A arte de fumar

O transgénero feminino no final dos anos 50 era associado à imagem de mulheres elegantes, poderosas... e fumadoras

A mudança para este site teve para mim como consequência principal deixar de receber inúmeras mensagens insultuosas sobre pessoas que pura e simplesmente, motivadas pelos seus preconceitos sociais, não compreendiam a razão de ser dos meus vídeos e fotografias. Ficavam especialmente irritados por verem uma imagem de uma mulher a fumar, que ainda por cima não era uma mulher «verdadeira». E a fumar! Que horror!

Mesmo alguns dos meus seguidores, que toleram o crossdressing, comentam que preferiam que eu não fumasse. Alguns até começam a conversa com a frase: «Fumar faz mal» ou «Fumar mata», dito como se fosse uma espécie de piropo, mesmo que na realidade depois até sejam simpáticos comigo.

Afinal, porquê esta associação da imagem feminina ao acto — ou melhor, à arte — de fumar? A explicação não é óbvia, porque requer falar de fetichismo, que é algo de diferente para todos nós. Temos sorte quando temos um(a) parceiro(a) que partilha o mesmo fetiche connosco: dizemos então que «na cama somos feitos um para o outro». Na maior parte dos casais, no entanto, cada qual tem o seu fetiche e a sua fantasia e muitas vezes são incompatíveis. Mesmo no meu caso isso é assim: a minha mulher tem um ligeiro fetiche de mild bondage enquanto que eu sou uma crossdresser fetichista fumadora. As duas coisas não são lá muito compatíveis, mas de resto entendemo-nos lindamente 🙂

Fetiche é todo o processo que envolve o desejo sexual, que pode (ou deve!) conduzir ao orgasmo, através da associação a um objecto (ou comportamento) normalmente não associado ao acto sexual propriamente dito. Se bem que hajam inúmeros e incontáveis tipos de fetiches, alguns dos quais parecerão extremamente bizarros excepto para os seus praticantes, alguns são muito comuns. Por exemplo, a esmagadora maioria dos homens, com muito poucas excepções, são fetichistas da lingerie feminina, mesmo que não se considerem como tal — por isso é que as mulheres a vestem! Não quer dizer que com isto os homens queiram, eles próprios, vestir lingerie feminina; mas adoram que as suas companheiras se vistam naquelas coisinhas cheias de rendas que são macias e sedosas ao toque. É raro o homem que não se sinta atraído por isso; são muito raros os homens que tenham realmente aversão à lingerie feminina. São raros os adolescentes que, incapazes de comprarem uma revista pornográfica, não se excitem em vez disso com um comum catálogo de lingerie, que se encontra em qualquer lar em que exista uma mulher.

É por isso que é natural que as mulheres usem lingerie, e que por vezes, quando se sentem especialmente provocadoras, revelam muito subtilmente (ou menos subtilmente, nos dias que correm) a lingerie que estão a usar. Sabem que isso é excitante para a esmagadora maioria dos homens.

Pin-up por volta de 1950. Saltos altos, meias de rede, micro-saia, peito enorme... e um cigarro para completar a toilette

Mas há outros fetiches muito comuns. Talvez o mais antigo de todos seja o cabelo longo e sedoso — mexer no cabelo de uma mulher é um acto intensamente erótico, tanto assim que em quase todas as religiões do mundo, as ordens monásticas obrigam as mulheres a cortar o cabelo ou pelo menos a prendê-lo e a não mostrá-lo publicamente. Arranjar o cabelo em penteados elaborados é assim um incentivo para reforçar o fetiche, e é por isso que há milénios que as mulheres o fazem. Outro fetiche comum, embora mais recente, é o dos saltos altos. Ainda não conheci nenhum homem que não se sentisse atraído por mulheres de saltos altos. Talvez existam, mas são mais raros do que políticos honestos 🙂 E com os saltos altos vêm as meias de renda ou mesmo de rede, que também são vistas como sendo profundamente eróticas, e é raro o homem que não goste de passar a mão por elas, quando a companheira lhe faz o gosto de vestir um par especialmente provocante. O mesmo, claro está, relativamente às mini-saias.

De onde vem estes fetiches com os acessórios de roupa? No século XIX, a lingerie era banal (a palavra não existia), os sapatos eram essencialmente botas com saltos curtos (por causa da lama e porcaria nas ruas), e as meias nunca se mostravam — quanto mais as pernas. Embora os decotes pronunciados, pelo menos na Europa, fossem frequentes a partir do século XVI ou XVII — e muito frequentes no século XVIII — a verdade é que muitos fetiches nascem de acordo com novidades que surgem na sociedade: novos estilos de vida, novas modas, novos acessórios. Não sei quando é que os saltos altos começaram a ser objecto de fetiche, mas provavelmente foi logo no início do século XX. A mini-saia está bem datada: o nome foi-lhe dado por volta de 1964 por Mary Quant. Já as meias de renda e de rede são bem anteriores à 2ª Guerra Mundial, e no final dos anos 1930 era frequente começarem a ver-se anúncios com modelos discretamente a mostrar uma meia desse tipo. Mas é realmente a partir dos anos 40, e especialmente nos anos 50, que as meias se tornam um acessório de moda altamente sensual e provocador, popularizado pelas pin-ups e depois pelas estrelas de Hollywood, e a sua atracção — e o respectivo fetiche — perdura até aos dias de hoje. Assim como os saltos altos, as mini-saias, e os cabelos compridos: há fetiches que não mudam consoante a época, mas uma vez introduzidos, não desaparecem mais.

O acto de fumar é algo que começa a ser socialmente aceitável para as mulheres mais ou menos a partir de 1910, embora existam muitas descrições anteriores de mulheres fumadoras, nomeadamente entre os círculos das que se associavam aos movimentos de libertação das mulheres. Penso que um acto que outrora era tão masculino foi adoptado por essas mulheres radicais justamente como forma de protesto; e as imagens das mulheres vitorianas a fumar mostram que elas fumavam tal como os homens, enrolando os cigarros da mesma forma — basicamente copiando-lhes o hábito.

Mas por volta de 1910, começa a surgir a noção de que as mulheres, para além de atraentes e elegantes, também podem mostrar em público aquilo que  se chamou de glamour. Glamour é tudo o que se faz para aumentar (artificialmente) o aspecto de alguém (ou mesmo de um objecto) para o tornar mais atraente aos sentidos, especialmente a visão. As mulheres passaram a vestir-se e a arranjar-se — quer fossem bonitas ou não, isso é irrelevante — de forma a provocar esse efeito de parecerem mais atraentes. E ém também nessa altura que fumar se torna socialmente aceitável para as mulheres. Mas já não é o acto do hábito masculino, mecânico, sistemático — em vez disso, desenvolveu-se um novo estilo de fumar apropriado para as mulheres. Usavam-se longas boquilhas ricamente decoradas, em marfim, madre-pérola ou mesmo baquelite (um novo plástico que começa a surgir por essa altura), e uma série de rituais e gestos apropriados para uma mulher fumar. Podemos ver filmes antigos e fotos que nos mostram como se processa essa diferença. Alguns pequenos detalhes: uma mulher segura o cigarro sempre entre as falanges distais (o osso do dedo que fica na ponta) e aponta-o para cima, geralmente com o braço dobrado e a mão à altura dos ombros, com a palma virada para cima; os homens seguram-nos nas falanges médias ou proximais (os ossos mais próximos da palma da mão) e normalmente apontado para baixo ou em posição horizontal, com o braço normalmente relaxado e com o cigarro à altura da cintura ou eventualmente um pouco mais acima, embora exista um estilo (considerado «chunga» ou «europeu») em que o cigarro é segurado ao contrário — uma mulher nunca deverá fumar dessa forma. Quando inala, uma mulher fá-lo com o queixo erguido (mostrando assim melhor o pescoço — outra zona profundamente erótica, e que nos tempos do glamour, permitia exibir melhor os colares) e exala longa e profundamente, de uma só vez, levando o máximo de tempo que conseguir, soprando o fumo em ângulo ascendente. Os homens acharão esse procedimento «feminino» e, portanto, não fumam dessa forma.

Elegância feminina onde o cigarro é um acessório de moda

Portanto, este simples acto de segurar no cigarro, de inalar e de exalar, é meramente uma convenção social. Mas perdurou pelo menos durante meio século, e ficou de tal forma enraizado na cultura ocidental, que passou a ser mais uma forma de glamour a juntar a tantas outras. Elegância não é definida apenas pela roupa que vestimos, mas também pelos gestos e pequenos actos e a forma como nos comportamos. Assim, durante os anos 40-50, era considerado extremamente elegante uma mulher que não só se sabia arranjar, como vestia as roupas mais elegantes a que tinha acesso, e que sabia fumar «como deve ser». Saber fumar era tão importante como saber comportar-se à mesa. Isto fez com a associação do acto de fumar à imagem da mulher cheia de glamour fosse particularmente forte: o cigarro (e eventualmente a boquilha) passaram a ser acessórios de moda, e objecto de desejo sexual: nasce um novo fetiche.

A partir dos anos 60, com uma muito maior liberalização dos direitos da mulher, as coisas começam a mudar. Por um lado, continua a haver uma preocupação com estilos de roupa provocadores e eróticos — a lingerie continua muito semelhante à dos anos 40 e 50 — e surgem as mini-saias e os mini-vestidos e muitas novas formas de arranjar o cabelo. Mas por outro lado, os movimentos feministas também se começam a impôr, e aos poucos desconstrói-se a imagem de glamour da mulher da primeira metade do século. As boquilhas encolhem e começam a desaparecer; a última mulher que vi a fumar em público de boquilha foi a minha mãe por volta de 1980; depois disso até ela abandonou a boquilha, e tem uma forma de fumar muito masculina e agressiva. Tal como no final do século XIX, em que o acto de fumar era uma «rebelião» dos movimentos feministas, e que copiavam o estilo masculino, a partir do final dos anos 60 o mesmo volta a acontecer: as mulheres adoptam estilos de roupa unisexo, queimam os soutiens, começam a cortar o cabelo mais curto, e fumam como os homens. Esta moda vai-se intensificando até ao início dos anos noventa, altura em que um fashion statement era vestir as mesmas T-shirts largas que os homens, um par de jeans, ténis All-Star, cabelos ultra-curtos em cortes masculinos, e fumar com o cigarro pendurado do canto do lábio como os trolhas. Vivi a minha adolescência rodeado de mulheres assim.

Glamour, nos anos 80, só existia no cinema, um pouco na TV, e nas revistas e filmes pornográficos. Talvez uma das razões pelas quais os penteados femininos dos anos 80 nos pareçam hoje tão ridículos é porque a imagem da mulher estava a sofrer uma transformação tão profunda que as experiências que restavam — no cabelo — pareciam desproporcionadas e desajustadas.

Também foi para mim nos anos 80 que comecei a desesperar com a imagem feminina da altura. Rodeada de mulheres que não se sabiam vestir, nunca tinham usado maquilhagem, que se moviam como os homens (e fumavam como eles), ansiava pelos gloriosos dias do glamour do passado. Mas nenhuma mulher que eu conhecia estava disposta a isso. A nova moda era unissexo. Era desesperante!

E finalmente, a partir dos anos 80, começou mundialmente a campanha anti-tabagismo, que atingiu o seu pico vinte e tal anos mais tarde. Os fetichistas da arte de fumar, associada à elegância feminina, ficaram privados do seu objecto de fetiche. Estranhamente, quanto mais a sociedade se tornou intolerante ao hábito de fumar, mais as mulheres deixaram de o considerar um acto de elegância e glamour, adoptando um estilo de mero «vício», copiando o modelo masculino mais e mais. Ser-se fumadora passou a significar não se ser atraente.

Para o final dos anos 90 as coisas começaram a mudar. Foi por essa altura em que eu já tinha algumas roupas elegantes e procurava recriar o glamour dos anos 50 na minha pessoa. Mas começavam a ver-se sinais de mudança. As lojas voltaram a vender sapatos de saltos altos. A lingerie voltou aos soutiens push-up. O vestido passou a ser de novo uma alternativa às jeans, embora talvez «reinventado» como túnica, que se usava comprida, mas sobre calças: só muito recentemente é que por baixo da túnica se usam collants ou leggings, recriando o vestido, para as mulheres que continuam presas ao mito dos anos 80 de que as mulheres já não devem usar vestidos por serem «pouco práticos». Seja como for, assiste-se actualmente a uma progressiva glamourização da imagem feminina. Hoje em dia espanto-me quando vou às festas populares e vejo as raparigas todas vestidas como se fossem para uma gala; nos anos 80, toda a gente — sem excepção — usava jeans e T-shirt. Hoje arranjam-se como se fossem para um casamento. E sabem-se arranjar!

Embora as campanhas anti-tabagismo tenham surtido imenso efeito (o aumento dos impostos sobre o tabaco contribuiram para isso!), é estranho reparar que quem tem fundamentalmente deixado de fumar são os homens. Por muito estranho que possa parecer, hoje em dia é raro ver uma mulher que não fume. Muitas deixaram de o fazer nos anos 80, é certo, e por isso existe uma certa faixa etária de mulheres ex-fumadoras. Mas muitas continuaram a fumar e, de certa forma, inspiram as mulheres das novas gerações. A total aceitação da mulher no local de trabalho — há muito mais mulheres licenciadas do que homens — e a necessidade de ambos os cônjuges trabalharem também provocou alterações sociais profundas. Mas o mais interessante é que a «terceira vaga de feminismo» colocou em questão a ideologia dos anos 80. Para serem socialmente mais aceites, as mulheres deixaram de precisar de imitar os homens. Em vez disso, voltaram-se para o espírito antigo do glamour: pode-se ser mulher, sexy, atraente, elegante e mesmo assim competir com os homens nas mesmas situações. O acto de fumar pode ser visto, mais uma vez, como um sinal de rebeldia: neste caso, uma contestação ao espírito pós-1968 de que as mulheres se têm de parecer mais com homens para terem sucesso. Em vez disso, as mulheres agora cada vez querem ser mais femininas, mais elegantes, mais atraentes — mais glamour.

Infelizmente, neste processo, a maioria das mulheres esqueceu-se da forma apropriada de fumar, e, por imitação ao modelo que conhecem (o dos homens), acabam por fumar como eles. É normal. Uma amiga minha, que nunca deixou de fumar, disse-me que tinha aprendido a fumar com a mãe, que lhe ensinou como o fazer. Não é uma mulher bonita mas é extremamente elegante. Já a vi fumar de boquilha e claramente sabe fazê-lo, pois foi ensinada pela mãe. E fá-lo com a naturalidade encantadora que lhe transmite o glamour apropriado.

Mas a actual geração de adolescentes e jovens adultas já não tem o exemplo das mães — que ou já abandonaram o tabaco há décadas, ou aprenderam a fumar no final dos anos 60 e 70, em que as mulheres copiavam os modelos masculinos por rebeldia — e por isso, pura e simplesmente, não o sabem fazer. Nem têm com quem aprender.

Não estou com isto a querer dizer que «fumar é bom». Não é; é inegável que faz mal à saúde. É inegável que é uma das principais causas de morte e de prejuízo para a saúde pública. Não sou louca ao ponto de afirmar o contrário: os estudos científicos, livres da influência das tabaqueiras, mostram uma realidade triste: a publicidade enganosa do passado colocou um produto no mercado que é prejudicial à saúde, e, hoje em dia, com a proibição quase total dessa publicidade, as tabaqueiras não têm incentivo financeiro para melhorar o produto e torná-lo mais saudável. Pelo contrário: até é proibido anunciar tabaco que «faça menos mal à saúde» (por exemplo, a designação light passou a ser proibida por poder induzir os consumidores de que se trata de um cigarro menos prejudicial à saúde). Isto significa que fumar hoje é quase tão perigoso como nos anos 80, em que estes estudos começaram a aparecer.

O que quero dizer é que, independentemente de ser «bom» ou «mau», há muitas pessoas que se sentem irresistivelmente atraídas pela arte de fumar — não pelo tabaco em si, mas pela forma como está associada à imagem de elegância e glamour feminino. Deixo-vos este vídeo promocional da Lucky Strike, em embalagem especial de Natal, mostra uma mulher linda (para os padrões da altura) num vestido elegante:

Seria completamente impensável hoje em dia esta associação de beleza, elegância e espírito natalício.

Hoje em dia, o acto de fumar é, para muitos, uma coisa «nojenta», um vício terrível, um perigo público — é tudo menos glamour. No entanto, o revivalismo do glamour que se sente entre as mulheres contemporâneas está a voltar a dar ao acto de fumar um pouco do seu espírito do passado. É ainda feito timidamente. Mas noto, por exemplo, que as mulheres estão mais descontraídas a assumir que gostam de fumar, enquanto que os homens, por timidez de irem contra os padrões sociais desta época, preferem afastar-se do tabaco — e observar apenas as mulheres a desfrutarem desse prazer. Mas o desfrutar de prazer associado ao acto de fumar não é outra coisa do que o fetiche da arte de fumar (smoking fetishism) — ainda latente, talvez, mas já presente.

Tudo isto pode ser completamente incompreensível para quem esteja de tal forma moldado pelos padrões de comportamento social que rejeitam o tabaco sob todas as suas formas. Mas espero que pelo menos este artigo dê que pensar duas vezes a quem queira manter a postura de que todos os fumadores deveriam ser encerrados em câmaras de gás e executados da face da Terra. Sim, é verdade que o tabaco faz mal à saúde, mas para algumas pessoas, mais do que um «vício», é um acto de profunda elegância, extremamente erótico, e que consideramos atraente. Somos todos diferentes e excitamo-nos com coisas diferentes; aquilo que excita uns é completamente incompreensível para outros. Se bem que seja a primeira a admitir que não se pode «justificar» um fetiche, por ser algo de individual e irracional, acho que pelo menos se pode explicar as razões por trás do fetiche. Isto não vai «convencer» ninguém, mas talvez permita aos detractores da arte de fumar compreenderem um pouco melhor essas razões. Não as irão aceitar, mas talvez pelo menos as possam compreender. Mas isso é o primeiro passo para tornar este mundo um pouco mais tolerante: um mundo em que não aceitamos as razões dos outros, mas também não as precisamos de atacar violenta e frontalmente em busca de um conflito.

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