As dificuldades de manter uma comunidade activa

Há uns meses atrás, escrevi um artigo sobre as comunidades de crossdressers e pessoas transgénero e as suas armadilhas. Neste queria fazer uma pequena perspectiva histórica do panorama das comunidades online em Portugal e da razão pela qual são tão importantes: como se trata de algo que, na maior parte das pessoas, requer absoluto secretismo e muita discrição, assim como uma preservação do anonimato (na medida do possível), não há muitas formas de o fazer de forma segura, mas ao mesmo tempo também eficaz, em termos de apoio mútuo e convívio.

Em Portugal não há associações de crossdressers e pessoas transgénero com espaços próprios onde nós nos possamos deslocar, conversar um pouco, receber apoio, e assim por diante. Há, obviamente, bastantes grupos LGBT, que geralmente se focam mais no L e no G (e um pouco no B). O T, como digo sempre, está lá mais para efeitos decorativos do que para qualquer outra coisa. Instituições como a ILGA ou a Rede ExAequo, ou até as sedes de um certo partido político, são espaços onde a comunidade LGB se pode encontrar e organizar coisas em conjunto. São poucas, é certo, mas existem.

No caso das pessoas transgénero, ainda há algum apoio institucional a nível dos poucos hospitais que tratam do assunto, e profissionais de saúde que sabem lidar com a situação. Também são poucos, mas dada a revisão da lei, as coisas têm melhorado substancialmente. No entanto, não há — ainda — grupos de pessoas transgénero que possam dar apoio mútuo a quem esteja a passar pela transição, ou simplesmente com dificuldades em lidar com a sua situação, e que, para além do apoio clínico, gostariam de estar com outras pessoas que passaram pelo mesmo. Penso que a razão principal para isto não acontecer é o número de pessoas nestas condições ainda serem comparativamente poucas.

Mas nem todas as crossdressers querem ou precisam de apoio na transição; muitas, se não a esmagadora maioria (pelo menos pela definição!), aceitam a sua condição tal como é e não pretendem efectuar mudanças físicas. No entanto, querem desfrutar do prazer de adoptarem uma identidade do género oposto ao que nasceram, e exprimirem essa identidade da forma mais livre que lhes for permitido fazer.

Ora noutros países do mundo, em que o «fenómeno» é mais visível — não quero com isto dizer que hajam poucas crossdressers e pessoas transgénero em Portugal; quero dizer apenas que são muito mais «secretivas» — há vários sítios onde isso é possível. Em países como os Estados Unidos, Canadá, Austrália, ou mesmo em muitos países europeus, as principais cidades têm grupos de apoio, lojas especializadas, salões de beleza, e actividades quase constantes para as crossdressers interessadas. Nem é preciso ir muito longe: tudo isso e muito mais existe em Madrid, e nem é sequer um fenómeno novo.

Manter uma organização destas de pé é difícil. Requer tempo, capacidade de planeamento e organização, e algum custo financeiro. Também requer conforto na exposição pública: uma coisa é ser-se crossdresser «no armário», outra é ter uma loja que venda cabeleiras e corpetes com uma sala no interior onde as «meninas» se podem arranjar, encontrar, e conversar. Há quem o tenha feito: a Jó Bernardo foi um bom exemplo, e alegadamente há uma Escola para Crossdressers que também propõe um modelo semelhante. Mas é muito pouco e dificilmente acessível.

Por outro lado, há o comércio, estranhamente tolerante às necessidades das crossdressers. Bares e restaurantes gay-friendly normalmente toleram bem a presença de crossdressers. Há shows de transformismo em locais clássicos que existem há décadas. Há pessoas como a Gabriela Dee, a Daniela Sousa, a Susaninha, a Valéria Dark (entre outras!) que são incansáveis na sua busca por espaços públicos de lazer e restauração que não se incomodem com a presença de crossdressers. Há salões de estética, cabeleireiros e vendedores de cabeleiras, lojas de próteses mamárias, lojas de lingerie, etc. que são perfeitamente tolerantes para com um público muito «diferente» do usual (até a Seaside não tem problemas nenhuns com homens em busca de sapatos de senhora em números maiores que os habituais!). Portanto, embora talvez não existam «lojas para crossdressers» como é frequente noutras partes do mundo — até em Madrid! — há, aqui e ali, comerciantes portugueses que apenas vêem as crossdressers e pessoas transgénero como parte do seu mercado. Um mercado de nicho, talvez, mas geralmente leais para com quem os trata bem.

Mas falta alguma interligação mais formal, mais institucional, entre a comunidade em si (as pessoas que se vestem, por várias razões, do género oposto); as organizadoras de eventos; e o comércio em geral.

Em vez disso, temos algumas comunidades online, com mais ou menos sucesso.

Poder-se-ia argumentar que hoje em dia, em que até cães e gatos têm perfis no Facebook, as redes sociais seriam o espaço privilegiado para a comunicação com a comunidade. Mas isso não é verdade. As grandes redes sociais — Facebook, Google+ — são particularmente aversas ao secretismo e anonimato dos seus participantes. Uma simples denúncia, dizendo que a pessoa X está a assumir uma identidade falsa, é o suficiente para essas redes sociais imediatamente banirem a pessoa em questão. Por outro lado, há excesso de partilha nessas redes sociais: nunca se sabe quem é que vai pegar numa fotografia nossa e espalhar para meio mundo, especialmente aquela parte do mundo conservador e intolerante que não queremos mesmo que saibam que somos pessoas transgénero. Infelizmente, estas redes sociais foram especialmente desenhadas para que a informação seja partilhada fora do controle dos utilizadores. O resultado é que utilizá-las requer aceitar um elevado grau de risco, que é bem real.

Outros serviços semelhantes (como o Smutvibes, para mencionar o pior que conheço…) apenas servem o propósito de encontrar parceiros sexuais disponíveis. Não são espaços de apoio, confraternização, ou de calendarização de eventos.

Em compensação, há obviamente alternativas muito mais discretas, como o fórum Espartilho ou o Crossdressers em Portugal. Aqui, como já tive ocasião de explicar, a entrada não é livre. Há que provar uma certa boa intenção e motivação em participar. Não são espaços para voyeurs ou «caçadores». E obviamente que, dentro dos limites possíveis, são discretos e conservam o anonimato. Por outro lado, são difíceis de encontrar por potenciais crossdressers, e, como tal, têm um número de membros comparativamente reduzido, comparado com a totalidade das crossdressers e pessoas transgénero portuguesas. Têm igualmente pouco alcance: dado o seu «secretismo», tão necessário ao seu bom funcionamento, não é fácil «espalhar a palavra» a toda a comunidade. Para além disso tudo, como em todos os grupos online deste tipo — assunto muito bem estudado pela ciência! — a maioria dos seus membros é pouco participativa, o que quer essencialmente dizer que há muito mais leitores do que escritores, e, de entre os membros mais activos, são poucos os que estão disponíveis para muitas actividades com exposição em público. O espaço online transmite uma sensação de segurança; o «mundo real» nem por isso.

Uma caracterização da comunidade

Não basta o aspecto que temos...Ora é difícil caracterizar a comunidade como um todo, porque se compõe de muitos tipos diferentes de pessoas, com motivações completamente antagónicas, tudo isto misturado na mesma classificação, «transgénero». Não é fácil.

Por um lado, temos os artistas de espectáculo de transformismo. São um nicho muito pequeno, mas que é talvez o socialmente mais aceite (basta ver o sucesso do A Tua Cara Não me é Estranha). Mas neste círculo tudo o que é preciso é promover o artista. O público interessado sabe onde ir para assistir ao espectáculo. E as artistas do transformismo encaram o mesmo como uma profissão artística — com uma audiência reduzida, é certo, mas muito apreciadora do espectáculo. Normalmente não há necessidade de muito mais, excepto, claro está, quando a carreira chega ao fim (por questões de idade, saúde, etc.) e as artistas de transformismo têm de pensar no que farão a seguir. Aqui não há grande apoio institucional…

Por outro lado, temos um grupo considerável de activistas políticos. São normalmente transsexuais em transição ou com a transição terminada, que, tendo normalmente uma educação superior, e fortes convicções políticas, colocam o seu tempo, energia, e trabalho à disposição da comunidade. Gravitam em torno dos poucos partidos que defendem os direitos LGBT e promovem marchas, manifestações, protestos, mais ou menos formais, reclamando certos direitos juntos dos nossos governantes. É graças a este grupo que temos a legislação que temos. No entanto, à semelhança do que acontece noutros países, ser-se activista requer enorme exposição pública. A esmagadora maioria das transsexuais, por exemplo, quer que a sociedade se «esqueça» do género com que nasceram; querem ser aceites plenamente com o género com que se identificam. Tornar-se activista é revelar o passado que pretendem ocultar para sempre. De forma semelhante, há poucas activistas que sejam «meramente» crossdressers, porque a exposição pública significa que todo o mundo saiba o que são. No Brasil, o caso talvez mais famoso seja o do autor de cartoons Laerte, que não só se revelou como crossdresser, como empenhou a sua fama na defesa dos direitos das crossdressers, tal como outr@s antes del@ o tinham feito para as transsexuais (por exemplo, a Roberta Close).

Por cá não conheço nenhuma activista que seja «meramente» crossdresser.

Depois temos, infelizmente, um grande número de profissionais do sexo. Digo «infelizmente» porque na esmagadora maioria dos casos (hesito em dizer «todos») não se trata de uma opção, mas de uma necessidade — é a escolha entre morrer de fome e a prostituição. Não quero dizer que não hajam excepções, mas serão decerto poucas. Ora infelizmente também para a sociedade em geral, que já por si só discrimina as prostitutas heterossexuais, no caso das prostitutas transgénero (heterossexuais ou não), a discriminação ainda é maior. Daí a associação imediata de que quem se veste com roupa do género oposto só pensa em sexo.

É que depois o grupo seguinte realmente está nesta categoria: sexo, sexo, e mais sexo. Penso que no nosso caso ainda é mais visível, porque «herdámos» do Estado Novo um estranho conceito de que um homem não era «maricas» se tivesse sexo anal com outro homem — desde que fosse activo e não passivo. Não sei se isto é comum a outras sociedades, mas, na do nosso país, temos isto bem «gravado» na mente das pessoas. Assim, não acho de forma alguma estranho que, hoje em dia, essas pessoas todas associem o acto sexual à roupa feminina. Dentro do grupo que a seguir descreverei, há sempre a discussão de quem é «uma verdadeira crossdresser» (como se isso existisse!), e este grupo — que usa roupa feminina para justificar o acto sexual — geralmente é olhado com suspeição pelo quarto grupo. Ainda por cima, é altamente provável que este seja, de facto, o maior grupo deles todos.

É também o grupo com uma vida mais facilitada. Por muito que custe a aceitar, a verdade é que praticamente tudo na Internet serve para o engate — e quando o objectivo é apenas encontrar um parceiro sexual, é muito fácil de consegui-lo pela Internet, seja qual for o site ou rede social que se use. Quer isto dizer que sempre que se pesquisa alguma coisa sobre crossdressing, é altamente provável que se encontre alguém que gosta de se masturbar com outro homem envergando umas cuequinhas de renda, e pouco mais. Haverão excepções, claro, mas posso dizer que 9 em cada 10 homens que me contactam nos sites por onde ando querem apenas sexo comigo, e, sabendo que sou crossdresser, assumem imediatamente que estou disponível para lhes satisfazer a vontade de terem sexo com alguém que lá no fundo é do mesmo género mas que parece não ser… o que é, alegadamente, fortemente excitante.

Pode parecer que esteja a ser um pouco depreciativa em relação a este grupo, mas não sou. O que queria dizer é que, para este grupo, de longe o maior, não é necessário mais nada do que já existe hoje em dia: uma facilidade enorme de encontrar parceiros sexuais para certas formas de fetiche menos usuais (mas mesmo assim fáceis de encontrar).

O quarto grupo é, de longe, o mais «complicado». É aquele em que a crossdresser já assumiu perante si mesma — e eventualmente perante alguns familiares e amigos — que o é, mas não está preparada para fazer o anúncio público a «todo o mundo», e, enquanto isso não acontece (o que pode nunca acontecer; na verdade, a esmagadora maioria nunca o fará), gostaria de trocar experiências com outras crossdressers que estão na mesma situação, estabelecer relações de amizade, combinar coisas em conjunto — no fundo, fazer uma «vida social normal» para o género cuja identidade adoptaram, sem sofrer de discriminação, por estarem junto com outras crossdressers que pensam da mesma forma. Claro que podemos discutir o que é uma «vida social normal» — que será diferente para cada pessoa — mas, regra geral, talvez possamos dizer que tem a ver com o acesso às actividades de grupo geralmente reservadas aos membros do género oposto. Isto inclui saídas em grupo, idas a restaurantes, bares, fazer compras em conjunto, ir à praia, tirar férias… são coisas banais, mas que se tornam «especiais» por serem feitas com um grupo de amigas com uma mentalidade semelhante.

É para este grupo que é necessário mais apoio e mais organização.

Poder-se-ia acrescentar um quinto grupo, o das «crossdressers não assumidas» — que em tempos tinham a designação «autoginecofílicas»: pessoas que geram forte entusiasmo à sua própria imagem femininizada. Este grupo precisa essencialmente de informação. Estão numa fase muito inicial de um processo de auto-descoberta — do qual algumas nunca saiem — e, ainda mais do que o quarto grupo, exigem discrição e um secretismo absoluto. Felizmente, graças à Internet, podem perfeitamente aceder a imensa informação disponível livremente sem qualquer registo. É pouco frequente que haja contacto entre este grupo e qualquer um dos outros; ao fazê-lo, uma pessoa autoginecofílica está a assumir que «há algo mais», e passa automaticamente para o quarto grupo. O resultado disto é que o tamanho e composição deste grupo é totalmente desconhecido. Mesmo o quarto grupo já requer muita «coragem» para responder a inquéritos e dizer a um investigador científico, mesmo que seja no mais completo anonimato, «sim, sou crossdresser».

As necessidades da comunidade

Ora recapitulando um pouco as necessidades de cada grupo:

  1. Promoção da sua actividade enquanto artista; preocupação com a fase posterior da vida em que já não poderá subir aos palcos. É principalmente neste segundo aspecto que precisam de mais apoio.
  2. Todo o tipo de apoio social que lhes permita ter uma vida com dignidade saindo das ruas. Aqui o apoio tem de ser institucional, e, na ausência de instituições de caridade, terá de ser o Estado a suportar os custos e a organização para trazer a estas pessoas a dignidade que merecem.
  3. Provavelmente não precisam mais nada do que a Internet tal como ela é hoje: um mecanismo gratuito e fácil de utilizar que permita o encontro discreto com parceiros sexuais com fetiches semelhantes ou complementares.
  4. Precisam de uma organização que tenha vários objectivos:
  5. Precisam de muita informação que possa ser consultada de forma segura e anónima. Já há bastante mas é preciso mais. É bom também pensar em melhor formação de psicólogos que possam vir a encontrar casos destes entre os seus pacientes (nomeadamente, entre os que procuram um especialista para lidar com a depressão).

Evidentemente estes grupos não são «estanques», para além de ser possível haver indivíduos em mais do que uma categoria. Para pegar num exemplo, considero a Gabriela Dee como estando no grupo quatro, mas ela não tem qualquer problema em subir ao palco com a sua guitarra e dar um espectáculo: então talvez devesse estar, pelo menos, nos dois grupos. Há também muitos casos que estão nos dois primeiros grupos; e imensas meninas que estão no terceiro e quarto grupos. Como todas as tentativas de classificação, há muita fluidez. E a ordem na realidade não interessa muito. Apontei-a apenas por uma questão: a imagem que o público tem de nós.

Assim, no caso dos espectáculos transformistas, estes são apreciados e tolerados pela população em geral. Há imensos filmes onde surgem actores em drag. Embora a imagem no cinema seja normalmente pejorativa, o exemplo de A Tua Cara Não me é Estranha mostra como na televisão, em prime time, é perfeitamente possível colocar actores e cantores fazendo crossdressing que são universalmente aceites. Esta é actualmente a imagem principal do público: homens que se transvestem de mulheres são artistas de palco.

Em segunda linha existe a imagem da prostituição de rua (posso dizer que quando me comecei a vestir, ignorava por completo, na minha inocência, de que houvessem tantas!), que também chega aos media. Esta imagem é muito mais negativa, e também muito generalizada: homens que se vestem de mulheres servem só para sexo, seja a nível das ruas (grupo dois), seja a nível dos «encontros discretos» (grupo três). Aqui obviamente o público em geral faz uma enorme confusão entre fetichismo, orientação sexual, e transgenderismo.

E aqui termina, em geral, a ideia que as pessoas têm de nós. O grupo quatro só faz sentido ou a nível do Carnaval, ou a nível do sexo. A ideia de que um grupo de indivíduos que nasceram com o género masculino se vistam de mulheres e queiram ir tomar chá juntas e ficar à conversa (e mais nada do que conversa!) é totalmente alienígena para a esmagadora maioria da população; o público nem sequer tem conhecimento desta faceta da comunidade crossdresser. Mesmo «explicar» torna-se impossível: é demasiado «estranho». Mais depressa se entende o sado-masoquismo (uma forma muito mais hard de «desporto radical») ou outros comportamentos classificados infelizmente de «aberrantes» do que a actividade das crossdressers que se encontram para se divertir juntas como qualquer grupo de mulheres . E o grupo cinco, claro, desse nem se fala…

Ora olhando para este espectro, e conhecendo as limitações dos membros desta comunidade, há obviamente dificuldade em saber como agir. A aposta no activismo com grande exposição pública pessoal permite principalmente defender o direito à protecção e dignidade do grupo três, mas, claro, foi o que permitiu que a passagem do «mero» crossdressing à transição de género se tornasse legal e medicamente possível, de forma exemplar. No entanto requer justamente uma grande exposição pública sem recurso ao anonimato. Não é fácil. Entre as crossdressers, o normal é não quererem essa exposição pública; mas entre os indivíduos transgénero em transição, o que querem é viver a sua vida no género com o qual se identificam, e, quanto menos atrairem a atenção do público, melhor.

A promoção do transformismo enquanto forma de arte válida requer conhecimentos no meio — seja sendo-se dono de uma sala que permita este tipo de espectáculos, seja o conhecimento das agências de artistas, seja a direcção de programação de uma estação de televisão… ora parece-me que só o primeiro caso é que tem algumas possibilidades de funcionamento. No entanto hoje em dia há várias formas de promoção! Por exemplo, a Gabriela Dee (que me espero que perdoe por a estar sempre a referir como exemplo) podia perfeitamente ter um canal no YouTube e promover-se dessa forma, ou através de vídeos no Facebook, etc., e, se não tivesse capacidade técnica para o fazer, pedir ajuda dentro da comunidade. Isto acontece, em certa medida, lá fora. Digamos que é muito mais confortável a uma crossdresser pedir apoio, ou mesmo contratar serviços, a alguém que também seja crossdresser e que tenha os conhecimentos técnicos (ou outros) apropriados, do que expôr-se publicamente a terceiros para lhes contratar serviços.

Abrindo um parêntesis… a empresa Amoena, que fabrica há um quarto de século das melhores próteses mamárias externas, desenhadas para mulheres que foram sujeitas a cirurgia para remover os seios por causa de cancro na mama, tem também uma linha de próteses especificamente desenhadas para a comunidade transgénero. Quando esta linha foi lançada, a casa-mãe enviou delegados para todas as suas filiais nos vários países do mundo para explicar este produto e o mercado a que se destina. Talvez de forma um pouco surpreendente para o público em geral, quem fez esta apresentação foi justamente uma crossdresser; o pequeno workshop terminou com uma visita a um bar CD-friendly ou sala de espectáculos de transformismo, onde o vendedor da Amoena encarregue de explicar o produto se vestiu de mulher a rigor, para alguma surpresa e espanto dos restantes colaboradores. Mas claro que depois todos compreenderam muito bem que esta é a solução que faz mais sentido: é evidente que uma crossdresser que trabalhe para a Amoena conhece muito melhor as necessidades do mercado — outras pessoas transgénero — do que alguém que «meramente leu sobre o assunto». Também, como é evidente, ajudou a desmistificar a imagem do crossdressing na mente dos colaboradores da Amoena — mostrou-se como são pessoas perfeitamente normais, equilibradas, divertidas, bem-dispostas, que gostam de se divertir como as outras, e que têm obviamente interesse em adquirir este tipo de produtos.

Aqui o meu ponto de vista é apenas explicar que faz muito mais sentido haver crossdressers a prestarem serviços a outras crossdressers (sempre que existir essa necessidade de prestação de serviços, claro), porque há um entendimento profundo das necessidades, e uma natural discrição e respeito pelo anonimato envolvido nesse processo. Assim, se a Gabriela quisesse montar um site Web, estaria de certeza muito mais à vontade para lidar com outras crossdressers que lhe fizessem o trabalho todo, do que «arriscar» a contratar uma empresa que, por maldade, resolvesse «gozar» com a situação, mandando fotografias para as redes sociais, dizendo coisas parvas como «olhem o tipo de clientes que nos aparecem por aqui!» etc.

Isto embora possa conduzir a um certo exclusivismo dentro de um ghetto (há também muita investigação falando neste «perigo»: pessoas transgénero que passam pela transição dentro de um círculo muito restrito de outras pessoas transgénero, que apoiam e encorajam a transição; sentindo-se segura apenas dentro desse círculo, a pessoa em transição acaba por nunca lidar com o «mundo real», pois teme as consequências; ficando-se depois na dúvida se a transição foi apenas uma decisão tomada por pressão de grupo, ou realmente desejada — já que a pessoa nunca mais sai do grupo), penso que, no entanto, numa primeira fase tem o efeito desejável de alargar o círculo de segurança, de anonimato, de confiança, etc. para outras áreas. Por exemplo, sinto-me muito mais segura quando vou lavar ou cortar as cabeleiras na Casa Princesa porque sei que eles servem bem a comunidade e apostam na discrição; não vão andar por aí a divulgar o meu nome e fotografia publicamente dizendo «olhem lá o tipo de pessoas que vem cá!». Este nível de confiança permite alargar a minha zona de conforto. Deixei de ter problemas em dizer que sou crossdresser quando sei que esse «segredo» vai ser mantido. Quando mando arranjar alguns vestidos ou sapatos, por exemplo, tenho de ter mais cuidado; se conhecesse alguma crossdresser, ou pessoa próxima da comunidade, que fizesse arranjos na roupa e/ou nos sapatos, sentir-me-ia muito mais motivada em procurá-la, em vez de ir ao sapateiro da esquina ou à loja de arranjos do centro comercial mais próximo.

O terceiro grupo também obviamente que necessita de alguma discrição, mas a verdade é que, hoje em dia, pode fazê-lo sem problemas via Internet. Já não é preciso meter anúncios envergonhados em jornais, «Cavalheiro procura menina transgénero para uma primeira experiência. Garante-se discrição.» o que requer exposição pública (dar o nº de contribuinte para se poder publicar o anúncio!). Hoje em dia, via Internet, nada disso é necessário, e quem anda à procura de sexo sabe onde o encontrar — qualquer rede social, mesmo as não especializadas, serve para isso. Há, no entanto, alguma oportunidade na criação de espaços online mais seguros, mais anónimos, que permitam melhorar o contacto entre pessoas que o querem fazer com discrição. No entanto, a ideia geral é que já há espaços destes suficientes. E, evidentemente, também há locais físicos para o mesmo tipo de contactos. Ou seja, existem pelo menos duas hipóteses viáveis — os espaços físicos e os espaços online — e, em último recurso, a abordagem à prostituição de pessoas transgénero na rua, em espaços que são muito conhecidos e de fácil acesso (com discrição) a quem esteja interessado.

Ou seja, não digo que não se possa fazer melhor, mas a verdade é que mesmo o anúncio do lançamento de um «site de contactos para sexo de âmbito nacional» pode até ser negativo. É legítimo perguntar, «Mas quem está por trás desse site? Quem são os seus promotores? Como sei que não vão divulgar os meus dados a pessoas que conheço, ou, pior, aos media nacionais?» Em compensação, a utilização de ferramentas internacionais alojadas «algures por aí» — seja o SmutVibes, seja o próprio Facebook… — dada a quantidade incrível de pessoas que os usam, garante ainda mais o anonimato. A probabilidade de um funcionário do Facebook estar a olhar para um anúncio de oferta de disponibilidade para encontros sexuais e/ou um chat erótico com vista a levar uma pessoa transgénero para a cama é francamente baixa, e torna-se nula se se imaginar que esse funcionário, na maior das probabilidades, não nos vai conhecer nem conhecerá os nossos amigos/familiares/colegas de emprego. O mero facto destes sites sociais serem gigantescos garante um certo grau de privacidade. Um site novo, criado em Portugal para portugueses, terá uma enorme desvantagem se quiser garantir o mesmo grau de privacidade, simplesmente porque as pessoas que se registam num site destes não saberá se os seus organizadores, numa fase inicial, não tenham interesses maliciosos a rever tudo o que se passa dentro dos seus sites… coisa que é possível de fazer facilmente (por mentes perversas…) que não tenha mais nada que fazer, enquanto o número de pessoas registadas for muito reduzido.

Organização de actividades online e disponibilização de informação

Chegamos então ao quarto (e quinto) grupo. Aqui as coisas complicam-se porque o «óptimo é inimigo do bom». Óptimo seria, claro está, uma Associação de Crossdressers, organização sem fins lucrativos, apartidária e independente, com financiamento próprio, e umas instalações num local discreto mas com acesso facilitado. Essa organização «ideal» teria espaços de lazer — como as antigas Sociedades Recreativas, espalhadas por todo o país! — com café/bar e área suficiente para um salão de festa, para os eventos especiais. Teria também pequenas lojas (ou pelo menos uma loja com vários fornecedores) com artigos especializados para o crossdressing e um pequeno gabinete de estética que no entanto também servisse para workshops. Teria gabinetes individuais para os membros se poderem arranjar em paz e sossego, com cacifos. Teria obviamente uma sala para serviços administrativos onde se fariam também algumas edições — talvez primeiro uma newsletter, depois mais tarde alguns livros de dicas e truques, e um catálogo de empresas CD-friendly e serviços de restauração que tolerassem bem a comunidade — e onde também podiam ser efectuadas reuniões com outras organizações semelhantes, com fornecedores, com donos de bares e restaurantes CD-friendly. Aqui e ali haveriam «recantos» para os membros poderem conversar em sossego e/ou terem acesso gratuito à Internet, nomeadamente a um Portal Transgénero ou Loja do Crossdresser, com informação institucional e centralizada, actualizado por um grupo de voluntárias.

Ter-se-ia não só um horário de actividades regulares, mas mais do que isso: um dos gabinetes seria regularmente visitado por um psicólogo da área, para fazer acompanhamento de eventuais membros em transição ou aconselhamento geral. Regularmente também seria colocado o espaço à disposição de sociólogos, antropólogos, e especialistas clínicos que quisessem fazer aqui os seus estudos, existindo também uma pequena biblioteca com subscrição de revistas da especialidade de outros países, sejam estas para a comunidade em si, sejam revistas científicas. Estariam disponíveis brochuras e pequenos livrinhos com temas como «Sou crossdresser, o que devo contar à minha mulher?» ou «Guia de transição». Mas também na área do lazer haveriam os tais workshops de estética, fomentados por empresas associadas, que trariam especialistas em maquilhagem, estética, cabeleireiro, moda, etc., colocando assim o seu conhecimento à disposição dos seus membros.

No espaço — e divulgado também através de newsletters e da Internet — seria divulgada informação sobre as empresas parceiras da Associação: actividades, descontos para os membros, ou mesmo uma bolsa de emprego: alguns bares e restaurantes associados, já habituados à comunidade, poderiam eventualmente fornecer estágios e postos de trabalho, temporários ou definitivos, a membros da comunidade. Seriam efectuados protocolos com entidades congéneres noutros países, agindo a Associação também como «agência de viagem» para pessoas transgénero que quisessem visitar outros países, ou, inversamente, estabelecendo contactos com hotéis e locais de lazer CD-friendly para turistas transgénero de visita ao nosso país.

E finalmente, com o tempo, haveria acção social: um local de apoio às mais carenciadas; uma distribuição de comida, medicamentos, preservativos etc. para aquelas que infelizmente não têm outro remédio senão manter-se na rua.

Dir-me-ão que tal ideia é completamente absurda e utópica, para além de custar um dinheirão! Bom, sim e não. Na realidade, conheço algumas sociedades recreativas que não são mais do que isto — obtiveram o espaço gratuitamente da câmara municipal onde estão sediadas, e realmente têm este tipo de coisas, apesar de terem um âmbito muito restrito de actuação. Só para dar três exemplos em Lisboa: os Alunos de Apolo (danças de salão), o Ateneu Comercial de Lisboa (desporto), a JF Marvila (servindo apenas a comunidade local), a antiga Sociedade Musical União Paredense (música filarmónica, danças e festas). Mas há muitas mais; serão milhares no país todo.

Geralmente funcionam com pouco mais de uma dúzia de pessoas, mas por vezes nem isso. E servem entre uma centena a poucas centenas de associados, geralmente com interesses muito restritos. Ou seja: não estamos a falar de mega-organizações para dezenas ou centenas de milhares de associados (tipo Automóvel Clube de Portugal!), mas sim entidades pequenas, servindo comunidades muito mais pequenas e de âmbito ainda mais restrito que o nosso.

E este tipo de coisas existe em todo o mundo, com mais ou menos organização ou dimensão.

Só cá é que não, o que é ainda por cima curioso, porque temos uma fortíssima tradição associativa!

Bom! Mas claro que tenho consciência de que isto não «constrói» do dia para a noite. Além disso, uma coisa é uma pessoa dizer que gosta de danças de salão e não se importar de dizer aos amigos e familiares que trabalha (nem que seja como voluntária) nos Alunos de Apolo, mesmo que seja gozada. Outra coisa é estar disposta a dar o seu tempo a uma Associação de Crossdressers, o que implica um muito maior conforto com a sua situação e muito mais coragem para aceitar a exposição pública. E com um risco acrescido: uma sociedade recreativa ou desportiva provavelmente não está sujeita a uma invasão de skinheads ou de fundamentalistas religiosos dispostos a agressão violenta e destruição do espaço e seu conteúdo. Uma Associação de Crossdressers, mesmo que discreta, será um alvo destes grupos — logo, também seria preciso salvaguardar a integridade física dos membros e visitantes através de seguranças contratados…

Por outras palavras: uma coisa destas é obviamente possível — prova disso é que existem por todo o mundo fora — mas será pouco provável que aconteça nos nossos tempos de vida.

Em compensação, temos a possibilidade, ainda que incipiente de momento, de fazer algo de parecido, mas muito mais seguro: mover a associação para o espaço virtual.

Ora é certo que se «perde» uma capacidade fundamental: o convívio num espaço seguro e discreto. Mas pode-se fazer tudo o resto, inclusive o estabelecimento de acordos com outras entidades que disponibilizem o seu espaço para o convívio. Por outras palavras: claro que seria muito melhor ter um salão de festas próprio, mas não é mau ter-se um acordo com um bar, restaurante, discoteca ou mesmo hotel (há muitos hotéis gay-friendly em Portugal) que disponibilize regularmente o seu espaço para a comunidade se juntar.

Aliás, é precisamente isso que já fazem muitas crossdressers portuguesas, com um sucesso que só posso classificar de crescente: por muito que se lamentem, a verdade é que cada vez há mais gente a organizar coisas, cada vez há mais espaços disponíveis, e cada vez há mais eventos, jantares e saídas. Pelo menos comparado com o pouco que se fazia há 15 anos atrás!

O problema talvez é que algumas destas organizadoras desanimam-se ao fim de algum tempo. «Puxar a carroça» sozinha é difícil, e gera-se uma certa expectativa: quem já disponibilizou o seu tempo e sacrificou o seu anonimato, saindo da zona de conforto para organizar coisas e as anunciar pelos forums de crossdressers na Internet, está depois naturalmente à espera de que «as coisas aconteçam», ou seja, que haja muita participação regular. Isso, infelizmente, não acontece (pelas razões que já referi). E isso significa que estas organizadoras natas se questionam se valeu a pena o esforço. Normalmente ao fim de algum tempo constatam que não, porque, por mais actividades que se anunciem, o número de participantes é sempre baixo.

É evidente que não faço a menor ideia da experiência que estas pessoas têm de participação voluntária em regime de associativismo. Tudo o que posso contribuir nesta fase é dar a minha própria experiência. Ao longo das últimas décadas, participei nos mais diversos tipos de organizações deste tipo — desde o desporto, à dança de salão, às artes marciais portuguesas, passando pela literatura (mais ou menos «séria»), pela música (grupos corais), pelos jogos de tabuleiro, e até pela religião… nalguns casos fui meramente «utente», noutros casos membra da direcção ou mesmo presidente, noutros ainda simplesmente uma voluntária, contribuindo com o meu tempo e/ou os meus conhecimentos para o bem da comunidade servida pela associação.

E posso dizer que, por mais diversas que sejam as actividades e o âmbito destas organizações, no fundo não são muito diferentes umas das outras. Há realmente uma noção de «massa crítica», mas antes desta ser atingida, é preciso muito esforço para se «puxar a carroça» sozinha. Numa das associações em que participei, por exemplo, e que tinha também cerca de uma centena de associados, dos quais apenas uma dúzia era regular, a direcção nunca durava mais de 1-2 anos. Sabia-se antecipadamente que se ia «queimar» com o esforço monumental de «carregar a associação às costas» durante este período. E qual era o resultado? Lembro-me que haviam umas sessões de visionamento de filmes com debates, amplamente anunciadas e divulgadas, e foi raro ter mais do que nove ou dez pessoas na sala — o normal eram ser apenas 4 ou 5. Isso não impediu que se continuasse a insistir, semana após semana, a anunciar o programa, a fazer divulgação nos jornais da região, e coisas assim. Mas o número de pessoas que vinham às actividades era sempre mais ou menos o mesmo. Noutra associação, com cerca de duzentas pessoas, num apartamento no Saldanha com nove (!) salas, foram muito raros os dias em que visse vinte pessoas ao mesmo tempo no espaço. Por vezes acontecia, mas era raro. Dia após dia estavam «sempre os mesmos» — três, quatro, cinco pessoas — que pertenciam essencialmente à direcção (a associação funcionava em horário laboral e pós-laboral, sete dias por semana, aberta vinte horas por dia aos fins de semana). É certo que nos fins de semana aparecia mais gente para as actividades; e durante as férias ainda mais. Mas isso não impedia que houvesse uma estrutura e um conjunto de «monitores» para as actividades que tomavam o compromisso, em certos dias e a certas horas, de abrir as portas e organizar as actividades anunciadas, quer houvesse gente, quer não — passei lá muitas e muitas horas sozinha, à espera que aparecesse alguém para além de mim. Mas também houve muitos e muitos dias com a «casa cheia» com 30 ou 40 pessoas (seria impossível albergar todos os associados em simultâneo!), em funcionamento praticamente non-stop desde o final da tarde de 6ª feira até ao domingo à noite; o comércio local (cafés e tascas) adorava-nos porque garantíamos sempre algumas pessoas a consumir comida e bebida às horas mais impróprias (mas que lhes compensava manter as portas abertas), mesmo depois de se ter aberto um mini-bar na associação.

Noutra das associações havia imensas parcerias durante eventos especiais: haviam senhas para os sócios poderem comer nos restaurantes da zona a preços mais simpáticos; haviam descontos em certas lojas; haviam feiras de trocas de artigos em segunda mão; e nestas alturas de maior actividade apareciam muito mais pessoas. Talvez cinquenta ou sessenta, muitos dos quais nem sequer eram membros (e nem todos se tornavam depois membros). Mas depois durante o resto do ano, embora houvessem actividades semanais, estas tinham pouca frequência. O importante era não desistir e não desencorajar!

Nestas associações todas por que passei, todas elas «existiram» durante vários anos seguidos, com mais ou menos participação, com períodos mais difíceis (em que só se pensava era desistir e fechar as portas), com mais dificuldades financeiras, e assim por diante. Isto foi na fase em que a Internet ainda não tinha muito peso — portanto, já lá vão uns aninhos! — e acabaram quando, por uma razão ou outra, se ficou sem as instalações originais. O espaço, nessa altura, era tudo o que contava. Mas depois disso também participei em organizações deste tipo com forte presença na ‘net para complementar o espaço físico, e não são muito diferentes.

A última em que estou actualmente a participar tem cerca de seis anos no local onde está de momento, um pacato bairro na periferia de Lisboa. Fui lá parar mais ou menos por acaso há uns cinco anos. Para além das mais variadas actividades regulares ao longo da semana, também tem seminários e workshops ocasionais — há anos em que há 1 ou 2 por mês, outros anos em que só há uns 3 ou 4 por ano. Tem duas salas modestas. Embora estejam contabilizadas cerca de uma centena de «amigos da associação» (pessoas que, a dada altura, fizeram uma pequena contribuição financeira para ajudar a associação, sem no entanto serem sócios), são raras as actividades em que apareçam mais de 5 ou 6 pessoas. Aos fins de semana, talvez apareçam uma dúzia. Uma actividade quinzenal já chegou a ter, uma vez, 19 pessoas. Os workhops podem ter mais pessoas; um deles, gratuito, chegou a ter quase 50 pessoas, e contaram-me que, antes dos meus tempos, fez-se uma vez uma palestra num restaurante grande que aparentemente teve cerca de duas centenas de participantes (como em tudo neste país, o que mete comida ao barulho atrai mais gente). As Festas de Natal geralmente têm duas dúzias de pessoas. Mas ironicamente, há uns 4 anos atrás, houve um dos oradores (estrangeiro) que, ao ver a audiência numa das salas, «profetizou» que ao fim de uns anos aquele espaço iria ser pequeno demais. Como nos rimos na altura! É que nesses tempos, as actividades nunca tinham mais de meia dúzia de pessoas. A verdade é que ao final de uns 3 anos passaram a ter uma média de uma dúzia de pessoas, e agora interrogamo-nos se realmente o «profeta» não tinha razão. Talvez daqui por mais 5 ou 10 anos passem a aparecer, em média, duas dúzias de pessoas. Ou, pelo contrário, pode voltar só a aparecer meia dúzia…

Lembro-me perfeitamente, há dois anos atrás, no início do Outono, estar atrasada para uma das actividades a meio da semana, que raramente contava com mais de 3 ou 4 pessoas. Eis que, da rua, olhando pela janela, vejo a sala completamente cheia! Estavam talvez umas 18 pessoas no total, e nem havia lugar para sentar para todos! Perguntei-me a mim mesma o que raio se teria passado — teria saído uma notícia no jornal ou coisa parecida? Já estava com vergonha de ter chegado atrasada… e muito contente por ver tanta gente. «Agora sim, isto vai começar a andar a sério!» pensei para com os meus botões.

Mas na sessão seguinte só apareceram uma dúzia de pessoas. Assim se manteve (não sempre as mesmas) durante umas semanas; depois voltou-se à meia dúzia «do costume». E assim tem sido até hoje: vão sempre aparecendo pessoas novas, mas, com o tempo, são poucas as que se tornam participantes «regulares». Mas  algumas ficam. O número, em média, vai aumentando: mas muito, muito, muito devagarinho…

Ora tudo isto para explicar que, do meu ponto de vista, não vejo nenhuma razão «mágica» para que nas actividades para crossdressers as coisas não sejam idênticas. É possível que hajam «eventos especiais« que atraiam, inesperadamente, algumas dúzias de participantes — um Carnaval, um Dia da Crossdresser ou coisa parecida, um Primeiro Encontro das Crossdressers Portuguesas. De repente parece que «isto agora é que vai arrancar a sério!» e surgem, de facto, muitas participantes. Mas depois volta-se à mesma rotina, sempre aos mesmos rostos, sempre ao mesmo número reduzido de pessoas.

Isso é normal, para o número de crossdressers que conseguimos atingir com a nossa divulgação via ‘net.

Qualquer pessoa que tenha um pouco de experiência com associativismo a esta escala sabe que assim é. Volta e meia, irão aparecer pessoas novas. Algumas até aparecerão mais do que uma vez. Outras aparecerão ocasionalmente, só em ocasiões muito especiais. Mas aquelas que «puxam pela carroça» são as que aparecem sempre, com ou sem dificuldades.

O problema, claro está, é quando se «fartam» de estarem sempre a puxar a carroça. Têm a expectativa — razoável de compreender! — que o seu esforço em prol de toda a comunidade seja reconhecido, nem que seja meramente por aparecerem às actividades. Mas se ninguém aparecer, assumem que é por falta de respeito para com quem teve tanto trabalho com a organização, e, sendo assim, desistem.

Ora isto é bastante triste e desanimador, porque na realidade as coisas são um pouco mais complexas do que isso. Nem sempre é por desrespeito ou desinteresse que as pessoas não aparecem às actividades; aliás, na minha experiência, essas duas razões estão no fundo da escala.

A razão principal é uma de prioridade: dado que o nosso tempo é limitado, e condicionado por muitas pessoas e muitas coisas (ou pelo menos assim o pensamos), o que é mais importante para nós?

Crossdressing é uma actividade que é, essencialmente, individual, mas tem também uma componente social. Não é bem como jogar ténis, que não se pode fazer sozinho — é preciso um parceiro para o ténis. Por outro lado, a vertente social do crossdressing não é tolerada publicamente: significa isto que, para a maioria das crossdressers, especialmente as que não querem, não podem, ou nem sequer consideram a transição, a vertente social do crossdressing (quando não a individual!) tem de ser feita no maior dos secretismos, juntando-se a outras pessoas, também elas rodeadas do mesmo secretismo. A actividade social decorre em espaços reservados, discretos, e onde a maioria espera não ser reconhecida por ninguém. Tudo isto complica desnecessariamente as coisas!

Se acho piada a canto litúrgico, posso juntar-me a um coro de igreja, mas também posso cantar em casa. Mesmo que todos os meus amigos gozem comigo por cantar num coro (já houve tempos em que passei por isso!), a verdade é que cantar num coro é uma actividade tolerada socialmente. Não é tão «tolerada» como assistir a um jogo do Benfica, mas, para além do gozo, não há verdadeiramente nada mais a opôr a quem goste, de facto, de cantar em grupo. Não é preciso «secretismo» para se inscrever num coro amador. Agora a participação regular nesta actividade depende imenso da motivação e da prioridade que se lhe dá. Quão importante é para a minha vida ir todas as semanas cantar nos ensaios, mesmo quando esteja frio, quando esteja doente, quando haja um jogo do Benfica na TV ou outra forma de distracção mais apelativa? Quando mudar de emprego, e o novo emprego conflituar, em termos de horários, com os ensaios, que vou fazer? O que é mais importante — o emprego, a família, os amigos, as outras formas de distracção; ou cantar no coro?

Para quem nada seja mais importante do que cantar no coro — se estiver, pois, no topo das prioridades! — a resposta é óbvia: organizamos toda a nossa vida para estarmos sempre presentes nos ensaios, e tomamos o compromisso pessoal, sem ninguém nos obrigar a isso, de nunca faltar, mesmo que nos custe muito. Fazemos isso para todas as coisas que consideramos verdadeiramente importantes na nossa vida.

Mas por vezes isso não chega. Por vezes a nossa vida está de tal forma condicionada que não conseguimos, mesmo que queiramos, assistir a um ensaio. Se nessa situação a organização — o maestro, por exemplo — achar que não vale a pena o esforço de marcar os ensaios se depois as pessoas que se dizem «interessadas» não aparecem, então para quê continuar?

Ora as organizações que têm actividades regulares têm organizadores que não pensam assim. Por exemplo, no caso do coro, o maestro poderá considerar que não há nada de mais importante na sua vida, pelo menos a nível de lazer, do que cantar. Então marca os ensaios, quer apareça alguém, quer não. Se não aparecer ninguém — porque está frio e dá um jogo na TV — não faz mal: ensaia sozinho ao piano. E volta a marcar para a semana seguinte. Se realmente há muitos conflitos de horários, marca várias sessões semanais — porque para ele, maestro, nada há de mais importante do que cantar, e nada lhe dá mais prazer do que isso. Ter o «pretexto» de reservar uma hora para um ensaio é um prazer: significa que, no pior dos casos, poderá ficar a cantar nesse espaço, mesmo que seja sozinho, sem ninguém o incomodar. E talvez ao flexibilizar o horário apareçam mais uma ou duas pessoas que pensem como ele. Forma-se um «núcleo duro» do coro, que está sempre presente, quer apareça mais ninguém, quer não. Isto é a base; é com esta base com que se trabalha; é com esta base que se conta. Se aparecer mais gente, melhor. Se essas pessoas que aparecerem forem mais ou menos regulares, é excelente — um coro maior pode cantar peças diferentes e progressivamente mais complicadas. Mas se forem só dois ou três, não faz mal — há também sempre forma de aproveitar o tempo com peças adequadas a um grupo mais reduzido! Que se irão divertir imensamente, só porque partilham o prazer de cantar em conjunto.

Ora é isso que, nesta fase, a comunidade portuguesa de crossdressers precisa: de pessoas com forte auto-confiança, para as quais a actividade de crossdressing social seja mais importante do que qualquer outro «condicionamento» de tempo, seja qual for, e que, meramente pelo prazer de organizar actividades, não desistam facilmente de as fazer. Com a regularidade das actividades, e o reconhecimento de que «há sempre algumas pessoas com quem contar», forma-se um «núcleo duro» que aparece sempre às actividades, aconteça o que acontecer — nem mesmo o encerramento de um espaço as irá demover de continuar a encontrar soluções para que se possam reunir um grupo de amigas apenas com o pretexto de se divertirem juntas en femme.

Este «núcleo duro» é o pilar da comunidade, os alicerces sobre os quais, no futuro, se poderá construir algo mais. No entanto, é muito mais difícil «montar» esta estrutura para uma actividade socialmente não tolerável como é o crossdressing do que criar um grupo coral ou uma banda filarmónica ou um grupo de estudo de poesia do século XVIII. Requer, pois, pessoas com um nível de persistência, de paciência, de auto-confiança, de diligência, e de uma «teimosia positiva» — a capacidade de não desistir perante as adversidades — que mantenha um conjunto de actividades regulares. Se estas forem continuamente anunciadas, mesmo que sejam a um grupo restrito de pessoas, isto já mostra que «algo está a mexer».

Hoje em dia é raro aparecer-me pela frente uma «nova» crossdresser portuguesa; dantes, como haviam poucas que estavam em perfis públicos, isso acontecia com mais frequência. Muitas vezes perguntam-me onde há mais informação em português — antes de haver o Espartilho e o CEP, e depois do CCP fechar, não havia nada. E depois, claro, perguntam: «Há algum espaço onde possamos encontrar meninas como nós?»

Há uns anos atrás, tinha de lamentar imenso e dizer que não havia nada. Que sabia que existiam alguns shows de transformismo onde apareciam algumas crossdressers, e que provavelmente se poderia ir a um bar gay (mas também não sei qual!) para encontrar lá alguém da comunidade. Mas, na verdade, não lhe sabia responder — ignorava onde e quando se encontravam as pessoas da comunidade, e o melhor que podia oferecer era «manter o contacto».

Hoje em dia, claro, é tudo muito mais fácil. Claro que não existe ainda uma Associação de Crossdressers, mas existem grupos de crossdressers que organizam actividades, mais ou menos regulares, e que as anunciam publicamente. Há os dois foruns onde se podem inscrever, e pelo menos estarem em contacto com outras crossdressers e pessoas transgénero, e ficarem informadas das actividades. Por muito pouco que possa parecer, é uma diferença do dia para a noite! Houve mesmo recentemente no Espartilho um pequeno «conflito de datas», facilmente resolvido, quando duas pessoas resolveram organizar mais ou menos a mesma actividade — um jantar seguido de visita a um estabelecimento nocturno gay-friendly com um intervalo de poucos dias. Quando isto acontece é bom sinal: quer dizer que já há tanta gente a organizar actividades que, por vezes, as datas sobrepõem-se! Isto também faz com que os anúncios sejam feitos atempadamente; e, com tempo, quem está inscrito nos forums pode fazer chegar a informação a outras pessoas que não está nos forums, combinar a ida em conjunto com outras crossdressers que morem próximo (evitando ir em tantos carros e beneficiando do conforto, apoio, e segurança adicional de ir com outra pessoa), etc. Este tipo de coisas já acontece, e se não é todas as semanas, é quase!

Mas para continuar a acontecer é preciso que ocorram duas coisas.

Uma, mais difícil, é que «apareça mais gente». Como infelizmente o principal critério do sucesso destas actividades é o número de participantes, quanto menos gente aparecer, maior será o despontamento, o que fará com que algumas desistam de aparecer na actividade seguinte («para tão pouca gente não vale a pena sair de casa…»). Ora não se pode «obrigar» a que apareçam mais pessoas. Elas aparecerão naturalmente, quando as condições e circunstâncias forem as correctas, e, na maior parte dos casos, não temos a capacidade de controlar estas condições e circunstâncias.

A outra também é difícil mas não tanto. Como disse, uma das capacidades fundamentais das organizadoras deste tipo de eventos é a sua auto-confiança, que se pretende inabalável. Pelas mais diversas razões podem ter esta auto-confiança desenvolvida — por exemplo, por já sairem, sozinhas e acompanhadas, há tantos anos ou décadas, que não tenham qualquer problema em fazê-lo, várias vezes por semana — e ter também muita disponibilidade — porque ou vivem sós, ou com um(a) companheiro(a) que não é meramente «tolerante» mas activamente «apoiante» da sua actividade de crossdressing ou mesmo do processo de transição. E, finalmente, talvez tenham experiência — seja profissional, seja amadora em regime de voluntário para outras organizações — em organizar coisas, em estabelecer contactos, em coordenar actividades, em saber promovê-las, em fazer chegar a informação a um grande número de pessoas, etc. Ou seja, devido a qualidades pessoais, profissionais, e de ambiente (a sua situação pessoal/familiar encorajar activamente o crossdressing ou a transição), estas pessoas têm a capacidade de ajudar toda a comunidade, mantendo um calendário de actividades, eventos, jantares, saídas, etc. para as quais estão dispostas a «dar a cara» (enquanto organizadoras) e a promovê-las. Toda a comunidade beneficia, mesmo que o número de participantes seja reduzido; o mero facto de se saber que há gente a organizar actividades mais ou menos regulares é já incrivelmente benéfico, comparado com o que acontecia há poucos anos atrás — em que até podiam haver algumas actividades, mas ninguém sabia quando, como e onde, porque essa informação não circulava.

O maior problema aqui é o desencorajamento. É o criar de expectativas que depois são goradas. É o pensar que, pelo mero facto de se estar a colocar à disposição da comunidade, de forma altruísta, esta comunidade irá «responder em peso», eternamente grata. Quando isso não acontece, é legítimo perguntar se vale a pena continuar o esforço!

A minha resposta é: «sim, por favor continuem». Mas apenas alerto que esse desencorajamento e frustração advém apenas do excesso de expectativas. É importante compreenderem que há incontáveis razões para as pessoas não aparecerem; e «má vontade» ou «desinteresse» nem sequer está no top ten dessas razões. Normalmente a razão principal tem a ver com prioridades — o que é mais importante. E no caso do crossdressing há muitas coisas «mais importantes». Por exemplo, quem viva em família, tem de se sujeitar às «regras de casa» — e isto admitindo que haja tolerância relativamente ao crossdressing, e, em especial, às saídas. São na realidade bastantes raros os casos de casais em que a esposa é meramente tolerante, mas não entusiástica, e que deixe o marido crossdresser sair à vontade para onde quiser, vestido d mulher — tem a ver com questões psicológicas complicadas (mas estudadas). Já no caso de casais em que a esposa fica verdadeiramente entusiasmada e fascinada com o marido crossdresser as coisas podem ser completamente diferentes. Ou seja, para a maioria das crossdressers numa relação, mesmo uma relação de tolerância e compreensão, a prioridade será sempre «manter um bom ambiente familiar, sujeito a regras», e essa prioridade sobrepõe-se a todas as outras.

Mas mesmo no caso de quem viva sozinha podem haver outras prioridades: por exemplo, a prioridade de manter uma boa relação com os vizinhos, que podem levar muito a mal terem uma «aberração» a morar no mesmo prédio ou bairro. E podemos, depois disto, pegar numa longa lista de razões. Coisas como «medo de ser descoberta» ou «vergonha de ser apanhada» normalmente até não estão imediatamente no topo da lista de prioridades, mas também lá aparecerão. Vou dar um exemplo típico: algumas meninas, no seu entusiasmo, podem publicar no seu Facebook imagens de uma saída com outras meninas (que podem ter sido extremamente cautelosas a sair para que ninguém saiba). Ora hoje em dia sabe-se lá onde é que o Facebook vai parar; a probabilidade de um amigo de amigo de amigo de amigo ver subitamente uma imagem de um colega de trabalho a divertir-se en femme num bar gay não é nula. Aliás, nos dias que correm, até pode ser muito elevada! Mesmo alguém que não use o Facebook, ou que o use de forma anónima, está sujeita a que alguém publique uma fotografia delas en femme para uma audiência sob a qual não se tem controlo. Podem nem sequer ser as outras meninas a fazê-lo; muitos dos bares têm os seus próprios sites e páginas na ‘net, os seus próprios fotógrafos… ou outros participantes no evento, que nem sequer sejam crossdressers nem tenham intenção de fotografar ninguém, podem «apanhar» alguém, por mero acaso, que fique no fundo da imagem que publicam para os amigos… e que seja imediatamente reconhecida em situações embaraçosas! Podem nem sequer publicar a foto no Facebook, mas mantê-la no telemóvel, e, um dia, entre amigos, mostrarem a foto que tiraram… e alguém reparar que conhecem uma das pessoas no fundo da imagem, apesar de estar vestida de forma surpreendente!

Ou seja, o controle e gestão do risco é também uma prioridade, pois o risco tem consequências. É evidente que isto se aplica a tudo na vida, e se morrermos de medo de arriscarmos o que quer que seja, passamos a vida na cama em depressão… o que não é funcional. Tudo na nossa vida tem sempre risco, até atravessar a rua na passadeira. É mais provável que nos caia um meteorito na cabeça do que sermos «expostas» numa festa de crossdressers.

Mas a nossa mente não funciona assim: normalmente temos mais medo de situações que não controlamos. É por isso que as pessoas têm medo de voar de avião, mesmo que um avião seja milhares de vezes mais seguro do que um automóvel — mas, num automóvel, tem-se a ilusão de que, por se estar ao volante, tem-se mais «controlo». Não é verdade, mas pensamos que sim.

Seja como for, não pretendo listar aqui todas as prioridades, todas as desculpas, todas as justificações, porque são inúmeras. Pretendo apenas concluir com dois pontos:

  1. Não é verdade que as pessoas não apareçam às actividades por desinteresse ou qualquer forma de «conflito» com os organizadores. Pura e simplesmente têm prioridades que têm de gerir, de acordo com limitações, reais ou imaginárias, que são diferentes para cada pessoa. Isso condiciona-as a limitarem a sua actividade de crossdressing que pode impedir a sua presença, mesmo que queiram aparecer!
  2. Quanto mais expectativas se gerar em torno do número de pessoas que vão aparecer numa actividade, maior será o desapontamento, a frustração, e o desencorajamento.

Não se pode «combater» o ponto 1, excepto com compreensão e paciência. Quanto ao ponto dois, é mais fácil: basta não gerar expectativas. Tem de se aprender que o «sucesso» da iniciativa não se mede pelo número de pessoas que comparecem; pelo contrário, o próprio facto de uma organizadora ter conseguido combinar um evento, coordenar esforços com o espaço onde este irá decorrer, e anunciá-lo da melhor forma que conseguir, é já um sucesso por si só. Conseguir fazer o mesmo de forma regular é um sucesso incrivelmente maior!

Conclusão: optimismo moderado, sem expectativas

Se estivéssemos todas à espera de que a tal utópica Associação de Crossdressers fosse criada primeiro, para depois começar a anunciar actividades e a publicar informação sobre o assunto, então nunca mais iria acontecer absolutamente nada. Ficaríamos todas à espera do D. Sebastião numa manhã de nevoeiro.

Pelo contrário, as várias pessoas que já organizam eventos, jantares, saídas; que coligem informação sobre o assunto e a publicam online; que criaram canais de distribuição de informação às interessadas — fizeram já isto tudo sem associação, sem instituição, sem apoio do Estado ou de outras entidades, sem mais nada para além de entusiasmo e determinação de dizer: «Mesmo que mais ninguém faça nada a este respeito, eu vou fazer!»

Estas pessoas são especiais.

Não só são extremamente raras — pelo seu altruismo, e pela sua capacidade de colocarem a sua vontade em prática — como devem ser vistas por nós com o maior dos respeitos. Se realmente «sonharmos» com uma mega-organização que permita, um dia, que crossdressers se reunam, sem medo, em locais perfeitamente seguros… então é graças às pessoas que estão neste momento a organizar coisas, sem que lhes tenha sido pedido nada, e sem pedirem nada em troca, que esta visão um dia pode vir a ser possível: são estas pessoas os alicerces que, um dia, criarão uma comunidade sólida de crossdressers em Portugal.

Mesmo que a visão seja completamente diferente — por exemplo, em vez de um espaço público, mas secreto e isolado da sociedade, eu prefereria uma rede de espaços CD-friendly (desde lojas a restaurantes e cafés com esplanada!) que pudessem ser visitados sem discriminação e sem que me «olhassem de lado» — esta vai ser construida também a partir das pessoas que estão neste momento empenhadas em organizar seja o que for para a comunidade, independentemente do seu alcance e número de participantes. É graças à sua auto-confiança e determinação que estamos já hoje numa situação profundamente melhor do que a que estávamos há relativamente poucos anos atrás.

E deveríamos, no mínimo, estar gratas por as termos como pilares da nossa comunidade.

Sem nenhuma ordem em especial… obrigada, Gabriela, Patrícia, Susaninha, Daniela, Valéria, Vanessa, e todas as outras cujos nomes não me recordo ou que nem sequer conheço, que estão a lançar as bases para que, um dia, a comunidade transgénero em Portugal possa ter um nível de organização, de divulgação, de actividades, de contactos, de apoios, etc. tal como em qualquer outro país.

%d