Também precisamos de heróis (e heroínas)

Foto original de Nina Patricia. Montagem de Joana Adriana. Reproduzida com permissão de ambas.
Foto original de Nina Patricia. Montagem de Joana Adriana. Reproduzida com permissão de ambas.

O Brasil teve a Laerte, os Estados Unidos tiveram agora a Caitlyn Jenner. Em ambos os casos tratam-se de pessoas públicas, com longas carreiras profissionais de sucesso, conhecidas por um substancial número de fãs nos respectivos países, e, de certa forma, cada qual à sua maneira, foram modelos a seguir. Ambas, curiosamente, até têm praticamente a mesma idade — mais de sessenta anos — e transitaram muito tarde nas suas vidas para o género feminino. Ambas, com mais ou menos pompa e circunstância, revelaram ao mundo a sua condição transgénero. E ambas prometem colocar a sua imagem pública ao serviço da comunidade transgénero, para divulgar a nossa condição ao grande público, para ajudar a lutar contra a transfobia.

Haverão de certeza muito mais pessoas assim em todo o mundo! Não estou a querer minimizar as dezenas de milhares de activistas espalhados por todo o planeta, que se empenham, todos os dias, para que as pessoas transgénero vejam alguns dos seus direitos reconhecidos. E, evidentemente, não se trata de algo de «novo». Se não fossem os activistas e as organizações (sejam as especificamente para a comunidade transgénero, sejam as mais alargadas ao universo LGBT), ainda estaríamos a viver numa época em que as pessoas transgénero eram enviadas para manicómios e submetidas a terapias com electrochoques para serem «desensibilizadas». Temos a agradecer a incontáveis pessoas que, nas gerações passadas, deram literalmente as suas vidas para que hoje possamos ter alguns direitos reconhecidos. E este trabalho não terminou.

Mas há aqui um salto qualitativo. Vejamos: assim de repente, de quantas organizações LGBT no nosso país é que se lembram? Se não forem membros de nenhuma, é possível que pensem que em Portugal não exista, de facto, nenhuma! Mas isso não é verdade! Não só existem bastantes, e existem mesmo partidos políticos que têm grupos de trabalho permanentes para as questões LGBT. Como corro o risco de me esquecer de alguma, prefiro não as listar todas aqui. Sugiro que façam uma pesquisa no Google e que se admirem com o número de resultados que encontram (só a Wikipedia portuguesa lista oito, mas há bastantes mais).

O que acontece é que falta a estas organizações a capacidade de chegar ao grande público. Claro que se é morta uma pessoa LGBT, e o caso vai para os jornais, é normal que o jornalista vá pedir a opinião a uma das maiores organizações. E o caso é esquecido dias depois. Idem se for aprovada uma lei que conceda mais direitos ou garantias à comunidade LGBT: então vamos ver deputados a darem a cara pela lei (cujos nomes provavelmente desconhecíamos), lado a lado com membros das principais organizações LGBT. E depois esquecemo-nos de novo de que existem.

Também temos bloggers transgénero activistas, que escrevem online há uma década ou mais. Uma vez mais, vou abster-me de meter links para todos os que conheço. Não são poucos, mas também não são milhares. Têm em comum, todos eles, o facto de serem escritos por pessoas que sofreram atrozmente com a sua condição transgénero e que expôem publicamente a tortura e o sofrimento por que passaram (e que ainda passam). E também têm em comum o facto de serem pessoas completamente desconhecidas do grande público.

Não quer dizer que todas as pessoas transgénero portuguesas sejam profundamente desconhecidas. A Filipa Gonçalves, modelo e actriz portuguesa, filha do famoso jogador de futebol do Benfica Nené, é talvez a mais famosa transexual portuguesa. A fama de que goza é «emprestada» do pai, claro, mas participou em shows de televisão e escreveu um livro. Não é completamente desconhecida — se se perguntar na rua a uma pessoa qualquer se conhece alguma transexual portuguesa, é possível que digam «há aquela, a filha do Nené, não me lembro do nome, mas penso que seja modelo». E pouco mais saberão dizer dela, pois a Filipa não é (e penso que não queira ser) activista. Apenas pediu «emprestada» a fama do pai para se lançar na sua própria carreira profissional. E, como muitas transexuais (senão mesmo a esmagadora maioria!), o que quer é que a deixem em paz e que lhe permitam viver a sua vida descansada.

Ora não há absolutamente nada de mal nisto, como é evidente!

No entanto, é preciso entender a mentalidade do público em geral. Pessoas como Laerte ou Caitlyn Jenner não deixam a população indiferente: são figuras «demasiado» públicas. Foram heróis da sua geração nos respectivos países. E, ao contrário de muitos transexuais que transitam muito novas na sua vida, ambas transitaram depois dos sessenta anos, ambas tentaram desempenhar o papel clássico de homens — foram casadas, tiveram filhos — e ainda por cima, para confundir ainda mais a população, após a transição continuam a gostar de mulheres como parceiras sexuais (Laerte já afirmou ser bisexual mas actualmente tem uma namorada).

Ambas também afirmaram publicamente que se iam empenhar no activismo LGBT (Laerte começou mais cedo e já fundou uma organização própria, para além de participar em muitas outras; Caitlyn está a dar os seus primeiros passos, lançando um talk show para mostrar a vida horrível das pessoas transgénero). E aqui está fundamentalmente a diferença: tirando partido da sua posição como celebridades públicas, seguidas por fãs nos respectivos países, encaminham essa fama para o activismo transgénero — ao qual a comunicação social não consegue ficar indiferente, pois tratam-se de gigantes dos media (Caitlyn, no entanto, tem projecção mundial, devido à sua associação às Kardashians; Laerte apenas goza de popularidade nos países de expressão portuguesa, e, entre estes, muito mais no Brasil que em Portugal).

Ora isto eleva a fasquia do activismo para outro patamar.

Pode ser «injusto» de certa forma. Há activistas em todo o mundo que lutam há décadas pelos reconhecimento dos direitos LGBT, mas que, apesar desse esforço todo, não conseguem fazer com que a sua voz chegue muito longe. Pessoas como Caitlyn e Laerte pouco mais precisaram do que fazer uma ou duas entrevistas com revistas, jornais, e shows de TV de grande audiência para conseguirem o mesmo resultado. Mas do meu ponto de vista, as coisas não devem ser vistas dessa forma. Se não fossem as dezenas de milhares de activistas que conseguiram o reconhecimento desses direitos, Caitlyn e Laerte nunca teriam transitado. Provavelmente estariam neste momento ainda escondid@s no armário, ou a caminho de uma instituição psiquiátrica. Não podemos, pois, menosprezar o trabalho de tanta gente que sempre operou «na sombra». Em vez disso, o que devemos é regozijarmo-nos por haver agora finalmente algumas pessoas que podem «dar a cara» pelos movimentos de activistas LGBT e que têm a atenção da comunicação social — e do público em geral.

Precisamos também de gente assim em Portugal.

Não podemos «exigir» de pessoas como Filipa Gonçalves que abdiquem da sua vida pessoal e da sua carreira profissional para se empenharem na causa LGBT. As pessoas — e em especial as pessoas transgénero! — têm todo o direito, e mais algum, de finalmente terem um pouco de paz e sossego nas suas vidas, após transição, e de a gozarem plenamente como todas as outras pessoas. Mas também não é legítimo estar à espera que os actuais activistas dos movimentos LGBT portugueses sejam subitamente catapultados para a ribalta. Isso não vai acontecer.

A explicação não é muito óbvia, mas tem a ver com empatia. O que acontece é que as pessoas transgénero são «o outro», «o estranho» — aquelas que estão fora dos padrões da sociedade e que são por isso mesmo «evitadas» por esta. Não se consegue criar facilmente laços de empatia nessa situação. Não é impossível, claro, mas é extremamente difícil. A comunicação social sabe que não tem audiência para pessoas desconhecidas que não se encaixam nos padrões sociais normativos — a não ser que sejam apresentados como freaks (mas isso a nossa legislação também proibe!). Logo, se não há audiência, não se vende publicidade. E não são as organizações de apoio à comunidade LGBT que têm meios financeiros para se tornarem sponsors de um programa de TV como o que a Caitlyn Jenner vai fazer.

Curiosamente, até existe uma possibilidade de trazer a problemática transgénero ao grande público, e quem me deu a dica, sem o saber, foi a minha cunhada. Eu não tenho TV em casa desde 2000, e os meus amigos são todos pseudo-intelectuais — não vêem os mesmos programas que a esmagadora maioria da população. Por isso não faço a menor ideia de que programas de TV é que as pessoas gostam.

Mas a minha cunhada só vê telenovelas, como a maioria da população. E diz ela que foram as telenovelas o veículo de divulgação mais positivo da homosexualidade, mostrando-a tal como é, e explicando à população em geral que os homosexuais não são uns «bichos estranhos» mas pessoas perfeitamente normais como quaisquer outras, com os mesmos problemas, e as mesmas motivações. Gerou-se assim empatia com as personagens homosexuais. Foram muito bem apresentadas ao público português, e, com o tempo, passaram também a ser mais aceites. Talvez por isso — sugere a minha cunhada — os portugueses não sejam já assim tão homófobos como isso. Claro que não devemos ter ilusões. A homofobia continua a existir. Morrem homosexuais todos os anos, espancados até à morte. E mesmo que não hajam espancamentos, basta ir a um forum público que noticie alguma informação sobre homosexuais que vemos logo uma catrefada de gente a demonstrar a sua profunda homofobia e a não ter vergonha nenhuma de a afirmar em público.

Mas são muito menos do que deveriam ser. Uma grande parte da população portuguesa já não é homófoba. É quanto muito indiferente. É como o racismo: há imensos portugueses que são profundamente racistas e intolerantes, e são-no de forma violenta. Outros podem não ser violentos mas discriminam à mesma, no seu local de trabalho, nas filas de supermercado. E outros ainda até podem ser cuidadosos em público, mas, em privado, dizem o que pensam (é o caso do meu pai, por exemplo, que é profundamente racista, mas que não diz nada quando as empregadas do apoio domiciliário lhe estão a tratar da casa… pois a maioria delas é de origem africana). No entanto, não somos dos países mais racistas do mundo. Em vez disso, somos mais indiferentes do que racistas.

A indiferença não é necessariamente boa. A indiferença também mata: se uma pessoa de etnia cigana, chinesa, ou africana tiver sido atropelada na rua, é menos provável que se chame o INEM do que se essa pessoa for de etnia europeia. Não quer dizer que as pessoas desatem a rir-se às gargalhadas ou que digam «bem feita!». Já não somos racistas a esse nível. Mas ainda há muita indiferença. Se uma pessoa de etnia africana perder o emprego, encolhe-se os ombros e diz-se «azar, que volte para o seu país» (mesmo que pessoa em questão seja cidadã portuguesa há duas gerações). Se for uma pessoa de etnia europeia a perder o emprego, é uma catástrofe. Portanto, há ainda muito racismo encoberto desta forma, e isto obviamente que não se pode considerar «bom». Mas é bem melhor do que a alternativa — que é o racismo violento!

O mesmo se passa com a homofobia. Na maior parte dos casos, os portugueses não querem saber de nada dos homosexuais. Tentam ignorá-los. Sentem-se desconfortáveis com eles, mas também evitam ser desagradáveis em público. Obviamente que há excepções. E a maioria dos homosexuais portugueses também sabe isso mesmo, e vivem uma vida em stealth. Mesmo quando vão aos bares LGBT passam completamente despercebidos. Em Portugal, a estratégia que resulta melhor é passar despercebido e não levantar ondas.

Como disse, e volto a repetir, isto não é «bom». É apenas «melhor que a alternativa», que é a violência generalizada. E, segundo a minha cunhada — que obviamente não é nem socióloga, nem fez um estudo científico sobre o assunto — isto deve-se essencialmente às telenovelas portuguesas, que têm feito um esforço notável para apresentar a homosexualidade de uma forma diferente, quebrando com os mitos e preconceitos em torno desta.

A meu ver, pois — e assumindo que a minha cunhada tenha razão — o que faz agora falta é o mesmo para a transexualidade (e provavelmente também para todas as outras expressões do vasto universo LGBT, claro). Idealmente seria mesmo aparecer uma telenovela portuguesa que tivesse actores que fossem realmente transexuais, a desempenhar papéis perfeitamente normais. E que fossem os heróis ou heroínas das novelas. Os guionistas (e os actores) teriam de ter algum trabalho de preparação, mas a verdade é que muitos estão dispostos a isso mesmo. Em vez da abordagem pela negativa — como vai fazer a Caitlyn Jenner no seu talk show, mostrando os horrores das vidas das pessoas transgénero, e procurando assim obter alguma empatia do público — eu penso que, no caso português, era melhor uma abordagem pela positiva: mostrar personagens que, em determinada telenovela, se «revelam» como transexuais e que vivem depois uma vida «normal» (dentro do que é «normalidade» numa telenovela, claro está!) tal como as restantes personagens. E que expliquem bem o que sentem e pelo que passaram.

Mas para conseguir ainda mais impacto era mesmo necessário que fosse uma grande figura pública a revelar-se transexual, e que tivesse o seu show na televisão (ou pelo menos que fosse uma espécie de «convidado permanente»). Ocorreu-me que dois candidatos ideais seriam o Cristiano Ronaldo ou o Ricardo Araújo Pereira (embora, no caso deste último, ninguém o levasse a sério — ainda hoje há no Brasil quem pense que Laerte está a gozar com a população brasileira «fazendo-se passar por mulher por piada»). Obviamente que nenhum dos dois é transexual, mas penso que percebem o que estou a sugerir: precisamos de encontrar alguém que tenha realmente conquistado as almas dos portugueses, que se identifiquem fortemente com essas pessoas, que as considerem seus ídolos e modelos, e que tenham a coragem de se assumir publicamente e que tirem partido da sua fama e da sua legião de fãs para levar o debate das questões transgénero ao grande público.

Infelizmente não temos candidatos. Também não é para admirar: não há assim tantas pessoas transgénero como isso, e a esmagadora maioria não se assume publicamente por razões óbvias. É a pescadinha de rabo na boca: como há transfobia (mais ainda que homofobia…), não há motivação para as pessoas transgénero se assumirem. Mas como estas não se assumem, não se consegue combater a transfobia — para além da educação — de forma muito eficaz. Ou pelo menos não com a forma eficaz que seria possível de conseguir com o apoio de uma figura pública que fosse adorada pela população em geral.

Isto não quer dizer que se deva ficar de braços cruzados, lamentar a situação, mas não fazer nada.

Eu confesso que tenho um problema pessoal — e sei que o defeito é meu! — da forma como muito do activismo é feito com operações para chocar as pessoas e forçá-las a aceitar o que é para elas inaceitável. Isto infelizmente é uma estratégia comum a muitas formas de activismo. No entanto, na minha modesta opinião, as operações de choque geralmente geram rejeição, não empatia.

Acho que as melhores acções são as que são feitas de forma positiva, pois são essas que são geradoras de empatia. Há coisas simples que se podem fazer. A Rede Ex Aequo tem uma iniciativa engraçada para abraçar as pessoas no dia mundial contra a homofobia e a transfobia. O meu amigo Libertino contou-me que o Teatro Maria Matos, dentro do ciclo Gender Trouble, promoveu uma performance em que pessoas eram convidadas a dar um passeio de 30 minutos no bairro de Alvalade, em Lisboa, segurando a mão de um completo estranho, cuja identidade de género e orientação sexual podia ser qualquer uma. É uma forma de dar visibilidade, um pouco irreverente talvez, mas chama a atenção e não é muito negativa. Pode, no entanto, embaraçar os portugueses, que não gostam assim lá muito destas manifestações públicas.

A uma escala muito mais modesta, e com um impacto evidentemente menor, o nosso grupo de crossdressers está a tentar igualmente promover algumas simples actividades em que o público em geral possa contactar — nem que seja à distância — com algumas das pessoas do grupo. Para isso frequentam-se espaços mais ou menos públicos, em que existam outras pessoas que não sejam transgénero. Aqui o importante é mostrar que, apesar de sermos crossdressers, não estamos em público para chocar ninguém. Para sermos aceites publicamente, comportamo-nos como se espera que mulheres perfeitamente normais se comportem. Isto nem sempre é fácil de conseguir, claro, porque nem todas as crossdressers pensam da mesma forma (algumas querem provocar deliberadamente as pessoas!), e nem todas estão dispostas a isso, mas, regra geral, e de forma muito tímida, é isso que se procura fazer.

A outro nível, também ele tímido e modesto, procura-se fazer alguma sensibilização junto dos comerciantes, e aí, como tenho reportado frequentemente, a taxa de sucesso é muito elevada. São muito raros os comerciantes — seja de que tipo de bem ou serviço — que se incomodem, ou que se importem, com estas estranhas pessoas de sexo aparentemente masculino mas que estão interessadas em adquirir bens e serviços tipicamente femininos. A verdade é que, regra geral, somos bem atendidas. E despertamos curiosidade, mais cedo ou mais tarde. Tal como muitas outras amigas, quando estabeleço uma relação de confiança com alguma pessoa do comércio, ao fim de algum tempo (geralmente no meu caso é mais ou menos um ano, ou talvez dois…), também lhes mostro imagens minhas como Sandra, e ficam sempre fascinadas com a transformação. Mas o objectivo não é, de todo, andar a promover mais as minhas fotos 🙂 É, sim, numa relação estritamente comercial e profissional ao longo de muitos meses, dar a entender que eu sou uma pessoa perfeitamente vulgar, como qualquer outra pessoa. Em muitos dos casos, faço mesmo questão de apresentar a minha mulher, e de fazer saber que ela está a par de tudo o que eu faço. Somos o casal com o ar mais banal do mundo. E é claro que estranham a início, mas depois começam a perceber — pelo exemplo — que realmente o crossdressing não é uma anormalidade ou uma perversão sexual horrenda.

É evidente que o nosso modesto grupinho (que vai crescendo!) não tem capacidade para fazer uma «revolução social» — até porque somos incrivelmente discretas, e é difícil chegar a nós (deliberadamente para proteger a nossa privacidade e afastar as pessoas transfobas). Mas podemos, aos poucos, ir dando o exemplo, e espalhando um pouco mais a palavra. Dos comerciantes aos restaurantes, o que é importante é que, aos poucos, um bocadinho da sociedade portuguesa perceba que existem pessoas como nós, e que somos pessoas perfeitamente vulgares.

Assim, um dia que uma crossdresser recém-revelada, a tremer de medo, finalmente consiga ter coragem para entrar numa loja e apontar, hesitante, para uma saia ou um par de sandálias, talvez possa encontrar uma lojista que já tenha encontrado uma de nós e que saiba o que responder, sem ofender ninguém, e sabendo colocá-la à vontade. Eu sei que isto já acontece, pois recentemente, numa boutique, perguntei se podia ir ao provador experimentar uns vestidos e uns tops, e a lojista nem pestanejou. De certeza que já encontrou gente como eu. Poucas, claro, mas algumas. E, felizmente, ficou com boa impressão nossa. É isso que eu acho ser importante nesta fase: causar boa impressão. Causar impressões positivas. Transmitir uma imagem de banalidade e vulgaridade, com a qual as pessoas se possam identificar. Ultrapassar a barreira da rejeição, para, pelo menos nesta fase, atingir o patamar da indiferença. A indiferença também não é a solução, não é o objectivo principal, mas pode ser o primeiro passo, um passo muito importante.

O que desejo é um dia poder ir a uma esplanada com uma amiga — uma esplanada qualquer, num sítio normal, e não no bairro LGBT de Lisboa — e poder perguntar se se importam que tomemos qualquer coisa. Pode ser que nos «empurrem» para um canto, para «não incomodar os outros clientes». Mas o importante nesta fase é que não nos digam «não». O importante é que possamos justamente estar «no nosso cantinho», placidamente a gozar o nosso café ao sol, como qualquer outra pessoa. E que os restantes clientes nos sejam indiferentes. Talvez um ou outro seja curioso e que nos pergunte o que somos. Porventura um dia talvez nos apareça uma crossdresser tímida, em «modo masculino», que admita que sempre quis fazer o que estamos a fazer, mas que nunca teve coragem — mas que, vendo o nosso exemplo, possa sentir-se encorajada a fazer o mesmo.

E pode ser que justamente um dia alguma grande figura pública da nossa praça, ídolo das audiências e da comunicação social, também veja que chegou a altura de se «revelar», achando que a mentalidade da nossa sociedade está, aos poucos, a mudar. E a partir daí será tudo muito mais fácil.

Eu sou muito optimista quanto ao exemplo pela positiva. Não sou activista, nem tenciono sê-lo! Pois não gosto das estratégias de choque, de ruptura com a sociedade de forma radical, de forçar os outros a verem o que não querem ver. Não acho que seja a melhor forma de conquistar a sua empatia. Pelo contrário, eu pessoalmente estou convencida que é pelo exemplo positivo que se vai lá. Leva-se tempo, vai mais devagarinho, encontram-se muitos obstáculos… mas, aos poucos, lá se chega ao resultado final.

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