A investigação científica na área da fluidez de género

Recentemente estive a dar uma olhadela ao tipo de artigos científicos publicados nas áreas da saúde, nomeadamente da psicologia, assim como da antropologia e sociologia, sobre a fluidez de género. Tradicionalmente, estas áreas são consideradas “incómodas” e por isso menos estudadas do que deviam; acabam só por ser estudadas por activistas na área, especialmente investigadores/as que são eles/as mesmos/as membros da comunidade LGBT e que por isso mesmo acham que estes assuntos devam ser estudados.

A título pessoal — porque faz parte da minha prática espiritual — também gosto de ler tudo o que encontro sobre “identidade”. Também aqui há duas vertentes: a identidade do ponto de vista da psicologia (ou mesmo da neurologia), e que se aplica a todos os casos; e a identidade de género, que é mais específica, e tratada de forma relativamente diferente.

Um artigo que li há bem pouco tempo tentava classificar estes aspectos de acordo com três tipologias: a componente biológica (em que a genética determina, fisicamente e externamente, quais as características morfológicas do nosso corpo que são visíveis — conhecido por fenotipo), e que vulgarmente conhecemos por “se_xo”; a componente de identificação com um modelo de comportamento associado ao fenotipo, a que normalmente damos o nome de “género”; e a forma como nos relacionamos com parceiros se_xuais. Enquanto que as duas primeiras áreas sejam bastante mais estudadas, já a terceira achei bastante mais interessante de aprender sobre o que se anda a investigar.

Do ponto de vista clássico, assume-se que a maioria dos indivíduos (isto significa: mais de 50%! Não significa 99,9999999%!) tenha um se_xo biológico bem definido, que é determinado geneticamente, e, apesar de poderem haver falhas no DNA (se nunca houvessem, não poderia haver evolução das espécies; o DNA é incrivelmente robusto e na sua replicação é raríssima haver falhas, mas justamente para permitir variabilidade das espécies, há uma percentagem ínfima mas significativa de falhas que podem ocorrer), estas são relativamente raras. Somos máquinas muito bem oleadas e que funcionamos razoavelmente bem  🙂 Isto significa que é bastante raro mesmo existirem pessoas verdadeiramente hermafroditas (com genitália de ambos os se_xos) ou com atributos se_xuais secundários (ou mesmo primários) incompletamente desenvolvidos. Existem, é claro — em 7 biliões de seres humanos, mesmo uma ínfima percentagem de erros no DNA significa que há milhares, se não mesmo milhões, de falhas — mas são relativamente raros. Não admira, pois, que a esmagadora maioria dos países do mundo não queiram reconhecer o direito a um “terceiro se_xo”, já que de facto a percentagem de indivíduos que fisicamente não é nem masculino nem feminino é muito, muito baixa.

Mas as restantes duas classificações não têm praticamente nada a ver com o que a biologia nos determina fisicamente: são ambas processadas a nível mental. O género é fundamentalmente um comportamento adquirido, através da educação que prepara o indivíduo para um comportamento de acordo com o seu se_xo biológico, e que é reforçado pela pressão social. Havendo em quase todas as sociedades tradicionais uma clara separação de tarefas entre os se_xos, por condicionamentos biológicos — os homens têm, em média, mais força física que as mulheres, por isso é natural que sejam eles os caçadores da tribo; já as mulheres tem maior acuidade visual, pelo que naturalmente eram elas as colectoras de ervas e raízes na tribo, para além de serem as responsáveis pela gestação das novas gerações e naturalmente requererem protecção para as crianças durante a sua infância mais tenra — não é, pois, surpreendente que esta separação de tarefas tenha perdurado até aos dias de hoje. Coisas tão simples como o vestuário são adaptações ao corpo físico e aos papéis desempenhados na sociedade dependendo desse corpo físico: a mulher precisa de um companheiro que a proteja e às crianças, pelo que se adorna para se tornar mais “desejável” a potenciais interessados.

É certo que apanhei também muitos artigos que procuram demonstrar que existem genes determinantes do género. Afectam essencialmente a forma como são processadas as conexões neuronais do nosso cérebro, e há artigos que mostram como estas são activadas de forma diferente para os dois géneros. Portanto pode efectivamente haver uma predisposição genética para a identificação de género; se sim ou se não, vai depender da investigação futura na área da neurologia. Até lá, podemos pelo menos ter a certeza de que a identidade de género depende de três componentes: ambiental (pressão social), educação, e, claro, a vontade do indivíduo (que se identifica mais ou menos com determinado género, independentemente dos factores ambientais e educativos). Embora é claro que a esmagadora maioria da população não consiga compreender a distinção entre “se_xo” e “género”, visto nessa maioria as duas coisas estarem intrinsecamente relacionadas.

O mais interessante talvez seja ver o foco dado ao terceiro aspecto: o comportamento se_xual. Nos artigos que li, os autores conseguiram determinar (muito lucidamente, a meu ver) que este não depende de todo dos outros dois aspectos. Na realidade — assim o afirmam — este comportamento é fluido e varia ao longo do tempo, embora a maioria das pessoas nunca o admita (frequentemente nem sequer a si mesmos). Há o caso típico que todos conhecemos, do rapaz que acaba uma relação com uma rapariga, e que sofre terrivelmente com a perda, e que “jura” nunca mais se apaixonar de novo por uma rapariga, preferindo (por uns tempos) reforçar os laços de amizade com companheiros do mesmo se_xo, cujos comportamentos, por serem semelhantes aos seus, compreende melhor (evidentemente que o mesmo se passa no caso inverso). Esta intensificação pode levar até a algumas fantasias — “que bom que o mundo não contivesse mulheres pelas quais me apaixono irremediavelmente; se fossemos todos homens entender-nos-íamos muito melhor!” que podem mesmo despoletar fantasias se_xuais com membros do mesmo se_xo. Segundo os autores, esta capacidade de transferir o desejo se_xual de um se_xo para o outro acontece esporadicamente, mas que é frequente, embora na esmagadora maioria das pessoas não se torne permanente. Em compensação, a orientação se_xual de um indivíduo tende a manter-se permanente ao longo da vida, embora, por pressão social, possa obviamente ser suprimida.

Desde que os activistas do lobby LGBT têm conseguido notáveis vitórias relativamente à aceitação pública do seu comportamento se_xual, este tipo de questões tem sido mais abertamente estudado, e divulgado a um público em geral que se encontra cada vez mais confuso. Tradicionalmente, espera-se que um indivíduo apresente um comportamento se_xual de acordo com o seu se_xo/fenotipo, que por sua vez é suposto identificar o seu género. Dado que a esmagadora maioria da população tem os três aspectos alinhados, é natural — embora condenável! — que os desvios da norma sejam mal aceites e pouco tolerados. Pessoalmente considero irónico que o maior “ataque” à norma tenha sido essencialmente a mudança de comportamento do género feminino nas últimas décadas: os papéis tradicionalmente atribuídos aos homens nas sociedades contemporâneas deixaram de ser exclusivamente destes, mas são partilhados por ambos os géneros. Todas as crianças do se_xo feminino são hoje em dia educadas para terem uma educação superior e uma carreira profissional que lhes permita uma independência financeira — mas isto nos tempos dos nossos pais (ou pelo menos no dos nossos avós!) era tudo menos óbvio. No ocidente, não passa pela cabeça de nenhum parente responsável no dia de hoje condicionar ou limitar a educação das suas filhas por questões tradicionalistas relativamente ao papel “esperado” de uma mulher adulta no futuro — excluindo talvez algumas minorias étnicas ainda apegadas a modelos sociais que consideramos obsoletos. Em países como Portugal, a maioria dos adultos licenciados é do se_xo feminino, e este número tem aumentado constantemente; à excepção de certas licenciaturas, em quase todas elas há maior predominância de mulheres: elas estudam mais e durante mais tempo que os homens. Certas profissões “tradicionalmente” vistas como masculinas — caso das profissões médicas ou da advocacia — são actualmente desempenhadas por uma esmagadora maioria de indivíduos do se_xo feminino (mesmo que por questões ainda tradicionalistas os quadros superiores sejam maioritariamente masculinos). A maioria dos guarda-freios da Carris em Lisboa são mulheres; há mais mulheres com carta de condução do que homens. Numa das empresas para a qual presto serviços, com cerca de 350 empregados, todos os quadros superiores são mulheres — à excepção do director-geral. Mesmo a nível dos quadros inferiores, há uma muito maior predominância de mulheres do que de homens. E no quotidiano vamos encontrar em praticamente todo o retalho uma muito maior quantidade de mulheres em quase todo o lado. É verdade que não podemos agradecer ao activismo feminista esta súbita explosão: infelizmente vivemos num país progressivamente mais pobre, e é quase impossível um casal sobreviver apenas com um salário.

Isso naturalmente modificou uma série de hábitos relacionados com o comportamento de género. Nos tempos da juventude da minha mãe, era raro uma mulher sozinha ir frequentar um café (a minha mãe era uma notável excepção, mesmo em Lisboa); não “parecia bem”. Hoje em dia, a maioria das lojas vende produtos destinados ao mercado feminino — elas têm maior poder de compra e mais apetência a consumir. Elas fumam mais do que eles, e preocupam-se tanto com o carro como eles. Usam mais os computadores, e embora talvez usem mais os sites sociais e menos os jogos de computador (especialmente os mais violentos; embora adorem jogos de estratégia), perdeu-se completamente a noção de que as mulheres não têm “aptidões técnicas”. Acho giro hoje em dia observar adolescentes a viajar de combóio. Eles normalmente vestem-se com a primeira coisa limpa que encontraram em casa e não conversam nem com o amigo no banco ao lado; em vez disso, ficam a ouvir música ou a jogar na mini-consola. Elas, em compensação, vestem-se e arranjam-se com todo o requinte, abrem os seus portáteis e ficam a jogar, conversam com as amigas sobre o que fazem no Facebook ou nas músicas que descarregaram, ou abrem um livro e ficam a ler um bocadinho, interrompendo apenas para contar às amigas o que estão a ler. E também discutem futebol ou política, por vezes bem mais informadas que os rapazes. Nos tempos da minha avó, as mulheres ficavam caladas durante a viagem e não faziam nada excepto talvez bordados e crochet; eram os homens que conversavam e que liam.

Ironicamente, esta fluidez de comportamento associado ao género feminino, que cada vez mais se mistura e não se distingue do comportamento tradicionalmente masculino, cria uma certa perversão da forma como o género é encarado: os homens parece que têm estado a recuar cada vez mais para procurarem comportamentos ainda não adoptados pelas mulheres, e encontram cada vez menos — daí também externamente cada vez parecerem menos activos e menos interessantes: ao “fugirem” de tudo o que possa parecer “um comportamento feminino”, começam a encontrar muito pouco que fique de fora. Ir ao café com os amigos nos anos 60 e discutir um livro de poesia era uma actividade masculina (as mulheres ficavam em casa a tratar das crianças e da lida da casa e não tinham tanto tempo para lazer); hoje em dia, um rapaz que faça o mesmo será considerado mariquinhas (ou pelo menos “intelectualóide”), pois só as mulheres é que fazem isso. Aliás, hoje em dia, a mera noção de um homem ir sozinho para um café para ler um livro parece estranho; lembro-me de fazer isso durante mais de uma década e reparar que nunca se viam homens sozinhos no mesmo espaço. Se iam ao café para passar umas horas, era sempre na companhia das namoradas/esposas, ou em grupos mistos; dois homens a tomar café juntos é “suspeito”. Elas, pelo contrário, tanto vão sozinhas como acompanhadas das amigas — é uma função social perfeitamente natural, mas que seria tabu há duas gerações atrás.

Outro comportamento social que se perdeu completamente foi a expressão das emoções em público. Na Idade Média, os homens choravam e berravam em público sempre que se sentiam frustrados e infelizes; as mulheres é que era suposto ficarem caladas e suportarem as suas frustrações em silêncio. No século XVIII, a expressão pública de sentimentos e emoções era comum a ambos os géneros; é também nesse século que a moda masculina e feminina se aproxima mais, pelo menos em exuberância e complexidade de vestuário (mesmo que, evidentemente, os cortes não fossem os mesmos). Homens e mulheres usavam longas perucas; ambos se maquilhavam e perfumavam (tomar banho estava fora de questão, era considerado perigoso para a saúde); ambos usavam saltos altos e ostentavam jóias; e embora os cortes do vestuário fossem distintos, a utilização de folhes, rendas, ou collants justos eram comuns a ambos os géneros. Talvez seja essa a razão pela qual personagens históricas como o Cavaleiro d’Eon conseguissem passar por mulheres sem muitos problemas…

Hoje em dia, pelo contrário, um homem que exprima emoções publicamente… é um “mariquinhas”. Foi essencialmente o puritanismo rígido do século XIX que forçou a esta mudança radical de comportamento. Hoje em dia, associamos um conjunto completamente diferente de comportamentos aos géneros masculino e feminino; e é possível (pelo menos plausível) que daqui por 100 ou 200 anos, voltemos a ter comportamentos diferentes. Por exemplo, nos anos 80, as mulheres normalmente não se arranjavam: era suposto estarem “acima” disso. Uma T-shirt e umas jeans eram mais que suficientes; o cabelo usava-se curto; maquilhagem nem pensar, as unhas eram curtas (e nem sonhar em pintá-las!), e só as “bimbas” é que usavam saltos altos (toda a gente usava ténis). Mas recentemente tudo isto mudou: hoje em dia, pasmo-me de andar a passear no Bairro Alto durante as festas dos santos populares — elas vão arranjadíssimas como nos meus tempos nem para casamentos iam!

Tudo isto mostra como o comportamento associado ao género — a forma como nos exprimimos, o que vestimos, como mostramos as nossas emoções, como nos movimentamos nos nossos grupos — muda constantemente, e por vezes em poucas décadas. Ou seja, durante o período de vida de uma pessoa, o comportamento associado ao género pode mudar drasticamente, e o indivíduo que se identifica com determinado género pode facilmente mudar de comportamento, adaptando-se ao que passa a ser aceitável e ao que deixa de o ser. Isto levou os investigadores a concluírem que a noção de comportamento associado ao género tem de ser fluida: não é uma coisa fixa, determinada, que não muda. Pelo contrário, a maior parte das pessoas vai adoptando um comportamento mais adequado ao que está em vigor; mas por vezes adopta-o mesmo por vontade própria, sem depender de influências externas. É o caso de uma jovem teenager com pouca auto-confiança que veste roupas largas e confortáveis porque tem vergonha do seu próprio aspecto, mas que depois de passar essa fase, descobre a sua feminilidade, e muda de vestuário, de amigos/as, e de comportamento… para eventualmente depois de casada mudar uma vez mais tudo. Evidentemente que os homens também fazem o mesmo.

Quão radical pode ser esta “fluidez” de género? Pelos casos estudados, bastante radical mesmo. E as mudanças podem dar-se rapidamente; isto explica perfeitamente o caso do crossdressing, onde o indivíduo (geralmente masculino) adopta comportamentos e vestuário do se_xo oposto, mas fá-lo apenas temporariamente, voltando ao comportamento mais habitual do seu género ao fim de uma “sessão” (o caso feminino, dado a muito maior variedade de comportamentos e vestuário socialmente aceitáveis, é menos frequente. Uma mulher que vista um fato completo, com calças, casaco, e gravata, e que corte o cabelo de forma masculina, é totalmente aceite, e mesmo uns modos mais masculinos de movimento ou gesticulação não atrairão muita atenção). Embora o espectro dos crossdressers seja muito vasto — quanto mais é estudado, mais casos aparecem — só se pode mesmo falar de mudança de identidade de género quando o indivíduo assume a título permanente o comportamento do género oposto. A maior parte dos casos, no entanto, não o fazem de forma “permanente”, mas apenas temporária.

Com a mudança — temporária ou permanente — da identidade de género, pode também mudar o comportamento se_xual: o desejo de um parceiro do mesmo se_xo biológico (mas não do mesmo género!) pode tornar-se temporariamente possível quando o indivíduo adopta (mesmo a título temporário) a identidade de género oposta ao do seu se_xo biológico. Nessa situação, o indivíduo não se considera de todo homosse_xual — trata-se apenas de algo temporário. E na realidade, os especialistas na área tendem a concordar com esta afirmação. É que a homosse_xualidade exprime-se relativamente ao se_xo biológico do indivíduo e ao comportamento se_xual (escolha de parceiro) que adopta — a título permanente. É apenas quando o indivíduo apenas deseja parceiros do mesmo se_xo biológico (independentemente do género que se considera!) que se pode legitimamente falar de um comportamento homosse_xual.

Para dificultar a situação, os cientistas preferem usar terminologia associada ao género e não ao se_xo biológico. É que o se_xo biológico é também um vasto espectro, embora seja certo que em mais de 90% dos casos seja determinado pelo DNA. Mas há imensos exemplos de situações anómalas, sejam genéticas, sejam de origem embriológica, em que não basta o DNA. Uma situação curiosa chama-se síndroma de insensibilidade ao androgénio. Trata-se de uma mutação genética que, dependendo do grau de insensibilidade, tem consequências curiosas: embora do ponto de vista genético o DNA seja o de um homem, fisicamente o indíviduo é indistinguível de uma mulher. A esmagadora maioria dos casos nem é identificado excepto na puberdade, em que o indivíduo, fisicamente com todos os traços externos femininos (incluindo a genitália; na realidade, dada a total ausência de sensibilidade ao androgénio, as formas femininas tendem a ser até mais voluptuosas que a média), e que foi sempre educado como uma mulher sem qualquer suspeita de não o ser, não apresenta menstruação. É só nessa altura que normalmente é consultado um médico, que, após umas radiografias ou ecografias, constatará, para grande surpresa de todas as partes envolvidas, que a “mulher” em questão não tem nem útero nem ovários, embora apresente de resto todas as características de uma mulher biológica…

Ironicamente, estes casos, antes dos anos 80, em que o exame ao DNA era pouco frequente, provavelmente passavam completamente despercebidos. A mulher em questão era diagnosticada como meramente infértil, e provavelmente levaria uma vida perfeitamente normal, casar-se-ia, adoptaria uns filhos, e morreria sem ninguém saber de nada. A ironia extrema é que desde que os testes de DNA passaram a ser mais frequentes que agora estes indivíduos são alvos de terapia para lidarem com a sua situação (depois de a conhecerem!!). Dantes apenas eram vistos como mulheres inférteis, e apesar de ser uma situação triste e desagradável, a terapia para uma pessoa aceitar a sua infertilidade é relativamente menor (estes indivíduos com esta anomalia genética têm uma vida se_xual perfeitamente saudável e uma líbido normal; em certa medida, dado serem totalmente insensíveis ao androgénio, serão até mais femininas que a média das mulheres). Mas hoje em dia, os médicos dizem-lhes o seguinte: “Tenho duas más notícias; a primeira é que a senhora é infértil, e no seu caso, não podemos fazer nada a esse respeito. A segunda é que a senhora é na realidade um homem”. Podem imaginar como é que uma pessoa se sentirá nessa situação!

Em todos os países do mundo estas pessoas são sempre classificadas como mulheres desde a nascença, embora geneticamente sejam homens. A confusão é, evidentemente, extrema. É muito possível todos nós termos tido uma tia-avó solteirona, senhora gentil e agradável que nos sentou ao colo, que nunca teve filhos, e que nos olhou com um ar maternal e gentil, tratando-nos como se fôssemos os seus netinhos predilectos, e que passou uma vida toda agradável, provavelmente tendo sido casada e muito feliz — porque nos seus tempos, ninguém lhe tinha dito que na realidade era geneticamente um homem…

Mas voltemos aos casos mais normais. A determinação do se_xo biológico é normalmente dada pelo DNA, mesmo que existam excepções; do ponto de visto clínico, é preferível falar-se do fenotipo, a expressão dos genes (genes masculinos “defeituosos” podem criar um fenotipo feminino, e nesse caso, o indivíduo será classificado de acordo como uma mulher). Através da educação e do ambiente, o indivíduo adquirirá uma identidade de género normalmente correspondente ao seu fenotipo. Hoje em dia sabe-se que isto não é puramente por acaso: há componentes neuronais que são activados de acordo com o fenotipo. Logo, é legítimo afirmar que a maioria das pessoas terá um género de acordo com o seu fenotipo.

No entanto, o género é um estado de espírito ligado à identidade, à visão que o indivíduo tem de si mesmo. Mesmo tendo em conta que a forma como o cérebro está organizado tenderá a apresentar uma identidade de acordo com o fenotipo, nem sempre isto acontece. Em indivíduos cujo fenotipo é sem qualquer dúvida masculino (seja qual for o teste que se faça), pode por vezes ser desactivada a sequência de genes que despoleta neurologicamente uma situação típica para o fenotipo masculino. Nesse caso o indivíduo sentir-se-á confuso: apesar de não haver dúvidas relativamente ao fenotipo, o cérebro, esse, não estará de acordo. A identidade de género torna-se mais difusa. Em casos extremos, não só se encontram inibidos os genes que criam uma propensão para o cérebro ter uma identidade de género masculina, como são activados (mesmo que incompletamente) os genes que despoletam uma neurologia feminina. Neste caso, o indivíduo vai mesmo sofrer de uma disfunção de género bastante aguda: não vai sentir meramente “confusão”, mas terá a certeza absoluta que não tem o corpo de acordo com a sua identidade de género. (Evidentemente o mesmo se passa no sentido inverso).

Esta situação é mais frequente do que antigamente se pensava. O número de genes envolvido é surpreendentemente pequeno, e aparentemente não é preciso tanto “esforço” para que o equilíbrio entre os que devem estar activos e os que devem estar inibidos (para um determinado fenotipo) se perca; o desequilíbrio pode explicar a fluidez de género entre todos os extremos possíveis. Mas mesmo que esse desequilíbrio não seja completo, há depois a questão da adaptação e plasticidade do próprio cérebro. Por exemplo, um indivíduo que tenha diminuição da produção de determinada proteína presente em cérebros do fenotipo masculino poderá entrar num estado de dúvida quanto ao seu género, e reforçar esse estado mentalmente, habituando-se a pensar na sua identidade do género oposto, de tal forma reforçando essa ideia habitual, que mesmo que a produção dessa proteína aumente para os valores normais, continuará a ter identificação com o género oposto, apesar de já não haver uma razão bioquímica para o fazer. Como o género é influenciado por factores educativos e ambientais, não é, pois, de estranhar que existam condições externas — por exemplo, stress! — que possam afectar a percepção de identidade de género. No meu caso, não tenho dúvidas que o stress ou o cansaço afectam a minha identidade de género! E embora não tenha qualquer propensão para a depressão (também há gente assim!), é frequente sentir-me muito mais confortável nessas situações se assumo (externamente, pelo vestuário) a minha identidade de género feminina, que é muito mais relaxante (ou por vezes mais excitante!!). Mas não quer dizer que se torne permanente. É fluida, vai e vem…

A fluidez de género causa socialmente um embaraço. Criamos expectativas e projecções mentais, e esperamos que alguém com um fenotipo masculino tenha uma identidade de género masculina: qualquer alternativa causa grande confusão na maioria das pessoas, que acha que a identidade é intrínseca, geneticamente determinada, e alinhada com o fenotipo (o aspecto físico). A esmagadora maioria das pessoas não sabe que não é assim (nem se interessa por isso). Socialmente, pois, uma disforia de género não é tolerada.

Estranhamente, o comportamento se_xual tem maior aceitação. Este nada tem a ver com o género, e só é marginalmente relacionado com o fenotipo. É verdade que a maioria das pessoas é heterosse_xual (mas nem sequer o é todo o tempo; todos temos fantasias homosse_xuais de vez em quando, ou mesmo algumas experiências físicas, mas não quer dizer que as excepções definam o nosso comportamento se_xual primário), e que de certa forma, talvez até mais por condicionamento ambiental e educativo do que biológico, é o comportamento “esperado”: do ponto de vista da reprodução das espécies, os fenotipos atraiem-se mutuamente pelos fenotipos do se_xo oposto, e naturalmente adoptam um comportamento se_xual de acordo com a potencialidade reprodutiva. No entanto, isto é uma simplificação — os seres humanos são bem mais complexos do que isso.

O mais importante de compreender neste triângulo entre se_xo/fenotipo – género – comportamento se_xual é que são coisas distintas. Por exemplo, a maioria das pessoas assume que os homens homosse_xuais têm interesse em vestirem-se de mulheres, porque assumem — erradamente! — que sofrem de alguma disforia de género. Mas não é nada disso. Um indivíduo homosse_xual do fenotipo masculino tem uma identidade de género perfeitamente masculina e sente-se atraído (apenas) por outros indivíduos do mesmo fenotipo e com a mesma identidade de género — pelo menos na esmagadora maioria dos casos. Na literatura, isto por vezes é denominado androfilia — o desejo por algo que é profundamente masculino.

As coisas complicam-se quando indivíduos do fenotipo masculino têm uma identidade de género feminina, mas um comportamento se_xual fazendo-os ter relações com indivíduos do se_xo masculino. Se este comportamento for esporádico e não permanente (tal como a identidade de género não for sempre feminina), provavelmente trata-se de um crossdresser fetichista ou libidinoso com comportamento homosse_xual; entre os homosse_xuais, são um grupo muito, muito reduzido. Se o comportamento for permanente e constante (excluindo mesmo qualquer outra forma de contacto de índole se_xual), podemos estar na presença de um transse_xual (se a identidade de género for sempre feminina) ou de um crossdresser homosse_xual. Se o comportamento se_xual variar, poderá ser um transse_xual bisse_xual… e as coisas podem cada vez ser mais complicadas. No meu caso, o meu fenotipo é masculino, mas a minha identidade de género varia com o tempo; mas o meu comportamento se_xual é sempre com parceiras do fenotipo feminino. Não interessa qual o meu género; o meu comportamento se_xual não muda. Logo, se mudasse (cirurgicamente) o meu fenotipo, seria uma transse_xual lésbica 🙂

De um ponto de vista clínico procura-se fingir que não existe nem fluidez de género, nem de comportamento se_xual. O fenotipo, esse, pode apresentar anomalias; na gíria chamam-se a estes indivíduos “interse_xuais” por não terem um fenotipo claramente definido. Clinicamente tratam-se com intervenções cirúrgicas e suplementos hormonais (se for necessário), e eventualmente algum acompanhamento de terapia. No caso de comportamento se_xual não-heterosse_xual, não há “cura” nem terapia (exceptuando talvez para ajudar a pessoa em questão a assumir publicamente a sua homosse_xualidade/bisse_xualidade), embora existam muitos grupos de apoio — e muitos grupos políticos! Seja como for, a principal vitória deste grupo foi conseguirem a aceitação de que não pode haver discriminação quanto ao comportamento se_xual (e a aceitação do casamento civil entre pessoas do mesmo se_xo, assim como a adopção de crianças pelo casal, são consequências dessa aceitação). Não podemos dizer que a discriminação tenha sido abolida a nível da sociedade como um todo, mas há pelo menos uma aceitação a nível legal, que é um primeiro passo muito importante.

No caso de casos clínicos de identidade de género não compatível com o fenotipo, também existe uma aceitação legal, mas apenas no caso do comportamento se_xual estar de acordo com a identidade de género (e oposta ao fenotipo). O entendimento clínico é que o indivíduo em questão tem um fenotipo inadequado para o género com que se identifica e que o impede de ter o comportamento se_xual apropriado a esse género. Por isso intervém-se com terapia hormonal e posterior cirurgia (ao fim de um período de teste, conhecido como “teste da vida real”, onde a pessoa, antes da cirurgia, terá de se “disfarçar” do género com que se identifica). Uma lei recente permite já a mudança de nome e do “se_xo” no BI mesmo antes da cirurgia (o que é um avanço positivo).

No entanto, os casos em que o indivíduo apresenta um género diferente do fenotipo, mas um comportamento se_xual de acordo com o fenotipo, são descartados (ex. um homem que se identifica com o género feminino mas que só deseja ter parceiras do se_xo/fenotipo feminino). Estes casos são complicados de resolver porque podem restar dúvidas (na mente dos clínicos) sobre a “seriedade” da pessoa em questão. Mais complexo é o caso de indivíduos que nem sequer abordam a questão do comportamento se_xual, por não a considerarem assim tão importante como isso, e pretendam levar uma vida celibatária! Nesse caso, como os classificar?

Ainda mais complicados são os casos que apresentam demasiada fluidez. As operações de mudança de fenotipo não são facilmente reversíveis (e algumas não são de todo, pelo menos não de forma satisfatória). Se há fluidez seja na identidade de género, seja no comportamento se_xual, os clínicos não vão intervir. Quanto muito recomendarão terapia, nem que seja para determinar o que é que a pessoa em questão realmente quer (ela própria pode não saber).

Todos estes casos no fundo acabam apenas por se resumir a um ponto para mim essencial: existe de facto uma norma (concordância entre fenotipo/género/comportamento se_xual), mas existem pessoas fora dessa norma, e não são assim tão poucas como isso. Infelizmente, as combinações possíveis fora da norma são tantas que é impossível de classificá-las a todas. Cada caso é realmente um caso! E, pior que isso… estão em constante mudança.

É por isso que agora quando me perguntam nos chats se eu sou homem ou mulher, costumo responder (quando estou vestida!):

Fenotipo: masculino

Género: feminino

Comportamento se_xual: heterosse_xual (para o fenotipo)

:)

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