios problemas são «mais importantes» ou «mais legítimos» do que encontrar um parceiro sexual satisfatório. Para quem sofra por não ter sexo decente, o problema é «importante» — para el@s. Nunca devemos esquecer isso.
É da natureza humana olhar para o nosso próprio umbigo e sofrer com aquilo que achamos que é importante para nós; os problemas dos outros preocupam-nos sempre menos do que os nossos próprios problemas. No entanto, para evitar as «guerras de rótulos», devemos então pensar simplesmente que todas as pessoas pensam como nós, ou seja, todas as pessoas acham os seus próprios problemas mais importantes do que os dos outros. Assim, veremos que todos os problemas — que causam sofrimento — são universalmente importantes, e não é lógico nem racional dizer «este problema é mais importante/mais grave do que o outro» ou «eu sofro mais do meu problema, porque é mais grave, por isso mereço mais respeito». Lembrem-se sempre do sentimento prevalecente entre os transfóbicos, que consideram que é mais importante curar as pessoas de cancro do que deixar que transsexuais obtenham a transição. Porquê? Porque os transfóbicos conseguem ter empatia com os doentes de cancro e com o seu sofrimento — talvez tenham tido alguém próximo que tenha morrido de cancro — mas não conseguem sentir empatia para com um problema que está para além da sua compreensão. Podemos aqui olhar para o Estado português como muito mais equanânime — o sofrimento de quem está a morrer de cancro é tão horrível para este como o sofrimento de um transsexual que não consegue fazer a transição. Para o Estado português, sofrimento é sofrimento, e o papel do Serviço Nacional de Saúde é aliviar o sofrimento de todos os cidadãos, independentemente do tipo de sofrimento — porque este é individual.
Talvez um dia também se reconheça que até as crossdressers sofrem 🙂 Mas temos de dar tempo ao tempo; primeiro conseguiu-se reconhecer os direitos aos homossexuais e bissexuais, agora, aos poucos, também aos transsexuais. Um dia chegará também a nossa vez.
Até lá, ninguém nos pode impedir legalmente de exprimir livremente o género com que nos identificamos. Já não é muito mau. Claro que a legislação está um século à frente das mentalidades, mas lá chegaremos…