A má imagem da comunidade transgénero em Portugal

A minha amiga Patrícia anunciou que ia passar um programa sobre a comunidade transgénero em Portugal na SIC, no programa «Nas Ruas», que passou no sábado, dia 15 de Dezembro, à noite. Enquanto o link estiver activo, pode-se ver «em diferido» para quem tenha interesse.

Mas tem pouco interesse. Já lá iremos.

Quando se falou deste programa, houve alguma expectativa entre algumas meninas da nossa comunidade: finalmente, em prime time, lá iríamos ter alguma informação pública sobre a comunidade e o que enfrenta em termos de dificuldades. Mas também se esperava que mostrassem um pouco da problemática em si, da dificuldade de aceitação, e a ideia de que somos pessoas normais como todas as outras.

Ora para mim o timing até era mais ou menos bom: não tenho TV em casa, mas aos sábados, a essa hora, janto em casa da minha sogra, e a televisão costuma estar acesa. Como ando a matutar em «revelar-me» a ela — já referi que é uma das poucas pessoas que conheço com espírito muito aberto, para além de já se ter mostrado fascinada positivamente pelas interpretações de personagens femininas pelos participantes no programa A Tua Cara Não Me É Estranha, e de ser alguém cujo estilo de se vestir admiro imenso (para além de ter a boa sorte de ter «herdado» algumas saias dela!) — parecia-me isto ser uma boa forma de a «motivar». Subrepticiamente, pois, sintonizei a SIC. Na altura estavam a mostrar um segmento das entrevistas a duas prostitutas transgénero residentes em Portugal, e não me pareceu ter lá grande interesse, mas foi justamente à hora em que íamos para a mesa jantar. Quando voltámos ao sofá já o programa tinha terminado, e pensei que lá tinha desperdiçado mais uma oportunidade!

Na realidade, ainda bem que não vimos o programa.

A posteriori vim depois a saber que praticamente tudo o que o programa mostrou foi a vida das prostitutas transgénero na rua (afinal de contas, o programa chama-se Nas Ruas…), ainda por cima, dando a entender que são praticamente todas estrangeiras, e que têm até bastantes clientes, apontando para o site tgatas.net, com muita procura, mas cuja oferta, à excepção de uma «menina», são apenas estrangeiras residentes em Portugal. Ou seja, não é diferente do que já acontece com os bares de alterna e alguns serviços de acompanhantes: é tudo estrangeiras, não há portuguesas, ou as que há são poucas e raras. O programa também focou na reacção dos habitantes nas zonas frequentadas pelas prostitutas transgénero (em Lisboa, junto à Conde Redondo), que, como não seria de esperar, é bastante negativa…

Claramente um programa cujo único interesse foi adoptar uma estratégia de choque e rejeição para fazer subir as audiências. Da forma como foi apresentado, apenas mostrou o aspecto mais negativo da vida das pessoas transgénero em Portugal: como objectos sexuais para gente com «gostos especiais».

Ora recentemente andei a matutar nisto, e, antes deste programa da SIC ter ido para o ar, escrevi que, para a esmagadora maioria das pessoas, a imagem que têm da comunidade transgénero — sempre muito confusa — geralmente se restringe a três tipos: as milionárias que mudam de sexo sem problemas e que passam perfeitamente por mulheres (como a Filipa Gonçalves); as artistas de espectáculos de transformismo; e as prostitutas de rua. Houve alguns programas e artigos que procuraram dar uma imagem mais correcta, que o Dr. Décio Ferreira mantém no seu site. É certo que o foco costuma recair nas cirurgias de pessoas que pretendem efectivamente mudar de género, e nas dificuldades — legais, clínicas — pelas quais passam. Dá-se uma ideia geral do sofrimento destas pessoas — podia ser melhor tratado, mas também podia ser pior.

Penso que o problema, como já escrevi anteriormente, está «no meio termo»: aquelas que estão a passar pela transição, e que não são nem milionárias, nem querem ser prostitutas de rua, apenas ter uma vida normal no género que escolheram. E, claro, nem sequer se fala nas que são «meras crossdressers» e que não tencionam passar pela transição, mas que pelo menos gostariam de ter uma maior aceitação pública. Costumo dizer jocosamente que ninguém nos leva a mal se nos «travestirmos» de fãs do Sporting, Benfica, ou FC Porto, usando roupas ridículas e adoptando comportamento irracional, ainda por cima, hoje em dia, até com uma maquilhagem no rosto, mas se queremos andar de saias na rua e batom, não podemos. Quer dizer, poder até podemos, mas sujeitamo-nos ao ridículo; enquanto que quem anda «travestido» de fã da selecção nacional e com o rosto pintado a verde e a vermelho, não tem qualquer problema de ir à rua, e pode chamar a atenção sobre si à vontade, que ninguém leva a mal (desde que não cause distúrbios).

Não sei estimar qual é o tamanho do «meio termo» em Portugal. É difícil de dizer. Eu acho que, dada a população portuguesa, e as percentagens normais para a população transgénero, podem ser dezenas de milhares. Mas por causa dos constrangimentos sociais, apenas conhecemos, na Internet, algumas centenas. Quem é transsexual «aparece» apenas por breves momentos, enquanto está em transição; depois é natural querer deixar toda a sua anterior vida para trás e entrar numa nova vida sem olhar para o passado. Quem infelizmente não tem outro recurso senão a prostituição raramente está na Internet; se estiver, é através do seu «agente» (um nome moderno para proxeneta…) e não tem contacto com o resto da comunidade. Os poucos membros da comunidade transgénero que são activistas da defesa dos direitos da comunidade têm efectivamente uma presença, mas são poucos, e geralmente ignorados pelos media — não percebo porque é que não entrevistam a Jó, a Transfofa, a Lara, e tantas outras activistas. Assim de repente, já nem me lembro da última vez que vi uma referência sequer às organizações LGBT, excepto quando se anuncia uma Gay Pride, mas isso talvez seja por haver maior tolerância (que nunca é demais) para com a comunidade LGB. Que é muito maior que a nossa, claro está, para além de se mexer em todas as camadas da população.

Entre as crossdressers e muitas transsexuais em transição, também se «mexem» em todas as camadas da população, mas fora do Jet Set (e há mais alguma para além da Filipa Gonçalves… e talvez do José Castelo Branco??), não aparecem publicamente. Não seria de esperar outra coisa: quem não é tolerado pela sociedade, não se expõe publicamente. Mesmo estas entrevistas habilmente disfarçando a voz e a imagem requerem coragem para ir ao estúdio da TV (ou deixar a TV vir às nossas casas) — quem sabe se, entre a equipa técnica que faz a reportagem, não aparecerá alguém que nos conhece e que conte à nossa família e amigos? É um risco demasiado grande. Fica-se pelo Facebook e pelos sites da especialidade, em muito diminuta representatividade, pois mesmo assim há um enorme risco de que a «partilha» de informação vá «longe demais», indo parar a sítios que não deviam.

Isto faz com que toda esta comunidade seja, efectivamente, invisível.

Há obviamente um lado perverso da coisa, que tem a ver com a nossa sociedade, ainda muito conservadora. É certo que o «paraíso» não são os Estados Unidos, que são essencialmente puritanos (com algumas excepções regionais, como Nova Iorque e a Califórnia); é em países como a Holanda ou o Canadá que se encontra alguma tolerância; ou países como a Tailândia, que, culturalmente, têm há séculos, senão milénios, uma imagem muito mais fluida dos géneros (já perdi a conta a quantos géneros são «oficialmente reconhecidos» por lá… penso que sejam uns vinte diferentes 🙂 mas posso estar enganada…). Em Portugal, no entanto, quem tenha passado pelo Estado Novo, se não manteve raízes fortemente conservadoras alicerçadas num catolicismo supersticioso, finge mesmo assim que o tem, e acaba por adoptar a mesma mentalidade. Isso significa uma coisa apenas: rejeição.

É irónico que países como Espanha, que têm uma sociedade tradicionalmente ainda mais conservadora e católica do que nós, tenham por outro lado, bairros inteiros onde a comunidade transgénero se pode divertir sem problemas. Por cá, em Lisboa, há alguma tolerância na zona do Príncipe Real, mas claro que é até um certo limite. Mesmo assim, a verdade é que, da perspectiva do resto da sociedade, se até conseguem compreender que há algo mais para além dos espectáculos de transformismo e da prostituição, o acto de se vestir de mulher está sempre associado a um comportamento sexual.

É irrelevante se as pessoas pensam que todas as crossdressers são homossexuais ou não. O certo é que o acto de se travestir é sempre considerado como sendo sexual, ponto final. Quem queira mudar de género é porque quer ter mais sexo. Ou seja, a comunidade é essencialmente vista como sexualmente muito activa, e isso, neste país, é coisa que não é bem vista. O que é de um cinismo tremendo, sabendo-se os casos de escândalos sexuais de todos os tipos que existem constantemente; se há povo promíscuo, é este!

Ora segundo o que me explicaram, existe uma forte correlação entre crossdressing e hipersexualidade (uma líbido anormalmente elevada) que está bem documentada. Eu aqui confesso a minha total ignorância: como tenho uma líbido anormalmente baixa, não posso compreender perfeitamente a situação. Mas penso que seja um pouco esta hipersexualidade que esteja na raíz do problema, porque é expressa de uma forma socialmente não aceitável. Ou seja: se um homem se disfarçar de fã do Benfica (ou de padre!) para ter sexo, não há problema algum. Se esse homem se vestir de mulher, é um escândalo!

Faço aqui um pequeno parêntesis. Numa organização a que pertenço, a dada altura, resolveu-se pedir aos membros que escrevessem pequenas experiências pessoais sobre um evento em que tinham estado presentes, indicando a profissão. A ideia era mostrar que não eram só «maluquinhos radicais» que faziam parte da organização, que é a imagem que o público tem de nós, mas sim pessoas de todas as idades e estratos sociais. Foi uma tentativa de «legitimizar», de certa forma, a má imagem dessa comunidade. Não sei se teve na realidade muito efeito, mas o certo é que o número de «maluquinhos radicais» que sempre por lá apareciam reduziu-se drasticamente. Agora a organização é banal e monótona porque só tem pessoas «normais». Mas claro que a consequência foi ter conseguido chegar a mais gente. De notar que não há mal algum em ser-se «maluquinho radical» — o problema é o preconceito social contra os «maluquinhos radicais»!

No caso das crossdressers e pessoas transgénero portuguesas, não havendo uma organização formal, é muito mais difícil de criar este espaço de «legitimização». É que a exposição pública é complicada. E mesmo que hajam pessoas disponíveis para «darem a cara» — felizmente há algumas — há sempre o risco de irem parar a um programa da SIC como o Nas Ruas e serem apresentadas como «maluquinhas radicais» e achincalhadas publicamente.

Sinceramente, não sei muito bem como isto pode mudar.

Penso que, para já, aquilo que teve mais mérito na TV para dar uma boa imagem do crossdressing em geral foi realmente o programa A Minha Cara Não Me É Estranha, pois não houve dúvidas que legitimizou a arte do transformismo, que foi universalmente aceite. Ninguém questionou se os participantes que aceitaram travestir-se do género oposto eram «tarados sexuais» ou «homossexuais disfarçados» — são pessoas conhecidas do público em geral, cuja orientação sexual é conhecida. Apenas se apreciou o talento que tiveram em passar pelo género oposto e pela capacidade criativa que tiveram em entreter uma audiência nacional. Penso que foi um bom passo. Precisamos de mais coisas assim.

Mas mais do que isto é difícil. Mesmo um programa de TV sério e bem documentado, que fale sobre a discriminação da comunidade transgénero, que efeito irá surtir? A população continuará a olhar a comunidade como «tarados sexuais». Não é por aí.

Lembro-me de ter visto alguns programas curiosos que passaram em canais de TV noutros países, alguns dos quais muito interessantes. Um deles foi um misto de reality show e documentário sobre um grupo de três músicos que se travestiram para criar uma Girl Band fictícia:

Apesar da eventual banalidade do tema, achei o documentário muito interessante, pela forma como os participantes reagiram. Ninguém tem dúvidas quanto à sua sexualidade, e ficam todos bastante surpreendidos, pela positiva, pela forma como, em geral, conseguem «passar» em público. A forma positiva como encaram o crossdressing como apenas mais uma forma de divertimento «sem macaquinhos no sótão» foi muito bem conseguida. É deste tipo de coisas que precisamos.

Há obviamente muitas coisas deste género que se fazem lá fora, como convidar actores ou personalidades públicas a travestirem-se e a mostrarem como podem passar despercebidos e divertirem-se em público (fico sempre cheia de inveja quando vejo estes programas…). Ora numa primeira fase, precisaríamos de estações de TV nacionais dispostas a passarem estes shows e documentários, e depois a lançarem os seus próprios programas. Por exemplo, desafiarem o João Pedro Pais a vestir-se de mulher e passar por uma «descoberta» do António Sala ou do Luís Jardim. Ou pegar num político minimamente conhecido, travesti-lo, e pô-lo a tentar defender os direitos LGBT, contactando as associações, etc. sem que ninguém saiba quem é. Ou pegar num cozinheiro ou crítico de culinária (o Luís Goucha seria demasiado óbvio…) fazendo-o percorrer os roteiros gastronómicos de Portugal e, enquanto «crítica gastronómica» desconhecida do público, tentar ver as reacções dos restaurantes — uma espécie de «Apanhados» mas sem o objectivo de ridicularizar ninguém, e ainda por cima, promovendo esses restaurantes (acabando no final por se perguntar aos donos dos estabelecimentos se deixariam pessoas travestidas entrar nos seus estabelecimentos). Podiam-se fazer muitas variantes disto com lojas, esplanadas, supermercados, cabeleireiros, etc. Imaginem uma figura pública travestida de mulher e absolutamente irreconhecível a trabalhar como caixa de supermercado no Continente, ou como esteticista num dos cabeleireiros da Lúcia Piloto, filmando-se as reacções do público.

O importante neste tipo de coisas seria ter o cuidado para não tornar o programa «numa palhaçada», mas mostrar, de uma forma simples, a dificuldade que as pessoas transgénero encontram no seu dia-a-dia, quando querem desempenhar as tarefas do quotidiano. Na tal ideia da «crítica de culinária»… os donos dos restaurantes, se forem conservadores e pouco tolerantes, enfrentam uma decisão difícil, especialmente se a pessoa em questão for facilmente reconhecida como sendo um homem (mesmo que não se saiba quem é) vestindo roupa de mulher: devem dizer que não à equipa de produção do programa e perder a excelente oportunidade de terem publicidade à borla? Na ideia do supermercado… o supermercado em questão poderá ser alvo de críticas e reclamações de clientes pouco tolerantes… mas por outro lado, o supermercado vai aparecer na TV. O que é preferível, enfrentar algumas críticas, ou perder a oportunidade de ouro? (Nesse programa, por exemplo, seria importante entrevistar as pessoas depois de «apanhadas» na situação de terem de lidar com uma caixa travesti).

Imaginem também que a «estrela» do programa, se for confrontada com o público com frases do género: «mas olhe lá, porque é que se está a vestir de mulher?», poderá ter já uma resposta «preparada». Poderá contar como sempre quis mudar de género desde pequeno, mas que era muito difícil devido à discriminação, e que estava muito contente por poder estar a trabalhar ali no supermercado e/ou cabeleireiro, pois assim podia poupar para as cirurgias. Neste tempo de crise, os portugueses por vezes surpreendem-nos com a sua empatia; tenho a certeza que muita gente, mesmo que inicialmente chocada, iria ser compreensiva e desejar boa sorte…

Penso que são mais ou menos estes os modelos que se usam lá fora, com mais ou menos criatividade: colocam pessoas mais ou menos conhecidas nas situações em que nós nos encontramos: queremos passar despercebidas, mas enfrentamos o estigma do reconhecimento como pessoas «diferentes». Ironicamente acredito até que nestes programas se veja muito mais gente «tolerante» do que o contrário — é bom não esquecer de que as pessoas têm de dar a sua autorização para aparecerem em programas televisionados, e quem «desanque» de alto a baixo uma empregada crossdresser num supermercado decerto não vai estar a dar autorização para que a sua imagem apareça! Será, pelo contrário, quem eventualmente se ria da situação mas que acabe por a tolerar que vai aparecer no programa. Isto irá traduzir uma imagem completamente diferente da comunidade e da sua aceitação ao público em geral.

Claro que mesmo este tipo de coisas não produz milagres. Mas vai abrindo um pouco a mente às pessoas, e, aos poucos, pode ser que se vá a algum lado, no sentido de uma maior abertura de espírito, maior tolerância, e uma melhoria da imagem da comunidade transgénero em Portugal.

Alguém conhece uma produtora de vídeo para lhe apresentar a ideia? 🙂

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