Lutando contra a invisibilidade

Gostaria de aproveitar esta oportunidade em que está a decorrer o Ano Gisberta, uma iniciativa promovida pela API — Ação Pela Identidade, para falar um pouco naquilo que considero ser a forma mais eficaz de promover os direitos da comunidade transgénero, o combate à transfobia, e a sua aceitação e integração social.

Parece ser bom demais para ser verdade, e em certa medida, até é 🙂 Mas de uma perspectiva histórica, as acções para combater a discriminação e promover a aceitação das várias minorias usaram pelo menos três abordagens (todas elas com um certo grau de sucesso).

Educação

A primeira abordagem é aquela que, a longo prazo, promoverá uma sociedade mais inclusiva: a educação. Grande parte da discriminação que existe para com qualquer minoria (ética, racial, social, nacional, etc…) tem a ver pura e simplesmente com a falta de informação, ou, pior, com a «desinformação» que é passada relativamente a essa minoria. A «desinformação» é criada através de falsos pressupostos, criação de estereótipos, e ridicularização/demonização de pessoas dessa minoria, muitas vezes usando maus exemplos, e impelindo as pessoas a tomarem a parte pelo todo. Para pegar num exemplo que todos conhecem: se fomos à feira comprar roupa a um stand de ciganos, e, ao chegar a casa, a roupa rasgar-se logo na primeira lavagem, poderemos associar o facto de termos sido enganadas à etnia do vendedor, e, tomando a parte pelo todo, diremos então «todos os ciganos são aldrabões» — quando, na realidade, no dia-a-dia, vamos ser milhares de vezes mais enganados por pessoas que não pertencem à etnia cigana, mas sim à maioria da população (é uma questão estatística).

Talvez mais premente seja actualmente o caso dos migrantes oriundos de países muçulmanos e que entram pelas fronteiras dessa Europa fora. Como, nos recentes anos — pelo menos desde o 11 de Setembro — a comunicação social só noticia casos de terrorismo perpetuados por fundamentalistas islâmicos, criamos a falsa noção de que «todos os muçulmanos são potenciais terroristas», e temos medo das massas de migrantes vindos do Iraque e Síria — quantos terroristas não virão também entre eles? A verdade, claro está, é que aqueles que estão a fugir dos seus países é porque justamente também têm medo dos terroristas fundamentalistas islâmicos nos seus países de origem e que procuram um refúgio na Europa porque aqui se sentem mais seguros… E, por outro lado, gostamos de nos esquecer da existência de fundamentalistas cristãos que também foram terroristas (como o IRA na Irlanda e Reino Unido) ou de gente que foi terrorista sem professarem explicitamente qualquer religião, mas sim uma ideologia nacionalista/étnica (como a ETA em Espanha, ou os grupos curdos mais fundamentalistas na Turquia).

Ou seja: por falta de informação e conhecimento, ou por distorção da informação existente, criamos pressupostos e preconceitos contra determinados grupos de pessoas que pura e simplesmente não correspondem à verdade. No entanto, estas imagens que criamos são muito fortes, porque assentam em medos que temos — nomeadamente, o medo do outro, o medo do desconhecido — e, de certa forma, estão associados a mecanismos biológicos e evolutivos que nos condicionam a pensar que temos de defender a nossa tribo contra as restantes tribos.

Combater a «estranheza do outro» é, pois, historicamente, algo de muito recente — algo que emerge directamente da criação das Nações Unidas e da Declaração Universal dos Direitos Humanos, onde se estabelece, a nível internacional, a noção de que todos os habitantes deste planeta são «membros da [mesma] família humana». Isto, evidentemente, é depois transposto para as legislações nacionais, que fazem destes princípios universais e inalienáveis a base sobre a qual se assentam os princípios democráticos: a noção de que todos temos precisamente os mesmos direitos e de que gozamos de protecção contra a discriminação, ou contra a incitação pela discriminação, seja esta que forma for (artigos 1º, 2º e 7º).

No entanto, é evidente que a maioria das pessoas não pensa assim, e acha que tem «mais» direitos que os «outros», especialmente se esses «outros» não partilharem os mesmos valores que eles.

Passa pela educação justamente o reconhecimento de que todos temos os mesmos direitos, o que deve ser logo ensinado nas escolas, mas também em todos os recintos e lugares públicos, em programas de televisão, em artigos de opinião na comunicação social, etc. Não basta apenas esperar que as criancinhas cresçam e que apliquem na sua vida estes valores fundamentais expressos na Declaração Universal dos Direitos Humanos. É preciso igualmente que os adultos também estejam a par dos mesmos!

Em Portugal, deve ser louvado o extraordinário trabalho de informação sobre questões trans* que tem sido feito junto dos agentes de autoridade e também de elementos das forças de segurança privadas; já não falando nos hospitais, clínicas, centros de dia, etc. Embora não esteja muito visível, e se tenha falado bastante pouco sobre o assunto, o certo é que estas entidades todas estão a par das pessoas transgénero, das suas especificidades, da sua sujeição à discriminação. Por outras palavras: nada impede que um polícia ou um enfermeiro seja transfobo, mas nunca o será por ignorância. No pior dos casos, pois, terá de agir tendo tomado conhecimento da situação das pessoas transgénero, e não as poderá discriminar alegando «ignorância»; tal falta grave, que no fundo pode constituir crime, será, no mínimo, alvo de processo disciplinar.

Regra geral, nem é preciso chegar a tal ponto: a própria «pressão de grupo» fará com que estes profissionais, mesmo que sejam (secretamente) transfobos, nunca exerçam a sua discriminação publicamente. Até podem queixar-se aos cônjuges e aos amigos, mas em contacto com as pessoas transgénero, estarão elucidados sobre a sua situação e não poderão «fingir» ignorância.

O certo é que muitas vezes esta educação — a explicação do que são pessoas transgénero e do que estão sujeitos — é o que chega para diminuir a propensão para a discriminação. Por outras palavras, ao perceber do que se trata, o «outro» deixa de ser tão incompreensível. Passa a ser uma pessoa, e não um «estranho». Uma pessoa, sem dúvidas, diferente — mas não deixa de ser um ser humano como nós. Compreendendo-o, é mais fácil tolerá-lo e mostrar alguma empatia.

E isto propaga-se. Como direi mais abaixo, ao explicar a uma pessoa o que são pessoas transgénero, e em que consiste a transfobia, essa pessoa acaba depois, por sua iniciativa, dentro do seu próprio grupo de amigos, saber explicar do que se trata — se o tema surgir numa conversa.

Activismo de rua

A segunda forma de sensibilização da população relativamente às questões das pessoas transgénero, mas em especial os políticos e governantes, é através de marchas e outras actividades de rua que chamem a atenção da população (e da comunicação social!) para a problemática. A comunidade gay há décadas que tem as suas paradas de orgulho gay, às quais é vulgar, hoje em dia, se associar a totalidade das pessoas LGBTQI+. No entanto, as próprias pessoas transgénero podem — e devem! — fazer as suas marchas independentes, ou actividades mais criativas como o «abrace um transexual» na rua. A criatividade aqui está em colocar na rua (ou em espaços públicos muito movimentados) elementos que chamem a atenção, de uma forma ou de outra, para a transfobia. Mas estas actividades também servem para dar a conhecer as próprias pessoas transgénero, que assim «dão a cara» para mostrarem que, no fundo, não são diferentes de quaisquer outras pessoas. São seres humanos como quaisquer outros.

Este tipo de activismo de rua tem a sua génese nas grandes revoltas populares do passado, em que, pelas mais diversas razões, era no espaço público que se chamava a atenção dos governantes para o descontentamento entre certas camadas da população ou classes sociais. Acompanhadas de reinvidicações previamente preparadas, para serem entregues aos governantes, estas acções podem ter algum grau de eficácia. No entanto, este modelo tem algumas limitações, como iremos ver mais adiante.

Uma alternativa é o agendamento de actividades públicas, mas em espaços privados, como as conferências, os seminários, os ciclos de cinema sobre a temática transgénero, as sessões de esclarecimento ao público, e assim por diante. Têm a vantagem de serem menos «intrusivas», mas justamente por isso também têm um alcance menor — embora seja frequente os meios de comunicação social fazerem referência a este tipo de actividades.

Visibilidade em locais do quotidiano

Finalmente, a terceira forma de sensibilização é muito mais discreta, e passa pura e simplesmente pela frequência regular de espaços públicos, em situações perfeitamente normais. Por outras palavras: não se pretende «chamar a atenção para a diferença» (como acontece nos dois casos anteriores), mas sim, pelo contrário, mostrar que as pessoas transgénero fazem precisamente as mesmas coisas que as outras pessoas também: têm de ir ao supermercado comprar comida, têm de comprar roupa nas lojas, têm de ficar nas filas de espera para os bilhetes do cinema, gostam de tomar café, jantar nos mesmos restaurantes que as outras pessoas, etc. Uma grande maioria dos transexuais, durante e após a transição, não têm mesmo outro remédio senão fazerem justamente estas actividades. Mas dentro do espectro das pessoas transgénero, nem todas serão transexuais (como é o caso de muitas crossdressers, por exemplo), e também estas podem e devem frequentar espaços «normais» (no sentido em que não sejam espaços explicitamente abertos à comunidade LGBT), e interagir nestes espaços precisamente da mesma forma que qualquer outra pessoa.

É certo que esta «visibilidade» não é possível de fazer com qualquer pessoa transgénero. Por exemplo, muitas pessoas transexuais, após a sua transição, a última coisa que querem é manterem-se «associadas» ao seu passado, querendo, em vez disso, afastar-se o mais possível da «comunidade» para terem uma vida normal, sem estarem associadas ao preconceito de serem transexuais. Essas pessoas, regra geral, têm uma aparência que lhes permite passarem completamente despercebidas de acordo com o género com que se identificam. Nem todas, no entanto, têm essa sorte; e obviamente que existem muitos casos de pessoas transgénero — como as que apresentam fluidez de género, por exemplo, ou uma rejeição de qualquer género, ou uma mistura de géneros — em que isto não acontece: deliberadamente ostentam a sua diferença e assumem-na. Nestes casos, o impacto em lugares públicos é bastante superior.

Poder-se-á alegar que tal presença em espaços públicos pode ser vista como um convite deliberado à violência transfóbica! Mas a verdade é que em Portugal, pelo menos nas grandes cidades e no Algarve, é pouco provável que isto aconteça, em pleno dia, em espaços bem iluminados, com muito público, ou pelo menos com segurança visível. A não ser que se escolham espaços muito limítrofes — por exemplo, bares em zonas degradadas com elevados índices de criminalidade — regra geral não existe qualquer problema em termos de segurança da integridade física das pessoas transgénero. É certo que isso não impede, de todo, a transfobia: poderão ser apontadas a dedo, humilhadas com piropos maliciosos (o que hoje em dia é crime!), ou simplesmente mal tratadas no atendimento em estabelecimentos comerciais.

A minha experiência, no entanto, mostra que os portugueses continuam com brandos costumes em quase tudo. O recente aumento da visibilidade da transexualidade nos meios de comunicação social (o programa da Caitlyn Jenner, a série com a Laverne Cox, cantoras transexuais como a Patrícia Ribeiro, etc.) tem contribuído para que, pelo menos, as pessoas tenham uma vaga ideia do que se trata. Pode ser muito vaga, muito confusa, mas existe no mínimo uma noção de que as pessoas transgénero devem ser deixadas em paz. Na realidade acho que os portugueses andam bastante mais cívicos (ou então eu é que sou uma eterna optimista!).

O certo é que, com maior ou menor tolerância, as pessoas transgénero ainda são vistas como uma forma de perversão sexual. A meu ver, a melhor forma de combater isto é mostrar que as actividades que fazem em público nada têm de «sexual». Ou seja, isto é a forma de combater a ideia de que as pessoas transgénero só estão na prostituição, nas saunas, nas casas de swing, mas que não se podem encontrar em lado nenhum fora destas. A verdade é que todos esses casos existem e não é possível negá-los; qualquer lisboeta, por exemplo, sabe que a zona do Conde Redondo está cheia de prostituição transgénero, e estas estão realmente nas ruas e são bem visíveis. No entanto, isto aplica-se apenas a uma parte da população transgénero (sendo certo que a percentagem de prostituição entre pessoas transgénero é, infelizmente, muito mais elevada do que para o resto da população). As restantes pessoas transgénero têm uma vida normal como qualquer outra pessoa (e têm uma sexualidade também normal, bem entendido). O melhor, pois, é tornar esta «vida normal» mais visível.

A «desguetização» e o exemplo português na História

À luz dos acontecimentos recentes, podemos apontar dois modelos de integração social prevalentes nas sociedades democráticas contemporâneas. A primeira é a da sociedade multi-étnica (ou multi-cultural), onde se assume que cada etnia, com a sua própria cultura, deve ter o seu próprio espaço, dentro da cultura mais vasta da nação. Este é o modelo usado, por exemplo, em França e na Bélgica, mas também em certa medida nos Estados Unidos.

O segundo modelo é o de uma sociedade integradora, onde não existe senão a cultura do próprio país, mas cada etnia ou grupo cultural pode co-existir separadamente, mas não necessariamente de uma forma isolacionista. Este é o modelo inglês (que não se aplica necessariamente a todo o espaço anglo-saxónico) e, em certa medida, o português.

A diferença principal em ambos os modelos está na forma como o «outro» é integrado na sociedade. No primeiro caso, o «outro» tem o seu espaço próprio: o seu bairro, isolado dos restantes, onde se mantêm as práticas culturais da etnia/cultura que lá vive. A sociedade, como um todo, tolera a existência destes espaços, desde que estes respeitem, evidentemente, as etnias/culturas restantes. É isto que faz com que as cidades americanas tenham as suas ChinatownsLittle Italy, etc. — largos bairros ou quarteirões onde só vivem pessoas da mesma etnia ou cultura, e que são por vezes construídos (deliberadamente ou não) de forma a reflectirem a cultura que lá habita. Nos casos franceses e belgas, o mesmo fenómeno existe para as várias etnias das antigas colónias, sendo que cada qual tende a estabelecer-se no seu próprio bairro. Haverá, pois, uma tendência maior para a segregação entre culturas e/ou etnias.

No caso inglês, procura-se «assimilar» as etnias e culturas, colocando o modelo da cultura inglesa como ideal a atingir por todas as culturas e etnias. Esta forma de integração pode ser pela via da opressão e supressão das culturas originais dos habitantes (como era frequente no passado), ou, de forma mais moderna, apresentando um ideal de cultura predominante a que todos desejem aspirar — sem que, no entanto, se abandonem completamente os valores das suas próprias culturas. Nestes casos, a população tende a misturar-se mais, ou a segregar-se de forma menos visível — por exemplo, pode existir uma zona comercial mais étnica, mas os próprios comerciantes não habitam nessa zona, estando espalhados por toda a cidade. O modelo português é tendencialmente mais parecido com este último, embora não tivesse sido sempre assim. Na Idade Média, é sabido que as principais cidades portuguesas tinham as suas «judiarias» e «mourarias», guetos fechados e isolados do resto da cidade, onde viviam exclusivamente pessoas de determinada etnia, cultura, ou religião. Este era, de longe, o modelo predominante português.

Mas com a época dos Descobrimentos, começaram a surgir mudanças. Devido à escassa população portuguesa, existia uma enorme dificuldade em manter as colónias (com intuito essencialmente comercial) espalhadas pelo mundo. Nasceu a prática de «cristianização» das populações locais, em que marinheiros portugueses se casavam com noivas nativas, convertendo-as ao Cristianismo — assim como os seus filhos, tecnicamente mestiços, mas que eram aceites na sociedade portuguesa como súbditos do Rei, desde que fossem também eles cristãos.

Estes «novos portugueses» mais cedo ou mais tarde se estabeleciam também nos principais portos portugueses, nomeadamente em Lisboa, de onde partiam as rotas comerciais para todas as colónias e feitorias.

Por outro lado, os Descobrimentos nunca teriam sido possíveis sem os conhecimentos navais dos judeus e muçulmanos, tanto dos que já estavam em território nacional, como aqueles que foram «importados» de toda a Europa e Mediterrâneo, e «convidados» a vir para o nosso país. Como os Descobrimentos foram originalmente assentes no absoluto secretismo e confidencialidade dos conhecimentos, através de votos impostos a membros da Ordem de Cristo (ex-Ordem dos Templários), não houve outro remédio senão armar cavaleiros da Ordem de Cristo também os sábios judeus e muçulmanos. Mais tarde, os descendentes destes judeus e muçulmanos passaram a ser «portugueses» como todos os restantes (súbditos dos monarcas reinantes), independentemente da fé que professassem. Na prática, muitos se tornavam depois cristãos por questões de conveniência — ou, mais tarde, com a perseguição da Inquisição (a partir de 1536) não tiveram outro remédio senão tornarem-se cristãos-novos para escaparem às condenações.

Com o tráfego de escravos entre África e o Brasil, passando evidentemente por Lisboa, estimava-se que no século XVI cerca de 10% da população de Lisboa era de etnia africana. Mas um século mais tarde, esta população desapareceu. Para onde foram? Na realidade, não foram para lado nenhum: foram «absorvidos» através de casamentos (ou relações extra-conjugais), de forma a que umas gerações mais tarde, deixaram de ser distinguíveis dos demais portugueses.

Também no século XVI, de acordo com certas pinturas e gravuras da época (como as reproduzidas abaixo), existia um grande número de diferentes grupos étnicos que transaccionavam e comerciavam livremente nas lojas e ruas de Lisboa:

Isto talvez para uma pessoa do século XXI não tenha nada de especial, mas para um visitante de uma Europa tendencialmente mais fechada a tudo o que não era «europeu» (ou melhor, cristão), a imagem de uma Lisboa com pessoas de todas as raças, etnias, línguas, vestuário, etc. a comprarem e a venderem coisas uns aos outros deveria fazer uma enorme confusão. Repare-se na austeridade do vestuário dos portugueses nas gravuras (sim, são os que se vestem todos de negro) comparado com as pessoas que não eram portuguesas. O artista resolveu mostrar que uns e outros se misturavam e que se toleravam mutuamente; mas de certeza que um visitante alemão ou francês haveria de ficar horrorizado com o que via!

No século XVIII, onde começa a haver mais homogenização de culturas e hábitos, o «estrangeiro» era uma classe social diferente das restantes. Frequentava os mesmos espaços da burguesia lisboeta, mas socialmente era colocado num extracto mais elevado — havia a habitual deferência submissa para tudo aquilo que não é nacional, e os «estrangeiros» (na sua esmagadora maioria comerciantes) gozavam do seu estatuto que não existia em mais lado nenhum da Europa. Ou seja: do espírito de tolerância para com o «outro», que adoptámos durante a consolidação do nosso império comercial, passámos para uma atitude em que o «outro», o «estrangeiro», é mais respeitado do que os concidadãos. Esse espírito perdurou durante dois séculos, pelo menos: a minha mãe, que era alemã (filha de pais alemães e nascida fora de Portugal), ainda gozava de um estatuto especial na sociedade lisboeta dos anos 50 e 60: pelo facto de ser «estrangeira», era-lhe permitido desfrutar de prazeres normalmente não aceites à maioria das mulheres portuguesas: por exemplo, o seu gosto pelo hóquei em patins (queria tornar-se profissional, mas nessa altura ainda não existiam equipas femininas…), o facto de ir sozinha aos cafés e de fumar em público — tudo isso era olhado com condescendência pelo facto de ser «estrangeira».

Hoje em dia, é certo, não haverá tanta diferença visível. Mas ainda há alguma. Em empresas que trabalhei, os estagiários estrangeiros eram sempre muito melhor tratados que os portugueses — eram acarinhados, faziam-se imensas actividades com eles, procurava-se despertar neles o gosto pelos hábitos e costumes portugueses (pelo menos relativamente à comida e ao vinho!). Os estagiários portugueses, esses, normalmente eram ignorados. Já a minha mulher, nas aulas que tem na universidade, repara na diferença de tratamento para com os alunos do programa Erasmus: alguns professores, para facilitar-lhes a compreensão da matéria, espontaneamente decidiram passar a dar as aulas em inglês, o que levou ao protesto de muitos dos alunos portugueses que não dominavam o inglês suficientemente para poderem acompanhar as aulas. E os professores também tendem a passar mais tempo a ajudar os alunos estrangeiros nos seus complexos e exigentes trabalhos. A nossa subserviência em relação aos «estrangeiros» continua, em certa medida. E isto porque temos como característica nacional a mania de que somos inferiores em capacidades relativamente a todos os outros povos, e automaticamente nos tornamos subservientes perante aqueles que consideramos superiores — é a consequência de séculos de sociedades paternalistas e condescendentes. Não iremos mudar assim tão depressa!

Assim, o «outro», entre os portugueses, não causa necessariamente um «problema» ou um «transtorno». A violência xenofóbica não é uma característica nossa: quanto muito, afastamo-nos daqueles que são «diferentes», mas não nos está no sangue agredi-los só por serem diferentes de nós. Podem causar-nos incómodo, mas acabamos por suportar esse incómodo em silêncio, estoicamente. É certo que depois vamos falar mal nas costas deles — isso é tipicamente português — mas não os incomodamos abertamente. A não ser que sejam muito mal-educados (aí é que talvez não nos contenhamos!). Conheci toneladas de exemplos de visitantes estrangeiros, nas mais diversas ocasiões e circunstâncias, que ficavam atónitos como os portugueses os recebiam, literalmente abandonando tudo da sua vida pessoal para lhes fazerem as vontades todas, fazendo um esforço para os integrar, para que se sintam à vontade. Depois, claro, ficavam horrorizados ao saberem (geralmente por acaso!) o que é que dizíamos nas costas deles! Esta dupla faceta dos portugueses, a da hipocrisia que nos força a uma fachada de polidez, de educação, de cortesia, até de subserviência, mas que depois, em privado, nos faz falar o pior possível das pessoas em questão, muitas vezes choca aqueles que não nos conhecem bem. Outros, pelo contrário, sabem desta nossa «personalidade dupla», e tiram proveito daquilo que os portugueses dizem e fazem abertamente, deliberadamente ignorando aquilo que dizem e fazem nas suas costas. É muito fácil fazer com que um hipócrita faça tudo o que queiramos — desde que estejamos preparados mentalmente para aceitar tudo aquilo que vão dizer nas nossas costas.

O espírito nacional da hipocrisia

Ora penso que esta estranha e invulgar atitude que os portugueses mostram em relação a tudo que seja «estranho», ou invulgar, ou pouco usual, também se estende, em certa medida, àquel@s que se apresentam de acordo com o género com que se identificam. A maior «barreira», julgo eu, foi ultrapassada com a progressiva aceitação da existência de pessoas com orientações sexuais diferentes das da maioria da população. Aos poucos, no entanto, começa-se a aceitar bem mais do que isso: de que existem pessoas com vivências de acordo com uma identidade que não é «adivinhável» meramente pelo seu aspecto exterior.

Mas esta «aceitação» não pode ser explorada apenas de uma forma passiva. Ou seja: não basta saber que, regra geral (havendo obviamente excepções), os portugueses toleram as pessoas transgénero, ou que pelo menos em público não irão «armar confusão» — independentemente da sua opinião sobre o assunto. É preciso desafiar os portugueses a colocarem a sua tolerância em prática, senão existe um risco: o do efeito de «não quero isto nas minhas traseiras» (not in my backyard, como dizem os anglo-saxónicos).

Esta é a atitude em que publicamente defendemos uma coisa, mas que quando somos confrontados com essa coisa na nossa realidade quotidiana, rejeitamo-la. Um exemplo clássico: a esmagadora maioria da população portuguesa não se considera racista. Mas mais de um quarto tentaria impedir o seu filho ou filha a namorar com alguém que tivesse pele negra. Isto é um caso típico de «racismo passivo», ou seja, apesar de dizermos que não somos racistas, pelo menos um em cada quatro portugueses, quando confrontado com uma situação em que tem de lidar com pessoas cuja côr da pele difere da sua, terá uma atitude racista.

Da mesma forma, se se fizer um inquérito perguntando às pessoas se são homófobas (ou mesmo transfobas), provavelmente a esmagadora maioria dirá que não — até lhes perguntarem o que fariam se o filho ou a filha admitissem ter uma orientação sexual não-heterosexual, ou uma identidade de género diferente da que lhes foi atribuída à nascença. Aí muito provavelmente um em cada quatro portugueses rejeitará esta situação!

Não será por acaso que o desemprego a nível das pessoas transexuais (pelo menos as que tenham sido acompanhadas pelo Serviço Nacional de Saúde) atinja quase os 100% — excluíndo-se daqui quem trabalha na indústria do sexo. Os potenciais empregadores podem até dizer que aceitam as pessoas transgénero, transexuais, com fluidez de género, etc. Mas não aceitam que tenham uma pessoa «dessas» a trabalhar para eles («o que pensariam os clientes…?»). Neste aspecto particular, penso que estamos infinitamente mais atrasados do que muitos países ocidentais. Ou seja: talvez em percentagem de aceitação, respondida em inquéritos, nos classifiquemos perto das médias ocidentais, ou quiçá mesmo acima delas. Mas quando os inquéritos incidem sobre as acções concretas («Contrataria uma pessoa transexual para a sua empresa?»), aí estamos muito pior que o resto dos países ocidentais.

Começa a ser mais frequente (especialmente entre os jovens) ver pessoas a apresentarem-se publicamente de acordo com um género que não foi o que lhes foi atribuído à nascença. Muitas vezes andam nos centros comerciais, rodeados de amigos (cisgénero), que os aceitam totalmente. Quando se sentam nos cafés, com os amigos, são atendidos com precisamente a mesma cortesia que todos os restantes clientes. No entanto, nenhum desses cafés emprega uma pessoa transexual ou transgénero — mesmo que não tenha qualquer problema em servir pessoas transgénero.

Penso que a razão para isto ser assim é bastante mais complicada do que se possa pensar. O racismo tem a sua origem na crença absurda que a côr da pele dita as capacidades intelectuais ou culturais da pessoa; por outras palavras, que uma pessoa de côr de pele diferente da norma será, de alguma forma, «inferior», e que deve, pois, ser tratada como um «ser inferior». Embora nas sociedades ocidentais esta noção possa não estar já completamente presente na mentalidade das pessoas, continua a existir discriminação e racismo porque se substituíu esta noção da «raça superior/inferior» por uma noção — igualmente errada — que as pessoas cuja côr de pele é diferente do da maioria pertencem a grupos criminosos. Ou seja, substitui-se o desprezo e condescendência de outrora pelo medo de que essas pessoas sejam «perigosas». Voltamos ao exemplo também dos ciganos: podemos ter sido «enganados» uma vez por um cigano, que achamos que «todos os ciganos são vigaristas e criminosos». Mas basta ver que isto estatisticamente não é verdade: em todos os mega-processos dos últimos anos, em que se desmascaram redes vastas de corrupção e tráfego de influência, com vigarices a escalas monumentais, não se encontra (pelo menos em Portugal) nenhum arguido que seja de etnia cigana!

No caso da homofobia e da transfobia, a coisa é mais complicada, porque não se está a mexer exactamente com questões de superioridade ou inferioridade (intelectual, cultural, comercial, etc…), mas com questões de sexualidade e identidade. As sociedades ocidentais, quer gostem quer não, continuam a ser influenciadas pela moralidade básica das Religiões do Livro. Podemos ser sociedades fundamentalmente ateias e laicas (ou quanto muito agnósticas), mas essa moralidade básica descrita (ou melhor, interpretada) na Bíblia continua a afectar os costumes e a maneira de pensar das pessoas. A Bíblia, infelizmente, é homofóbica — no entanto, sob o pretexto da liberdade de expressão, a sua divulgação não pode ser restrita. Qualquer outro livro que incite à violência (até mesmo violência racial, como existe na Bíblia) e à homofobia seria imediatamente retirado de mercado e os seus autores presos. Mas não se pode fazer nada em relação à Bíblia, porque é um livro religioso, e, como tal, é permitido aos crentes divulgarem as suas convicções entre si, mesmo que, ao fazerem-no, estejam a atentar contra direitos fundamentais de outros cidadãos e a violarem algumas leis básicas. Mesmo que isto seja feito inconscientemente, o resultado é que a orientação sexual não-heterosexual é vista como «moralmente errada» devido a uma quantidade incrível de argumentos parvos (talvez o mais parvo de todos seja o de que não existe homosexualidade na Natureza — ou seja, que Deus, ao fazer a Criação, não incluíu a homosexualidade, pelo que esta só pode ser obra do Demónio — quando o que temos mais é exemplos precisamente dessa homosexualidade em grande número de espécies!). Há também uma questão secundária, que se aplica à homosexualidade masculina: a noção de que os homosexuais (pelo menos os masculinos) têm muito mais sexo que os heterosexuais, pelo que a posição destes últimos é baseada na inveja — mesmo que depois se escudem com todo o tipo de argumentações pseudo-racionais para evitar confessar que, no fundo, gostariam era também de ter mais sexo…

Quando chegamos às pessoas trans*, encontramos muitas novas dificuldades. A primeira, claro, é a «novidade» disto tudo, ou seja, até relativamente há pouco tempo, as pessoas cis não encontravam pessoas trans publicamente — pura e simplesmente frequentavam espaços diferentes. A ideia de que as pessoas trans* também têm de andar nos autocarros para irem às compras no supermercado é uma relativa novidade. Apesar de tanta «inclusão» de tudo o que é diferente, e da quebra dos vários guetos e consequente tolerância de que aqueles que são «diferentes» possam estar no meio de nós e fazer as mesmas coisas que nós, as pessoas trans*, por alguma razão, deveriam ser confinadas apenas aos seus guetos (numa clara oposição ao espírito e tradição portugueses).

E porquê? Aqui as coisas são um bocadinho mais subtis: enquanto que a Bíblia é bem clara nas questões relativas à homosexualidade, a transexualidade não é directamente abordada — há só uma vaguíssima referência no Antigo Testamento que proíbe que os homens se vistam de mulher (Deut 22:5), à qual os fundamentalistas cristãos se agarram como lapas. O problema é que essa referência está incluída numa série de normas e preceitos judaicos que foram abolidos pela teologia cristã, pelo que esta norma relativa à roupa não se aplica aos cristãos. Mas pior do que isso é que existe um contexto para esta norma: existia para impedir que os homens desertassem dos exércitos, vestindo-se de mulher para se disfarçarem. Portanto nem sequer é uma norma que tenha a ver com um preceito religioso, mas simplesmente uma forma subtil de, nas sociedades teocráticas que usam a Bíblia como fonte de autoridade, poder aplicar um castigo (religioso) a quem seja desertor (ou objector de consciência) e que use um método subtil para enganar as autoridades: disfarçar-se de mulher.

Ora que as sociedades laicas contemporâneas queiram implementar leis de acordo com este último princípio, o de que as pessoas não se podem disfarçar para fugir à lei — isto parece-me perfeitamente óbvio que assim seja, e que seja legítimo implementar tal lei. Mas isto é algo de diferente: é assumir que se alguém está a disfarçar-se de outra pessoa para cometer um crime, então o disfarce, nesta situação, deve ser proibido. Mas em mais nenhuma situação. No Carnaval podemos disfarçarmo-nos como quisermos: o disfarce, ou melhor, o acto de nos disfarçarmos, não é um crime por si só. Seria como partir do princípio que toda a gente que assina um cheque é um criminoso, só porque existe a possibilidade de passar cheques carecas. A esmagadora maioria de todos os cheques que são passados em todo o mundo são perfeitamente legítimos. Alguns — muito poucos, na realidade — serão carecas, e passados com intenções criminosas. Mas não podemos tomar a parte pelo todo! Não me recordo, na realidade, quando é que foi a última vez que tenha lido uma notícia em que um homem se tenha vestido de mulher (ou vice-versa) para cometer um crime — penso que foi há alguns anos, e nos Estados Unidos. Cá em Portugal não tenho conhecimento de nenhum caso.

Não, na realidade nem sequer penso que seja (apenas) uma questão de «moralidade» baseada em preceitos cristãos incorrectamente compreendidos pelos fiéis — até porque a maioria dos portugueses não é cristã, por mais que o afirmem no baptizado e no casamento. Os portugueses são essencialmente «simpatizantes» do cristianismo, no sentido que o toleram. Mas somos profundamente anti-clericais, por questões históricas (pelo menos desde os tempos do Marquês de Pombal, e certamente que ainda mais na altura da 1ª República, e igualmente depois do 25 de Abril). Temos uma estranha relação de amor/ódio com a igreja católica apostólica romana, e que é bastante diferente de países tradicionalmente católicos como a Irlanda ou a Polónia (onde ainda hoje a transexualidade não é aceite), ou mesmo a nossa vizinha Espanha.

O problema, penso eu, é uma mistura de um ponto muito mais subtil, e de outro que é mais «óbvio» (embora totalmente incorrecto). O ponto mais subtil é que muitas pessoas, na presença de alguém que seja visivelmente transgénero, sentem as suas convicções sobre «identidade» a serem abaladas, ou pelo menos a serem questionadas. Eu pessoalmente acredito (mas é apenas uma «crença», não li nenhum estudo sobre o assunto) de que existe uma proporção bastante elevada de pessoas que questionaram, algures durante a sua vida, a sua identidade e o seu papel de género (ou pelo menos o seu papel social). Pode ter sido apenas num momento mau (por exemplo, durante um divórcio, em que se questionam se por acaso não foram «bons» maridos ou mulheres, seja o que isso signifique; ou durante o colapso de uma empresa, em que questionam se desempenharam bem o seu papel de gestor…) e que tenha sido rapidamente «tapada» essa pequena «quebra» numa fachada que consideram inabalável.

As pessoas transgénero colocam, literalmente, o dedo na ferida, ao mostrarem que não existe apenas preto ou branco. Se alguém sempre suspeitou de que existem pelo menos alguns tons de cinzento (mesmo que seja apenas «antracite» e «branco sujo»), é a visibilidade das pessoas trans* que mostra que essa dúvida existencial, o de que existem tons de cinzento, que claramente melhor o exemplifica. É o pai preocupado com a filha que só gosta de trepar às árvores e de andar a rebolar-se na lama em brincadeiras sempre atrás de rapazes da mesma idade, que persiste nesse comportamento por mais que o proíba — ou o filho calmo e recatado, tímido e introvertido, que passa o tempo livre a ler livros e a pintar imagens do que vê pela janela do quarto. É a imagem da mãe dominadora, que tratava de todos os negócios da família (como ainda é frequente, por tradição magrebina «emprestada», nas zonas do Alentejo e do Algarve) com rigidez, sobriedade, e até com agressividade; é a imagem de um pai franzino, condescendente, sorrindo timidamente, completamente dominado pela personalidade colérica da mulher, mas que perdia intermináveis tempos com o filho a fazer pequenos origamis. É a vizinha que montou uma lavandaria depois do cabeleireiro e que comanda um pequeno exército de funcionários, e tudo em que toca parece que se torna em sucesso comercial e financeiro, enquanto que o marido lá mantém a pequena lojeca de alfaite, fazendo umas camisas à medida para clientes distintos, mas que, não fosse o sucesso comercial da mulher, jamais poderia sequer pagar a renda do seu estabelecimento. É o irmão mais velho que sempre quis ser artista, que brevemente passou pela moda — primeiro como modelo, depois como estilista — acabando por abandonar todo para se dedicar como criativo numa empresa de publicidade; e a irmã mais nova, estudante afincada, de óculos de fundo de garrafa, que já vai no seu segundo doutoramento em Matemática e que acaba de receber um convite para ir para Princeton, mas que hesita porque não sabe se se consegue adaptar à vida longe da família…

Enfim, são pequenos exemplos como estes, por vezes memórias de um passado já remoto em que esta dualidade inviolável dos papéis de género foi colocada em questão. Em nenhuma destas alturas — em nenhum destes exemplos — se falava verdadeiramente em questões de «identidade», ou de «papéis de género». A dona do cabeleireiro e da lavandaria (e depois do pequeno restaurante, da boutique, da loja de artigos desportivos…) nunca lhe passou pela cabeça de que fosse outra coisa senão «mulher» — independentemente do seu talento para os negócios, da sua agressividade para com os funcionários (e fornecedores!), da forma como resolve todos os problemas do dia-a-dia baseados na lógica, na racionalidade, no seu sentido prático e pragmático. Nada disso a fez «questionar» a sua feminilidade. E o alfaiate pacato lá a coser as suas camisas também nunca questionou a sua masculinidade: afinal de contas, ainda hoje em dia, os maiores estilistas do mundo (assim como os maiores cabeleireiros e cozinheiros) são sempre homens (independentemente depois da sua orientação sexual!). Ser-se alfaiate, com talento para a moda, para a estética, para as proporções, enfim, tudo isto é uma profissão eminentemente «masculina»… ou não o será?

Enfrentar uma pessoa trans* na rua, ou num espaço público, volta a trazer estas dúvidas e questões à mente de quem os observa. E isto é incómodo. A vizinha, comerciante dominadora, de personalidade colérica e agressiva… seria, no fundo, «um homem em corpo de mulher»? Mas a verdade é que a vizinha nunca tinha dito nada pelo assunto; tal coisa jamais passaria pela cabeça dela ou sequer dos vizinhos. A sua personalidade nem sequer era encarada como «masculina» — nem por ela, nem pelo marido, nem pelos vizinhos, nem sequer pelos funcionários, e muito menos pelos clientes. Jamais passaria pela cabeça de alguém classificar tal pessoa como qualquer outra coisa que não «mulher». No entanto — pensaria essa pessoa, hesitante quanto a estas questões da «dualidade imutável dos papéis de género» — a verdade é que não se comportava como uma «mulher tradicional», o que quer que isso fosse. E nem sequer se tratava de um exemplo recente, de uma sociedade supostamente evoluída em que as mulheres podem muito bem ser o que quiserem, que ninguém tem nada a ver com isso. Mulheres como a vizinha comerciante sempre existiram. Lá na aldeia, recordar-se-ia o nosso hipotético observador, haviam mulheres com 90 anos que ainda iam todos os dias para os campos orientar os trabalhadores; ainda eram elas que negociavam com os distribuidores, com os capatazes, com os fornecedores de adubo; eram elas que faziam a sua rudimentar contabilidade agrícola, que planeavam a vindima, que calculavam o fruto da sua lavoura, e do que precisavam de fazer para aumentar os seus rendimentos. Com 18 anos ou com 90 anos, sempre houve mulheres que não se comportavam como mulheres; tal como sempre houve homens que não se comportavam como homens. E é a visão de uma pessoa trans* em público que vai fazer-nos recordar subitamente de todas essas memórias, recentes ou muito antigas, e colocar tudo em questão.

A maioria das pessoas não gosta de ser abalada nas suas convicções mais profundas (especialmente aquelas que já tenham, por vezes, questionado essas mesmas convicções, e que tenham reprimido as suas respostas, preferindo adoptar as respostas que «a sociedade» lhes dá), e as pessoas trans*, apenas por existirem, têm esse dom mágico de sacudir os alicerces sobre os quais se assentam essas convicções. E isso, sejamos sinceros, pode ser profundamente irritante — ou mesmo assustador. O que conduz naturalmente a uma rejeição — à transfobia — pois o que se quer é que esse tipo de pessoas, que estão a minar a nossa confiança na nossa própria imagem do mundo, que sejam afastadas da nossa vista e colocadas num gueto.

A segunda questão, como disse, já não é nada subtil. Infelizmente para as pessoas trans*, a esmagadora maioria das pessoas que terão alguma forma de ligação com o desempenho de papéis «alternativos» de género, vão encontrá-lo no sexo. Os lisboetas, por exemplo, estão fartos de saber onde é que se encontram as prostitutas transexuais. Então hoje em dia, com o acesso facilitado via Internet a tudo o que sejam conteúdos de índole sexual, é fácil de ver que o que não falta mais por aí são homens vestidos mais ou menos convincentemente de mulher para atraírem potenciais parceiros sexuais. E aqui caímos precisamente no mesmo tipo de questão que na homofobia: é passada a percepção de que esses homens que se vestem de mulher, de forma inexplicável, têm muito mais sexo do que os homens cisgénero e heterosexuais — e isso, de certa forma, parece «injusto», e suscita inveja. A transfobia, neste caso — tal como a homofobia no caso anterior — resulta desta noção das sociedades ocidentais que, de certa forma, ter prazer sexual é «errado», e que aqueles que tenham muito prazer sexual (ou seja, mais que a média) deverão, de certa forma, ser «punidos». E não estou a falar meramente dos casos religiosos. Mesmo entre os laicos continua a perdurar esta maneira de pensar. Não sem uma certa razão: de um ponto de vista puramente estatístico, e sem querer implicar qualquer forma de preconceito, homens com relações homosexuais tendem a ter muito mais relações sexuais do que homens heterosexuais, e isto explica-se muito facilmente do ponto de vista da selecção natural — a promiscuidade é o factor de maior sucesso de reprodução para os homens, enquanto que a escolha criteriosa do melhor parceiro (aquele disposto a cuidar dos filhos) é a estratégia vencedora para as mulheres. Não há nada nisto senão uma propensão biológica, mais nada; não se trata de moralidade, ou de métodos de constituição de sociedade, nada disso: são apenas determinações que têm a ver com a nossa herança genética. Somos primatas gregários que se organizam hierarquicamente de acordo com determinado estatuto social — ou seja, aqueles que estão nas camadas sociais mais elevadas tendem a ter mais e melhores parceiros sexuais que os que estão nas camadas inferiores. Isto, mais uma vez, nada tem a ver com filosofia, política, activismo social… é apenas uma consequência dos nossos ancestrais comuns com certos primatas nos terem dado esta noção da forma como devemos hierarquizar as nossas sociedades. Claro que temos a vantagem de sermos também uma espécie inteligente, capaz de superar os seus próprios «instintos animais» (uma afirmação que considero profundamente injusta, pois quem tem animais domésticos sabe perfeitamente que estes também sabem «dominar» os seus próprios instintos, muitas vezes até bem melhor do que os respectivos donos — nós, humanos, não somos diferentes, apenas temos algumas capacidades adicionais e bem desenvolvidas de acordo com aquilo que nos concedeu uma vantagem evolutiva, mais nada), e que por isso podemos «suprimir» o nosso «instinto sexual» (apenas a título de exemplo) para criarmos sociedades muito maiores e muito mais estáveis. Pelo menos é isso que está na cabeça das pessoas com transfobia — especialmente as pessoas que vivam em sociedades ocidentais outrora dominadas pela religião: a idéia de que as pessoas no fundo se devem «conter» na sua excitação sexual, de que o excesso de prazer é, de certa forma, «errado», e que a utilização de estratégicas que visem proporcionar mais e mais prazer sexual são profundamente «erradas».

As pessoas trans* são, assim, tratadas como uma espécie de super-fetichistas, que desenvolveram estratégias altamente apelativas para aumentarem o seu prazer sexual, recorrendo a «aberrações» e «desvios» daquilo que é a «normalidade». Um exemplo: ao «fingirem» serem mulheres, certos homens conseguem assim atrair outros parceiros sexuais masculinos, que têm muita dificuldade em ter relações sexuais com outros homens, mas que, ao verem uma pessoa que lhes parece ser feminina (mesmo que o seja apenas vagamente), e que está disposta a comportar-se como uma mulher, sendo mesmo submissiva no acto sexual, cria as condições para criar uma «ilusão» na cabeça do homem que tem sexo com «ela». Da mesma forma, a estratégia deste tipo de crossdressers fetichistas é o de se auto-humilharem, vestindo-se de um género que não é o seu, porque essa estratégia lhes angaria um número muito superior de parceiros sexuais que de outra forma não seria possível. Se houvesse dúvidas quanto a estas «estratégias», e como hoje em dia tudo isto se pode assistir na Internet «ao vivo e a cores», basta ver a quantidade absurdamente gigantesca de homens que se consideram «verdadeiras mulheres na cama», e que não têm qualquer prurido em colocarem imagens e vídeos seus para «provarem» essa sua alegação. Por sua vez, há de facto um grande número de homens que procura este tipo de experiências, confessando, em público, que «relações sexuais com homens a fazerem de mulheres são mais excitantes do que relações com mulheres». Não colocarei, evidentemente, qualquer uma destas alegações em questão; tratam-se de experiências pessoais, muito subjectivas. O certo é que são partilhadas por imensas pessoas!

Assim, a imagem de uma pessoa que é claramente «crossdresser» (agora no sentido puramente funcional da palavra: enverga roupa pertencente a um género que não o que lhe foi atribuído à nascença; e opcionalmente complementa essa atitude com o adoptar de maneirismos, atitudes, personalidade, etc. apropriadas ao género cuja roupa enverga) desperta, naqueles que @ vêm, um imediato apelo à sexualidade. E isto, uma vez mais, é algo que não gostamos de ver em público. Queremos que se deixe a sexualidade onde ela pertence, ou seja, na privacidade do lar. Não a queremos a ser «exibida» na rua.

Nem se trata das pessoas serem mais ou menos liberais ou conservadoras nas suas atitudes. Por muito liberal que uma pessoa seja, regra geral, irá respeitar as normas da sociedade. Uma dominadora com os seus escravos não se veste para ir passear com eles na rua tal como o faz na sua masmorra e/ou no clube privado BDSM que costuma frequentar. Em público, adopta vestuário e atitudes apropriadas, de acordo com a sociedade onde vive. É só na esfera privada em que dá largas à sua sexualidade. Mas de resto mantém-na oculta do público em geral.

Da perspectiva de muitas pessoas, no entanto, as pessoas trans* não fazem isso. Como o envergar roupas do género «errado» é imediatamente associado à sexualidade, então as pessoas trans*, por mais «normais» que sejam as suas roupas (no sentido de serem apropriadas ao lugar, à idade da pessoa, à época do ano, etc.), são sempre vistas como um ícone da sexualidade que se exibe em público. Ou seja: o carácter alegadamente exibicionista das pessoas trans* (pois são assim que estas são vistas) — e falo agora em termos jurídicos — pode eventualmente perturbar as pessoas que as vêem, e essa perturbação pode até ser considerada por alguns cidadãos mal informados como sendo ilegal!

De facto, o actual Artº 170 do Código Penal, que se refere aos casos de Importunação Sexual (antigamente eram descritos como exibicionismo), diz o seguinte:

Quem importunar outra pessoa, praticando perante ela atos de carácter exibicionista, formulando propostas de teor sexual ou constrangendo-a a contacto de natureza sexual, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.

Ora na realidade é mais que evidente que isto não se aplica e que não se pode aplicar a pessoas trans* ou crossdressers — nem é essa a intenção do legislador — mas a verdade é que as pessoas que observam pessoas trans* ou crossdressers num espaço público podem sentir-se «importunadas», e, como associam a pessoa trans* a uma forma de sexualidade, ou a uma «proposta de teor sexual» (no fundo, alegando que o envergar de roupas do género com que se identificam afirma, de certa forma, a disponibilidade em ter relações sexuais…), consideram que de alguma forma devia ser proibido…

Note-se que a jurisprudência relativamente a este artigo é bem clara e explica em que casos se aplica. Por exemplo, é importante que o «importúnio» ocorra em situações em que a vítima não possa evitar a pessoa em questão; evidentemente, na rua ou na maioria dos espaços públicos, há sempre maneira de «evitar» olhar para uma pessoa trans* de frente, e, logo, deixar de se ser importunado. E evidentemente que o que se pretende com este artigo é essencialmente impedir que as pessoas exibam os seus genitais em público como forma de «convite» à actividade sexual, especialmente no caso de perfeitos estranhos (e, infelizmente, em Portugal, quase todos os casos têm envolvido crianças…).

Ou seja, tal como no caso do exemplo retirado da Bíblia, estamos na presença de incompreensão do espírito e da letra da lei, e a aplicá-la fora de contexto…

Ainda por cima, talvez a ironia máxima seja que são justamente as crossdressers que estão eventualmente mais interessadas em experiências sexuais com potenciais parceiros que evitam saír à rua, ou seja, toda a sua actividade, com poucas excepções, limita-se a locais estritamente privados. Mesmo a maioria dos «encontros» ou «convívios» com crossdressers não ocorrem em espaços públicos — mesmo que possam ter início num local público, em que ambas as partes se conhecem, é frequente depois a crossdresser só se «montar» no próprio espaço privado. Haverão algumas excepções (como há sempre em todas as circunstâncias!) mas serão muito poucas.

Ou seja: esta questão da «hipersexualidade» associada — erradamente! — às pessoas que andam na rua com roupas que eventualmente não sejam apropriadas ao género que lhes foi atribuído à nascença está, lamentavelmente, a prejudicar a imagem das pessoas trans*. Quando, no fundo, essa sexualidade existe, e não é pouca; não podemos negar, de forma alguma, que a esmagadora maioria das crossdressers só o fazem para praticar actos sexuais, e essa imagem é a que é passada para o público; mas lá porque se aplique à maioria das pessoas, não se aplica a todas. E é neste ponto que temos de nos focar.

A invisibilidade também significa haver pouca gente disponível para a combater… porque são, realmente, poucas!

Recentemente respondi a uma pergunta pública, em que questionavam se a maioria das crossdressers eram homosexuais ou heterosexuais, e se era verdade que a maioria que eram homosexuais (neste contexto estava-se a falar de crossdressers MtF que preferissem homens como parceiros sexuais) acabavam por se tornar mulheres transexuais.

Esta é uma questão que segue muito a linha da velha piada, contada vezes sem conta nos círculos de crossdressers masculinos:

— Qual a diferença entre uma crossdresser (MtF) e uma mulher transexual?

— Cinco anos.

A minha resposta foi explicar não só que a preferência sexual das crossdressers está completamente separada do seu acto de crossdressing propriamente dito, e que na realidade o número de pessoas trans* era reduzidíssimo (mesmo no universo das crossdressers!), e, mesmo entre estas, serão poucas as que efectuam a transição. Por isso não se podia, de todo, falar da «maioria». Algumas, sim, decerto que efectuarão a transição. Mas para ilustrar os números, dei o seguinte exemplo:

Imagine-se uma universidade com 10.000 alunos. Destes, provavelmente 250 serão crossdressers MtF (mesmo que, claro, mais ninguém o saiba). Dos 250, no máximo 30 (alguns estudos dizem que serão apenas 15) serão transgénero, mas nem sequer é garantido que todas estas pessoas realmente façam a transição; na realidade, dada a dimensão do universo de alunos da universidade, é pouco provável que exista sequer uma única pessoa transexual. A população de alunos que seja homosexual, bisexual, ou com uma orientação sexual não-heteronormativa, serão talvez uns mil; das 250 crossdressers, só 12 serão não-heteronormativos (ou seja, interessadas em terem sexo com parceiros masculinos), embora seja altamente provável que quase todas as pessoas transgénero MtF nessa universidade prefiram realmente parceiros sexuais masculinos. É discutível o número de crossdressers, de entre as 250, que sejam realmente homosexuais — mas a esmagadora maioria será bi-curiosa, mesmo que seja altamente provável que tenha um parceiro feminino numa relação estável.

Isto deve ajudar-nos para colocar as coisas em perspectiva. Mesmo que a nível da Internet pareçam surgir crossdressers por todo o lado (assim como grupos de «fãs de crossdressers» com a intenção de «conviverem» com estas), a verdade é que são mesmo muito, muito poucas. Se parecem «muitas» é porque estão concentradas nos mesmos sites!

Quando largamos o espaço da Internet — onde certamente existe alguma «visibilidade» das crossdressers e de (algumas) pessoas trans* — e saltamos para «a vida real», tudo se torna muito mais complicado. Imagine-se de novo o exemplo da universidade dado anteriormente. Vamos imaginar também que, a dado dia, todas as 250 crossdressers decidem «revelar-se» e vestir roupas de mulher enquanto fazem as suas actividades habituais na universidade. Assumindo que cada aluno na universidade, por dia, encontra em média umas 500 pessoas, mas fala apenas com umas 20 ou 30, isso quer dizer que provavelmente nunca verá mais do que uma crossdresser por dia, e será altamente improvável que fale sequer com ela.

O que se passa com estas contas? É que quando dizemos que numa universidade estão 250 crossdressers, talvez a primeira reacção seja imediatamente pensar: «xiça! isso dava para encher um auditório!» E é verdade. No entanto, no dia-a-dia, nunca vamos ver todos os 10.000 alunos, mesmo que saibamos que estamos a co-habitar o mesmo espaço com eles. Mas cada aluno terá os seus percursos próprios — as aulas a que vão, os horários próprios que têm, etc. — e é impossível ter contacto com toda esta gente. Aliás, é segundo este tipo de princípios que se pode adequar a dimensão de uma cantina universitária: a probabilidade dos 10.000 alunos estarem todos ao mesmo tempo na cantina — mesmo que na realidade almocem mais ou menos à mesma hora — é baixíssima, perto de zero.

Assim, neste exemplo, é possível que os alunos até tenham lido sobre o «Dia da Revelação», e que saibam que andem por aí no campus universitário umas 250 crossdressers, e, portanto, estarão atentos para as descobrir… mas assumindo que todas as crossdressers estejam a fazer também elas a sua rotina habitual (ou seja, não combinaram concentrar-se todas na praça central e fazer uma marcha de orgulho crossdresser…), então a probabilidade de ver mais do que uma por dia é incrivelmente baixa. Ora mesmo que também saibam que o número de pessoas transgénero (independentemente do seu género) caibam todas numa sala de aulas, a verdade é que não têm qualquer probabilidade de as ver — pelo menos não todos os dias! Se não me falham os cálculos, penso que só verão uma pessoa transgénero de 10 em 10 dias. E isto, claro está, assumindo que todos os dias estarão a ver pessoas diferentes — o que nunca será verdade, pois cada aluno da universidade tenderá a ver o mesmo grupo (aproximado) de pessoas todos os dias. Portanto, estas probabilidades representam números ideais; na realidade, será muito menos provável que se encontrem quaisquer pessoas transgénero, mesmo ao final de um mês. Será mesmo possível acreditar que «não existem pessoas transgénero na nossa universidade» porque a maior parte dos alunos nunca as verá!

Se expandirmos agora a dimensão do nosso universo, por exemplo, olhando para a Grande Lisboa e os seus 2,9 milhões de habitantes… sabemos que andarão por aí umas setenta mil crossdressers. Dariam para encher um dos estádios da 2ª Circular 🙂 Parece uma vastíssima multidão, mas na verdade, quase nenhuma destas crossdressers andará em público vestida de mulher, pelo que serão todas invisíveis; mas estarão no Facebook onde parecerão uma multitude! O certo é que nunca as veremos na rua, pois não há nenhum «Dia da Revelação» que as torne, de súbito, todas elas visíveis…

Mas podemos postular que pelo menos as pessoas transgénero, de alguma forma, serão mais visíveis, já que muitas estarão já a usar roupas do género com que se identificam. Segundo as proporções calculadas para outras cidades europeias, a Grande Lisboa terá talvez uma nove mil pessoas transgénero. Este número, mais uma vez, parece-nos gigantesco — se cada pessoa transgénero trouxer o seu carro para o Centro Comercial Colombo, não haveria lugares no parque de estacionamento para que coubessem tod@s lá; se fossem todas para a Praça do Município em Lisboa, só muito apertadinhas é que cabiam lá — até também termos em conta a dimensão da área da Grande Lisboa, cerca de 1,376 km² e com uma densidade populacional de duas mil pessoas por quilómetro quadrado.

Assumindo que as nove mil pessoas se distribuissem uniformemente por esta área toda, davam uns 150.000 m² para cada pessoa. Isto equivale a um quadrado com 400 metros de lado! Ou seja: na melhor das hipóteses, para vermos duas pessoas transgénero no mesmo dia, teríamos de andar mais ou menos meio quilómetro de cada vez…

Mas na realidade as coisas são bem mais complicadas do que isso. Em primeiro lugar, é evidente que as pessoas não estão uniformemente distribuídas: há muito maior densidade populacional em Benfica, por exemplo, do que na Várzea de Sintra. Ou seja, na prática isto significaria que haveriam áreas da Grande Lisboa em que poderíamos potencialmente encontrar mais pessoas transgénero, enquanto que noutras teríamos de andar vários quilómetros até descobrir uma.

Mas temos de ser mais realistas: a probabilidade de, em determinado instante do tempo, estarem todas as pessoas transgénero algures na rua é virtualmente nula. E isto por uma razão muito simples: o número de pessoas transgénero que estão no teste de vida real ou que já terminaram a sua transição (assim como o das pessoas transgénero que não pretendem fazer transição, ou porque são bi-género, ou porque têm fluidez de género, etc.) não serão muito mais de duzentas pessoas (já tendo em conta que algumas conseguiram fazer as suas cirurgias no estrangeiro e passaram à margem do Serviço Nacional de Saúde). E isto a nível nacional, não apenas da Grande Lisboa. Mesmo que se assuma que metade vivam em Lisboa (é plausível), é mesmo muito pouca gente. É que as restantes pessoas transgénero ou ainda não se assumiram como tal, ou nem sequer estão a pensar em fazê-lo (pelas mais diversas razões), pelo que são completamente indistinguíveis das restantes pessoas.

Ter justamente a «sorte» de encontrar uma pessoa transgénero, que seja reconhecível como tal, no meio da cidade de Lisboa, é, pois, muito mais difícil que encontrar uma agulha num palheiro!

A esmagadora maioria das pessoas jamais verá em toda a sua vida uma pessoa transgénero — e mesmo que @ veja, será pouco provável que @ reconheça como tal (pois ou estará vestida de acordo com o género atribuído à nascença, ou fará parte do pequeno grupo de pessoas privilegiadas que são completamente indistinguíveis das pessoas cisgénero no género com que se identificam). É um nível de invisibilidade surpreendente, quando se começam a olhar para os números. O único contacto que a população terá, em geral, com as pessoas transgénero será através da televisão e das notícias.

É certo que haverão locais onde pode ser mais provável encontrar pessoas transgénero — embora, por razões óbvias (transfobia!), não será assim tão fácil como isso chegar a esses locais. A título de exemplo, mesmo no Hospital Júlio de Matos, onde são seguidas centenas de pessoas transgénero, apesar de ter lá ido a imensas consultas, só encontrei uma vez uma pessoa (para além de mim) — e que pouco tempo depois nos «re-encontrámos» no Facebook! É certo que há alguns locais onde a probabilidade de @s encontrar é maior — no Príncipe Real à noite, no Centro Comercial Colombo, etc. — mas, mesmo assim, é um acontecimento muito, muito raro.

Ora, no meu entender, há que alterar esta situação!

Aumentando a visibilidade

Por mera ironia do destino, nas minhas últimas décadas, passei grande parte do meu tempo a divulgar novidades obscuras, que na altura eram completamente desconhecidas da população portuguesa, e que necessitavam de um orador que conseguisse falar nestes assuntos às pessoas em geral. Desde explicar para que é que servia a Internet (isto em 1994, um ano depois de aparecer o primeiro navegador gráfico para a Web…), passando pela divulgação da ficção científica, de jogos de tabuleiro, de realidades virtuais… enfim, por algum estranho destino, acabo sempre por andar a passear por esse país fora a explicar coisas «fora do comum», normalmente a audiências muito confusas, que não percebem para que serve aquilo que lhes estou a explicar (imaginem o que é explicar «redes sociais» dez anos antes do Facebook ter sido lançado, e podem imaginar a confusão da audiência…).

Todas essas «divulgações», no entanto, tinham uma série de pontos em comum. Eram em espaços públicos: desde livrarias a entradas de cinema, mas principalmente em auditórios universitários e em salas de aula nos liceus. A divulgação do evento em si cabia normalmente à organização que me convidava — quase sempre só com um âmbito local, relativamente restrito e reduzido, mas atraía sempre um público interessado em ouvir falar de «novidades obscuras», por poucas pessoas que fossem. E a «divulgação» propriamente dita pouco mais era do que umas demonstrações, feitas frequentemente com o auxílio de uns acetatos num retroprojector — que rapidamente foram substituídos pelo PowerPoint, e por demonstrações em tempo real através de Internet wireless de banda larga… e era pouco mais do que isto. Alguns eventos eram muito informais, e dessa forma muito mais divertidos; outros eram fortemente formais (e terrivelmente aborrecidos…). Mas o formato era sempre mais ou menos o mesmo…

Ora para explicar as questões com que se debatem as pessoas transgénero — e não falo apenas na reclamação de direitos e apoios, ou da lamentação sobre a transfobia passiva ou activa, mas mesmo as coisas mais banais do dia-a-dia — não me parece que este tipo de formato funcione, e por variadíssimas razões. Passo a enumerar algumas!

Em primeiro lugar, há aqui uma dupla necessidade de divulgação: uma é a de dar a conhecer a população transgénero à população em geral; a outra é comunicar informação preciosa à população transgénero «desconhecida» — essas tais nove mil pessoas que por aí andam, muito poucas das quais alguma vez sequer falaram a alguém sobre o assunto. É certo que o mesmo evento pode servir para as duas coisas. Mas aqui é que está o cerne da questão: embora se diga, e bem, que o saber não ocupa espaço, a verdade é que são poucas, mesmo muito poucas, as pessoas que têm o menor interesse em ouvir uma apresentação sobre as questões transgénero. Como sessão de formação para activistas LGBT, com certeza que tal evento faria sentido. Também haverão sempre alguns alunos de psicologia/psiquiatria, sociologia, ou antropologia que eventualmente achassem interessante o contacto «ao vivo» com potenciais futuros pacientes ou objectos de estudo. E haverão sempre um ou outros curiosos… assim como aqueles que andam sempre à coca dos sítios onde as pessoas transgénero se «escondem», para que lhes possam fazer propostas de índole sexual 😛

Seria, pois, muito pouca gente, e ainda por cima, na maior parte dos casos, já seria uma audiência com informação razoável sobre o assunto.

Por outro lado, a população transgénero «desconhecida», ou «não assumida», jamais viria a um evento deste tipo — porque isso imediatamente as assinalaria como «transgénero», com consequências para a sua vida social, profissional e familiar. Por isso, dentro deste grupo — porventura potenciais interessados! — não haveria qualquer adesão!

Poderemos usar o mesmo tipo de argumentos para eliminar, um a um, todo o tipo de eventos de divulgação, e veremos que todos parecem padecer do mesmo problema: as questões transgénero no fundo só interessam a uma pequeníssima fracção da população, nomeadamente:

  1. As próprias pessoas transgénero, assumidas como tal ou ainda não;
  2. Os respectivos familiares mais próximos, e eventualmente alguns amigos, para tentarem compreender melhor a situação da pessoa que conhecem ou com quem têm de lidar;
  3. Os activistas;
  4. Os médicos e académicos que estudam o assunto;
  5. Eventualmente algumas pessoas em funções públicas ou oficiais que possam ter de lidar com pessoas transgénero, como por exemplo a polícia, os enfermeiros, os educadores nas escolas, os funcionários administrativos dos registos civis, etc;
  6. Uma mão-cheia de pessoas que são curiosas por qualquer assunto;
  7. Alguns predadores sexuais.

Isto não é a mesma coisa que fazer uma acção de divulgação sobre, por exemplo, a problemática da toxicodependência. Mesmo que uma pessoa tenha a certeza absoluta que nunca venha a ser toxicodependente, é possível (mesmo muito possível) que conheça algum amigo ou familiar que tenha passado por problemas de toxicodependência, nem que seja apenas em relação ao álcool ou a certos medicamentos perfeitamente legais. Trata-se, pois, de um assunto que, mesmo que «distante» em certo sentido de muitas pessoas (a maioria dos portugueses nunca virá a ser toxicodependente), está «próximo» porque é muito provável termos um contacto com alguém que foi, ou ainda é, toxicodependente. Por isso este tipo de acções faz sentido serem para o público em geral. O mesmo em relação a coisas como o cancro, a nutrição, a prevenção de doenças sexuais, etc. De alguma forma, mesmo que muito vaga, o potencial público consegue estabelecer alguma empatia com o assunto.

Mas com as questões transgénero isso não vai acontecer. A esmagadora maioria da população nunca irá precisar de se debater com o assunto — só uma fracção ínfima dos pais, dos educadores de crianças, dos professores na escola alguma vez terão de enfrentar a problemática, porque têm «um caso» entre mãos. Mas isso acontecerá só mesmo por muito acaso, e, se acontecer, será provável que só aconteça uma vez na vida desse pai, educador, ou professor. Por isso é algo com que não se vão preocupar. Se alguma vez acontecer, então telefonam a um perito a pedir ajuda. Felizmente já temos alguns, e muito bons, e os que temos chegam.

Falar de questões transgénero à população em geral é como tentar vender frigoríficos a esquimós. A maior parte dos esquimós nunca precisará de um frigorífico durante toda a sua vida. Alguns, decerto, irão emigrar para climas mais quentes, e nessa altura terão de se preparar para usar um frigorífico pela primeira vez. Mas podem pedir ajuda a um amigo, nessa altura, se alguma vez acontecer. Agora o que não faz sentido é andar pelo círculo polar ártico, com um frigorífico às costas, batendo à porta de cada casa (ou iglú…) e perguntando se podem fazer uma demonstração. O produto não tem qualquer utilidade para a vida quotidiana dos esquimós. E, da mesma forma, o conhecimento sobre as questões transgénero não tem absolutamente nenhuma utilidade para a esmagadora maioria das pessoas na sua vida do dia-a-dia.

Assim, a meu ver, só há duas vias saudáveis para promover a divulgação. A primeira, claro está, é falar no assunto na televisão. Quer se queira, quer não, a televisão ainda é o método por excelência para divulgar informação à esmagadora maioria da população, pois é unidireccional e as pessoas, em geral, têm pouco controle sobre o que vêem — e isso não mudou, apesar dos vinte anos de Internet em Portugal, e da infinidade de métodos ao nosso dispôr para nos distrairmos. E se existe algum conhecimento da população portuguesa sobre as questões transgénero, só temos a agradecer a profissionais da comunicação social como a Conceição Lino, entre outros (poucos, mas bons!), que conseguiram lutar por uns preciosos minutos de tempo em prime time para falar destes assuntos. Estamos ainda muito longe de conseguirmos ter um programa como o I am Cait em Portugal, ou mesmo uma rubrica semanal de 5 minutos inserida noutro programa ou no noticiário, mas digamos que há formas de lá chegar. Devagarinho, mas é possível. E sem dúvidas que esta é uma via possível. Tem talvez a dificuldade da forma como são colocadas as questões propriamente ditas; a televisão gosta de vender emoções fortes, e é mais fácil apresentar a imagem do «coitadinho do transexual» a tremer de frio e cheio de fome a viver na rua, ou, pelo contrário, ter a Patrícia Ribeiro a mostrar os sucessos que tem alcançado com os seus álbuns. A maioria das pessoas transgénero está algures entre estes dois extremos, e mostrar como vivem de facto pode ser uma experiência terrivelmente monótona para a televisão. Aqui é preciso realmente ter conhecimento do meio mas também capacidade de comunicação a nível dos mass media, o que não é sempre facilmente conciliável. Além do mais, há uma certa exposição das pessoas transgénero na televisão que poderá ser fatal para aquel@s que o que desejam é ser deixad@s em paz e que chamem pouco a atenção sobre el@s. Isto também não é fácil de conciliar com a necessidade de falar publicamente sobre o assunto!

A outra via é muito mais subtil, claro está, mas talvez surta efeito de outra forma — que é, pura e simplesmente, deixar o conforto dos guetos, da privacidade das respectivas casas, e fazer as coisas mais normais e banais possíveis, desde ir às compras, ao médico, ou ao restaurante, sem receio nem vergonha de se exprimir de acordo com a sua identidade de género. Isto significa interagir com pessoas fora dos clubes de swing, das saunas, dos bares LGBT. E essa interacção não precisa de ser «forçada». Não é preciso passar panfletos para as mãos das pessoas. Basta agir, com toda a naturalidade, sem preocupações se estamos a «passar» ou não. Na maior parte dos casos não iremos «passar» nem por um único instante, mas isso não nos deve desanimar de forma alguma — e essa segurança de que, enquanto pessoas transgénero, temos os mesmíssimos direitos que qualquer outra pessoa em Portugal, deve-nos dar confiança e auto-estima para, no fundo, fazermos exactamente o que as outras pessoas fazem, exactamente da mesma forma, em exactamente os mesmos sítios.

Porque as pessoas olham para nós (chamamos sempre a atenção, por mais discretas que sejamos…), e nos vêem a interagir, somos uma espécie de «embaixadores» da comunidade transgénero, sempre que estamos numa fila do Lidl à espera para pagar na caixa. Os portugueses, com este misto de hipocrisia mas também de uma certa abertura de espírito, raramente irão «meter-se» connosco. Mas vão falar sobre o assunto. Vão contar aos amigos. Vão fazer perguntas. Provavelmente vão mesmo fazer uma pesquisa na Internet, a ver se apanham mais coisas sobre o assunto. E isso é bom, é positivo. No limite — e isso seria excelente se acontecesse! — far-nos-ão directamente perguntas a nós, por curiosidade. Claro que há aqui um bocadinho a imagem do «monstro do circo», a criatura deformada que é usada para chamar a atenção (como se fazia no final do século XIX e início do XX). Não há outro remédio, nesta fase, pouco mais podemos do que sermos um bocadinho «monstros», mas mostrar, pela forma como interagimos, que somos uns mostrengos simpáticos e perfeitamente pacíficos, como qualquer outra pessoa.

Esta é uma forma de «invisibilidade visível», ou seja, perder o receio de fazer exactamente as mesmas coisas que todas as pessoas (tornando-nos «invisíveis» dessa forma, pois não nos mostramos nem diferentes, nem especiais, nem a fazer coisas do outro mundo, mas apenas coisas banais que qualquer outra pessoa também fará), mas ao mesmo tempo, devido ao nosso aspecto físico, não há como evitar chamar a atenção, pelo que somos dessa forma bem «visíveis».

Isto não é para qualquer pessoa! Há uma série de barreiras internas que temos de ultrapassar. A principal barreira, claro está, tem a ver com o condicionamento de que recebemos ao longo de décadas que nos diz, de certa forma, que o que somos «não está correcto». Essa sensação será sempre difícil de eliminar completamente. É preciso ganhar a confiança e a auto-estima que nos diz que todas as pessoas são diferentes, individualmente, mas que isso não quer dizer que não partilhem uma série de coisas em comum. Não somos «mais diferentes» dos outros; não é uma questão de grau, é uma questão de sermos diferentes de outra maneira, mais nada. É um bocadinho como viver em Lisboa e explicar que não somos fãs nem do Sporting nem do Benfica, e quando as pessoas perguntam se por acaso somos do Belenenses, respondemos que não, não gostamos de futebol, mas somos fãs de rugby. Nisto as pessoas fazem «ah!» porque existe, realmente, aí uma diferença. Mas é uma «diferença diferente»: em vez de pertencermos a um clube de futebol obscuro, estamos é interessados num desporto completamente diferente. Mas não é «errado» ser-se fã de rugby. O facto de 99% dos portugueses do género masculino serem fãs de futebol, e termos sido condicionados para pensar que todos os portugueses masculinos gostem de futebol, não impede que possamos gostar de rugby. Rugby é um desporto tão válido como o futebol. Ninguém tem nada contra o rugby. Não se pode dizer que não seja um desporto masculino, cheio de vitalidade e força, a um nível que o futebol não consegue alcançar. E isto faz com que as pessoas compreendam a diferença e acabem por aceitá-la. Talvez, com esforço, até vejam um ou dois jogos de rugby na televisão «só para perceber» porque é que aquele amigo estranho e diferente gosta tanto disso.

É claro que a condição de se ser transgénero não é uma escolha; não é como escolher ser do Sporting ou do Benfica. Não é um hobby, não é uma forma engraçada e alternativa de passarmos o tempo. Não somos transgénero «porque está na moda» … e nem sequer porque achamos que, sendo transgénero, arranjamos parceiros sexuais mais interessantes e dispostos a experimentarem connosco coisas que as pessoas cisgénero nem sonham (ou que se envergonham de fazer!). Não tem absolutamente nada a ver com qualquer dessas coisas. Contudo, independentemente de sermos transgénero ou cisgénero, é um facto que temos de viver em sociedade, temos de desfrutar do melhor que a sociedade tem para nos oferecer, vivemos numa civilização complexa que tem as suas regras, mas, como não estamos a quebrar nenhuma dessas regras, temos o direito de viver precisamente da mesma forma que todas as outras pessoas.

Ora isto não se faz apenas com cartazes e marchas na rua ou em frente ao Parlamento. Eu acho que isto se faz… fazendo. Ou seja: não precisamos de dizer «seria bom se eu pudesse ir ao supermercado como toda a gente e ser tratada da mesma forma que todas as pessoas». Não: vamos ao supermercado e pronto. Talvez não sejamos tratados da mesma forma. No mínimo, vão olhar para nós. Vão rir-se de nós. Vão murmurar coisas nas nossas costas, pensando que não as ouvimos. E vão contar tudo aos amigos e rir-se ainda mais em privado.

E depois? O que conta é ir ao supermercado. É estar lá, e, através da nossa presença, mostrar que também temos que fazer compras. Se as pessoas se divertem muito com isto, óptimo, estamos a contribuir para a felicidade delas, e só por si isto também é bom. Mas a verdade, pura e simples, é que também temos de comer, de nos vestir, de ter um tecto por cima da cabeça, de ir ao médico quando estamos doentes. E, na minha opinião, é quando fazemos estas coisas todas, em público, sem nos preocuparmos com o que as pessoas pensam ou comentam ou como reagem, que estamos a avançar muito mais a causa transgénero em Portugal.

Pronto, eu sou suspeita ao dizer estas coisas, por várias razões, mas talvez a mais profunda tenha a ver com a minha filosofia de vida. Sou praticante budista do Grande Veículo, e todos os dias me recordo do voto que fiz: a de levar todos os seres à felicidade última (sim, todos, incluindo as pessoas que não gosto e que me tratam mal, assim como todos os animais: cães, gatos, osgas, aranhas, centopeias, lesmas…). Poder-se-á que tal voto é absurdo, porque é impossível fazer tal coisa! Embora se possa argumentar isso filosoficamente, os meus professores sempre foram muito mais pragmáticos. Posso não conseguir levar todos os seres à felicidade última, mas isso não quer dizer que não deva fazer um esforço para pelo menos levar alguns. Mesmo que seja só um. E mesmo que ninguém esteja lá muito interessado em felicidade (o que duvido, pois é algo que todos andamos à procura, mas não sabemos é muito bem como a encontrar…), também não faz mal, o importante é a motivação de querer mostrar a toda a gente como é que se atinge a felicidade última (é mais simples do que parece, mas leva muito mais tempo do que gostaríamos…), e a colocação dessa motivação em prática (a motivação, por si só, já não é mau — como diria o Miguel Guilherme! — mas colocá-la em prática é fundamental). Um dos meus professores diz sempre que já ficava contente se conseguisse encorajar cinco pessoas a encontrar o caminho para essa felicidade última. Um outro mestre budista de que gosto muito ainda é mais humilde: diz ele que nem sequer é preciso mais budistas neste mundo, o que importa é que tenhamos mais boas pessoas — isso é o que importa. Talvez tenham ouvido falar dele; é o Dalai Lama que diz estas coisas 🙂

O modo de vida budista é essencialmente pragmático — há muita filosofia, sim, mas de nada serve tanto conhecimento se não for para ser colocado em prática. Da minha perspectiva, a única coisa que vejo é que há realmente forma de tornar as pessoas transgénero mais felizes (sem, obviamente, tornar as pessoas cisgénero mais infelizes!). Para mim, a forma mais simples é encorajá-las a perderem o medo, mas, mais importante talvez do que isso, é deixarem de se preocupar tanto com o que as outras pessoas pensam delas. Das pessoas transgénero que conheço, vejo que é isso que lhes causa mais sofrimento: estão sempre a imaginar se são reconhecidas na rua como pessoas do género com que se identificam ou não, nunca estão satisfeitas com o seu aspecto, estão sempre a protestar pela transfobia que lhes impede de fazer X ou Y, etc. Nalguns casos, claro, terão razão. Mas em muitos casos é bem provável que isto não passe de auto-delusões que acabam por criar nas suas mentes, mas que, para estas pessoas, são bem reais — acreditam mesmo que as opiniões dos outros sobre elas são assim tão importantes.

Diz também um grande mestre budista que viveu há uns 1800 anos atrás: se andar pela rua descalço magoa os nossos pés, a solução não é pavimentar o planeta todo com cabedal para que os nossos pés andem sempre em cima de revestimentos fofinhos. Isso é impossível: não só não há cabedal suficiente em todo o mundo; como ninguém teria dinheiro para comprar todo esse cabedal, mesmo que houvesse; e mesmo que tivesse esse dinheiro, não há tempo para pavimentar o mundo todo. Em vez disso, é muito mais fácil enrolar uns pedacinhos de cabedal à volta dos pés, e pronto: assim podemos andar por todo o lado sem magoarmos os pés!

É evidente que a alusão deste mestre budista é à nossa mente: não é possível mudar a mentalidade, os vícios, os hábitos, os preconceitos, a discriminação, a maldade, etc. de todas as outras pessoas, por mais que tentemos: há demasiadas pessoas, é demasiado difícil mudar a mentalidade de uma só pessoa que seja, e mesmo que tentássemos, iríamos sempre encontrar pessoas cujas mentalidades não conseguiríamos mudar. Em vez de mudar toda a gente, pois, é muito mais fácil mudar-nos a nós. Se o nosso problema é sofrermos com as opiniões dos outros, em vez de andarmos demasiado preocupados a encontrar uma maneira de mudar essas opiniões, o que devemos fazer é alterar a nossa própria mentalidade para não nos incomodarmos com as opiniões dos outros.

Ninguém está a dizer que isto seja fácil! Porque não é! Mas é muito mais fácil mudar a nossa atitude — e, mais importante que isso, é possível — do que tentar mudar a atitude e as opiniões de toda a gente. Isto é filosofia budista colocada em prática 🙂 E tal como os meus professores, não tenho, de forma alguma, a ambição de mudar a atitude de muita gente (ou melhor, de as encorajar a mudarem as suas próprias atitudes). Fico satisfeita se alguém, ao ler estas linhas, se sinta motivado para pensar que se calhar, em vez de protestar por o mundo ser injusto e sofrer constantemente com as opiniões dos outros a seu respeito, talvez seja melhor começar a ignorar um bocadinho mais as opiniões desses tais outros (que nunca nos irão compreender verdadeiramente de qualquer das formas) e viver a nossa vida, fazendo tudo aquilo que queremos fazer, sem nos preocuparmos muito com a forma como os outros nos encaram.

E se se rirem muito de nós… ainda bem! Estamos a contribuir um bocadinho para a felicidade das pessoas. Assim até têm um pretexto para chegarem a casa e rirem-se com a família, em vez de andarem a beber uns copos para depois bater na mulher. Os portugueses não se riem o suficiente: levam-se demasiado a sério. Mas a atitude correcta passa por justamente questionarmo-nos porque é que nos levamos tanto a sério!

Em conclusão: pessoas transgénero deste mundo, abram a porta das vossas casas; larguem os vossos guetos; saiam das vossas zonas de conforto; façam aquilo que todas as pessoas fazem, sem pensarem mais nas opiniões que os «outros» têm sobre vocês. Assim, aos poucos, tornam-se visíveis — e não apenas meras cobaias de laboratório para os académicos que escrevem sobre nós ou elementos para peças na TV que apelam às emoções fortes. A visibilidade não tem a ver com isso. A visibilidade passa, isso sim, por mostrarmos às outras pessoas que somos tão normais como elas: que não há diferença, no fundo, naquilo que desejamos nas nossas vidas daquilo que elas desejam para as suas vidas. Mas para mostrar isso, não podemos ficar meramente pelas palavras, pelos desejos, pelos sonhos, pelas expectativas («um dia espero conseguir fazer a cirurgia/tomar as hormonas que me permitam fazer tudo aquilo que quero em público…»). Temos mesmo de saír em público e fazê-lo.

Nas estranhas e conturbadas regras que regulamentam as marcas registadas, existe uma cláusula interessante, em que se pressupõe que o dono de uma marca registada coloque pelo menos um processo contra outra entidade com o objectivo de defender a sua marca registada. Em certa medida, é através dessa «contestação jurídica» que uma pessoa adquire o direito a reclamar determinada marca registada como sua. Enquanto não houver nenhuma contestação… a propriedade dessa marca registada está numa espécie de limbo: se nunca foi contestada, como é que se sabe que pertence a alguém? O registo propriamente dito não serve de grande coisa — ou melhor, serve como prova documental num processo em tribunal. É o acto de processar terceiros por uso indevido de uma marca registada nossa que efectivamente determinamos de forma unívoca, sem dúvidas algumas, que a marca nos pertence.

No fundo, é o mesmo que se passa com a falta de visibilidade das pessoas transgénero. Não basta queixarmo-nos da sua invisibilidade — muitas vezes, oriunda das próprias pessoas transgénero, que querem passar completamente despercebidas (pelas mais diversas razões). Mas quanto mais despercebidas são, menos visíveis se tornam. É um paradoxo! A solução, pois, é não terem receio de serem mais visíveis, mas isso implica realmente sair para a rua e tomar uma atitude como se já fossem visíveis — ou seja, agirem em público como se não existisse transfobia nem discriminação, como se todas as pessoas tivessem uma excelente opinião sobre nós, como se todos nos louvassem pela nossa coragem e determinação. Mas isso é que é a essência da coragem: a determinação de tornar-nos visíveis não nos importando com as consequências.

É evidente que não posso dar este conselho a alguém que viva num estado islâmico — porque fazê-lo implica assinar a sua sentença de morte. Mas Portugal é um país laico, com uma legislação secular, em que os nossos direitos já nos são garantidos. Por exemplo, não precisamos de lutar pelo direito de nos vestirmos de acordo com o género com que nos identificamos: esse direito já nos é garantido desde que foi aprovada a Constituição de 1976. Precisamos é de exercê-lo. Se não o exercemos, como podemos reclamar um direito, do qual não fazemos uso? Tal como nas marcas registadas, é preciso exercer os nossos direitos (que já os temos) para que seja bem claro, para nós e para os outros, que já temos efectivamente esses direitos: senão, como poderão as outras pessoas saber que assim é?

Claro que há muitos direitos que precisamos ainda de reclamar — mas porque não usar já os direitos que temos? E, ao fazê-lo, estamos também automaticamente a dizer a toda a população: estamos aqui, estes são os nossos direitos, independentemente da vossa opinião sobre o assunto. Não nos podem tirar esses direitos, tal como também têm o direito a ter a vossa opinião.

Portanto, toca a saír desses armários! 🙂

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